Contra quem nos batemos

Celso Lungaretti

Paulo Francis dizia que, quando o homem se decepciona com os grandes ideais políticos e religiosos, só lhe resta manter a dignidade pessoal, exercendo bem o seu ofício.

Falava por si próprio, jornalista, pois há ofícios perfeitamente inúteis, que nada de bom trazem para a humanidade.

Como os ligados à agiotagem em larga escala, ou seja, as atividades bancárias. Os que a exercem podem até ser grandes sujeitos, mas sua faina diária não passa de uma contribuição para a prevalência do setor parasitário da economia sobre o produtivo, com todas as distorções inerentes.

Um jornalista pode, pelo menos, resgatar a verdade e disponibilizá-la para os cidadãos, se ocorrer a feliz coincidência de dois requisitos cada vez mais incomuns: ele próprio ser dotado de caráter e competência para ir buscar a verdade no fundo do poço em que os poderosos do mundo a mergulham; e trabalhar num veículo que esteja disposto a trazer à tona, pelo menos, aquela verdade (nenhum, mas nenhum mesmo, torna públicas todas as verdades que chegam ao seu conhecimento!).

Atuando na imprensa, nunca poupei esforços para oferecer aos leitores aquilo que outros jornalistas lhes sonegavam, seja para não correrem o risco de pisar nos calos errados, seja por mera preguiça (dá muito menos trabalho repassar versões interesseiras do que desmistificá-las).

E, muitas e muitas vezes, tive a decepção de ver o fruto dos meus esforços jogado no cesto porque o veículo decidia que tal verdade era inconveniente para seus leitores naquele instante. Interesses políticos e econômicos se sobrepunham aos critérios e à própria missão do jornalismo.

Mas, houve também as situações em que, orgulhoso, pude voltar para casa com a certeza de ter cumprido meu papel, lançando luzes sobre o que queriam manter na escuridão.

Isto tudo, claro, na esperança de que os leitores pudessem tirar algum proveito daquela verdade que eu garimpara à custa de dura labuta e alguma perspicácia, além da disposição de correr riscos.

Daí minha frustração com estes tristes tempos presentes, quando a grande imprensa passa como um rolo compressor sobre a verdade, enquanto nossos titânicos esforços para disponibilizá-la nos respiradouros da internet se chocam com verdadeiras muralhas de preconceitos e rancores.

A partir da experiência concreta da luta que estou travando há alguns anos em defesa da memória da luta armada e dos resistentes que a travaram, bem como da militância virtual que desenvolvo em prol dos direitos humanos e das boas causas, cheguei à triste conclusão de que a indústria cultural atua no Brasil exatamente como o filósofo Herbert Marcuse e a Escola de Frankfurt previram: mesmerizando os cidadãos, para tangê-los a cumprirem bovinamente seu papel de produtores e consumidores, sem sequer cogitarem a possibilidade de transformações que levem à construção de uma sociedade mais justa e humana.

As boas práticas jornalísticas viraram letra morta quando são revolucionários os que pedem direito de resposta e espaço para apresentar o "outro lado". Veículos da imprensa não mais titubeiam em apresentar edição após edição o mesmo viés tendencioso e distorcido, como está fazendo, p. ex., a Carta Capital no Caso Cesare Battisti. O contraditório foi banido de suas páginas.

Homens unidimensionais - O pior, entretanto, é constatarmos a existência de vastos contingentes de cidadãos que baniram o contraditório de suas mentes: são incapazes de fazer uma avaliação isenta do contraponto que oferecemos às verdades oficiais. Por mais fatos que apresentemos, por melhores argumentos que lancemos, continuam aferrados às versões reacionárias. Enterram a cabeça na areia, como avestruzes.

Quem são esses indivíduos rancorosos que passam a vida a vituperar a esperança, a solidariedade, a compaixão, a tolerância, igualdade, a justiça e, enfim, todos os valores nobres que dignificam o ser humano?

Melancolicamente, sou obrigado a reconhecer que se trata da mesma classe média que, na década de 1980, pediu o fim da ditadura e apoiou de forma entusiástica a redemocratização.

Vinga-se de nós por não termos entregado o Brasil redimido que prometemos; pelas bandeiras que levantamos e, por um ou outro motivo, deixamos virarem letra morta; e também, claro, pelas dificuldades econômicas que ela, classe média, vem enfrentando nas duas últimas décadas.

Incapaz de perceber a floresta atrás das árvores, atribui ao Governo Lula a responsabilidade por todos os males presentes, passados e futuros, como se o capitalismo globalizado deixasse a qualquer governo margem de decisão para mudar o que realmente precisa ser mudado: a ordem econômica que consagra a desigualdade, a competição zoológica, as devastações ambientais e o desperdício do potencial ora existente para se proporcionar uma existência digna a cada habitante do nosso sofrido planeta.

Assim, a concessão do refúgio humanitário a Battisti pelo Governo Lula foi suficiente para colocar
os ressentidos da classe média histericamente contra a medida, sem levarem em conta, sequer, o quanto a Itália vem espezinhando a soberania brasileira com sua sucessão interminável de atitudes descabidas e arrogantes.

É contra isso tudo que nos batemos. E, uma vez sacramentada a vitória que estamos conquistando a duríssimas penas, é imperativo refletirmos sobre este fenômeno inquietante: a direitização de parcela expressiva da classe média.

Há algo errado em representarmos a esperança num estágio superior de civilização e não estarmos conseguindo ser assim percebidos por tantas pessoas. E não podemos dar como perdidos para nossas causas esses indivíduos que, em grande parte, ajudam a formar opinião. Ainda podemos abrir os olhos de alguns, pelo menos.

Mais do que nunca, é hora de voltamos a erguer bandeiras positivas, que inspirem as pessoas e as motivem a dar seu quinhão de esforços para a construção de um futuro bem diferente, mostrando-lhes que tudo que foi criado pelo homem, pode ser modificado e melhorado pelo homem. Nada é imutável.

Pena que a situação tenha se deteriorado tanto desde 1848, quando Marx disse que os proletários só tinham seus grilhões a perder, e um mundo a ganhar.

Hoje a nossa necessidade de união é por motivo bem mais premente: face à depressão econômica que se avizinha e ao terrível preço que pagaremos nas próximas décadas pelas agressões criminosas ao nosso habitat, o que temos agora é um mundo a salvar.

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