Celso Lungaretti
Mesmo nos tempos em que o Paulo Francis ainda era o principal jornalista de esquerda brasileiro, ele se referia à seção de cartas dos jornais como “muro das lamentações”.
É que, apesar da censura e das intimidações, os jornalistas de esquerda acabavam quase sempre encontrando brechas para ocupar tribunas importantes.
Vez por outra, seus textos não eram apenas desfigurados, mas inteiramente vetados pelos censores. Vez por outra, passavam dias, até semanas, presos.
Mas continuavam presentes e ativos, ora falando as coisas com mais clareza, ora usando sua imensa criatividade para passar mensagens cifradas aos leitores. [Alberto Dines que o diga: seu Jornal dos Jornais era uma aula semanal de resistência jornalística ao despotismo...]
Então, as seções de cartas só serviam mesmo para o leitor comum chorar suas mágoas. Os jornalistas de verdade as desdenhavam.
Hoje, a imprensa brasileira consegue ser pior ainda do que nos tempos da ditadura: baniu quase por completo os jornalistas de esquerda. Fez o que os militares sonharam e não conseguiram, tornar os jornais e revistas importantes veículos de uma mão só, que noticiam e destacam o que convém aos interesses dominantes, relegando as verdades indigestas a notinhas de pé-de-página ou as ignorando por completo.
Um exemplo prosaico, dentre centenas que eu poderia citar. Alguém tomou conhecimento de que “a Comissão Nacional de Estudos Constitucionais do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil aprovou, por maioria de votos, parecer do constitucionalista José Afonso da Silva, que considerou legal a decisão tomada pelo ministro da Justiça, Tarso Genro, de conceder ao italiano Cesare Battisti a condição de refugiado político”?
É notícia recente, do último dia 7. Está no site da OAB e um ou outro serviço de notícias jurídicas. Mais nada. A grande imprensa a escondeu dos seus leitores, assim como lhe daria grande destaque se a Ordem tivesse impugnado a decisão soberana de Tarso Genro. Dois pesos, duas medidas. Sempre.
A PESTILÊNCIA E O RESPIRADOURO - Então, hoje a seção de cartas dos jornais passou a ser freqüentada por jornalistas e cidadãos renomados que, nem por isso, conseguem espaço mais destacado para manifestar sua discordância das falácias praticadas pelos veículos de comunicação.
De muro das lamentações, tornaram-se a último respiradouro da imprensa burguesa, uma lufada de ar puro em meio à pestilência por ela exalada.
É exatamente como as pessoas bem informadas e dignas receberão a vibrante mensagem de Adriana Tanese Nogueira no Painel do Leitor da edição de 09/04, sobre a desmoralizada reportagem com a qual a Folha de S. Paulo tentou envolver Dilma Rousseff com um seqüestro longínquo... e inexistente.
Grande Adriana, que é filha de um militante injustiçado pela VPR (esta história ela contará um dia) e, mesmo morando e trabalhando nos EUA, mantém viva a tradição familiar de engajamento nas causas justas!
Ela acertou na mosca ao dizer que a Folha repete “o mesmo discurso usado pela ditadura para justificar a violência institucionalizada” e que “banalizar a história é uma forma de servir a antigos senhores".
Mas, não é nem da carta de Adriana que eu quero mesmo falar aqui, mas sim da outra, a negativa, publicada logo abaixo.
Mensagem de um Carlos que não é Lamarca nem Marighella, capazes de dar a vida por seus ideais. De um Carlos que está mais para Lacerda, aquele que habita as lembranças das pessoas de bem como um corvo tramando em tempo integral contra a democracia.
É bem o leitor para quem a Folha direcionou seu exercício de manipulação de informações históricas do último domingo.
OS "BENEFÍCIOS" DOS ASSALTOS - Além de agradecer ao jornal por dar aos brasileiros “a noção exata de quem podem colocar para dirigir um país”, ele repetiu a cantinela habitual dos sites fascistas: “Quem se beneficiou do produto dos assaltos, sequestros, guerrilhas e assassinatos cometidos em nome da ideologia? Apenas eles, os ilegais, que hoje estão no poder...”.
Fiquemos por aqui, pois não quero provocar náuseas nos meus leitores.
Eu militei na VPR entre abril/1969 e abril/1970, quando fui preso pelo DOI-Codi/RJ, sofri torturas que me deixaram à beira de um enfarte aos 19 anos de idade e me causaram uma lesão permanente.
Nesse ano em que me beneficiei do produto dos assaltos praticados pelas organizações de resistência à tirania implantada pelos usurpadores do poder, como foi minha vida de nababo?
Na verdade, recebia o estritamente necessário para subsistir e manter a minha fachada de vendedor autônomo.
No início, fui obrigado a me abrigar em locais precaríssimos, como o porão de um cortiço na rua Tupi, próximo da atual estação do metrô Marechal Deodoro, na capital paulistana. Era só o que eu conseguia pagar com o produto dos assaltos.
Cada quarto era um cubículo mal ventilado. Enxames de pernilongos me atacavam durante o sono. Afastava-os com espirais que mantinha acesos durante a noite inteira... e me faziam sufocar.
O que mudou quando minha organização fez o maior assalto da esquerda brasileira em todos os tempos, apossando-se dos dólares da corrupção política guardados no cofre da ex-amante do governador Adhemar de Barros? Quase nada.
Era dinheiro para a revolução, não para gastos pessoais. Apesar de integrar o comando estadual de São Paulo e depois exercer papel semelhante no Rio de Janeiro, continuei levando existência das mais austeras.
Meu último abrigo foi o quarto alugado no amplo apartamento de uma velha senhora do Rio Comprido. Fazia tanto calor que eu era obrigado a dormir despido sobre o chão de ladrilhos, que amanhecia ensopado de suor.
Quando tinha de abandonar às pressas um desses abrigos, todos os meus bens cabiam numa mala de médio porte. Vinham-me à lembrança os versos de Brecht, “íamos pela luta de classes, desesperados/ trocando mais de países que de sapatos”.
Havia, sim, um dinheiro extra, que equivaleria a uns R$ 10 mil atuais. Mas, tratava-se do fundo a que recorreríamos caso ficássemos descontatados e tivéssemos de sobreviver ou deixar o país por nossos próprios meios, sem ajuda dos companheiros que já estariam presos ou mortos.
Nenhum de nós gastava essa grana, era ponto de honra. Os fundos de reserva acabaram chegando, intactos, às garras dos rapinantes que nos prendiam e matavam. Nunca prestaram conta disso, nem dos carros, das armas e até das peças de vestuário que nos tomaram.
E, mesmo que tivéssemos dinheiro para esbanjar, como o gastaríamos? Éramos procurados no país inteiro, com nossos nomes e fotos expostos em cartazes falaciosos.
Eu, que nunca fizera mal a uma mosca, aparecia nesses cartazes como “terrorista assassino, foragido depois de roubar e assassinar vários pais de família”. O Estado usava o dinheiro do contribuinte para me fazer acusações mentirosas e difamatórias!
Para manter as aparências, éramos obrigados a sair cedo e voltar no fim do dia. Os contatos com companheiros eram restritos ao tempo estritamente necessário para discutirmos os encaminhamentos em pauta; dificilmente chegavam a uma hora.
Sobravam longos intervalos, com nada para fazermos e a obrigação de ficarmos longe de situações perigosas. Tínhamos de procurar locais discretos, tentando passar despercebidos... por horas a fio. Sujeitos a, em qualquer momento, sermos surpreendidos por uma batida policial.
Vida amorosa? Dificílima. Cada momento que passássemos com uma companheira era um momento em que a estávamos colocando em perigo. Ninguém corria o risco de ir transar em hotéis, sempre visados (e nossa documentação era das mais precárias, passei uns oito meses tendo apenas um título eleitoral falsificado). E as facilidades atuais, como motéis, quase inexistiam.
Aos 18/19 anos, senti imensa atração por duas aliadas, uma em São Paulo e outra, meses mais tarde, no Rio de Janeiro. Com ambas, o sentimento era recíproco. E nos dois casos mal passamos dos beijos apaixonados com que nos cumprimentávamos e despedíamos. Qualquer coisa além disso seria perigosa demais.
Enfim, esta é a vida que levávamos, acordando a cada manhã sem sabermos se estaríamos vivos à noite, passando por freqüentes sustos e perigos, recebendo amiúde a notícia da perda de companheiros queridos (eu até relutava em abrir os jornais, tantas eram as vezes que só me traziam tristeza).
Sobreviver alguns meses já era digno de admiração. Ao completar um ano nessa vida, eu já me considerava (e era considerado pelos companheiros) um veterano. Caí logo em seguida.
Dos tolos que saem repetindo essas ignomínias marteladas dia e noite pela propaganda enganosa da direita, nem um milésimo seria capaz de encarar a barra que encaramos, não pelas motivações ridículas que nos atribuem, mas por não agüentarmos viver, e ver nosso povo vivendo, debaixo das botas dos tiranos!
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