Celso Lungaretti
Um livro que me fascinou quando jovem foi O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde. Desde criança eu curtia os filmes e gibis de terror, mas nunca me deparara com uma história sobre as artimanhas do diabo que tivesse abordagem literária, sofisticada. Adorei.
Para quem não conhece a história, Dorian Gray é um moço belíssimo que, ao ver seu esplendor fielmente reproduzido numa pintura, exclama algo do tipo: "Ficarei velho e feio, enquanto o quadro permanecerá sempre igual. Eu daria a alma para que ocorresse o contrário".
Efetivamente, é a tela que passa a estampar as marcas do envelhecimento e da vida dissoluta de Dorian Gray, enquanto o próprio continua com figura angelical.
Lá pelas tantas, horrorizado com os traços repulsivos daquele espelho de sua alma, Dorian tenta atenuá-los praticando o bem por uns tempos. Aí, vai ver o efeito que isto produziu no quadro e constata que a única mudança foi para pior: a imagem passara a exibir um sorriso hipócrita.
Esta aí algo de que não se pode acusar o presidente Luiz Inácio Lula da Silva: tem muitos defeitos, mas hipócrita não é.
Comentando a repercussão na imprensa da farra das passagens aéreas, Lula aconselhou: "Faça um levantamento da história da Câmara e veja se algum dia foi diferente. Sempre foi assim, não sei por que as pessoas não têm coragem de assumir as coisas como elas são".
Segundo ele, o assunto é mais velho do que a descoberta do Brasil. E admitiu ter procedido exatamente da mesma maneira quando era deputado: "Não acho um crime um deputado dar uma passagem para um dirigente sindical ir a Brasília. Eu, quando era deputado, muitas vezes convoquei dirigentes da CUT, dirigentes de outras centrais para se reunirem com passagem do meu gabinete".
Parece ainda não ter-se dado conta de que a militância, ao comer o pão que o diabo amassou para conduzir o PT ao poder, sonhava com a moralização da política brasileira, não com a admissão de práticas imorais sob o pretexto de que "sempre foi assim".
Lula também será tudo, menos hipócrita, ao receber (dia 6) no Brasil o presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad, logo após ele ter negado a existência do Holocausto.
Entendamo-nos: é criticável que o extermínio dos judeus por parte dos nazistas seja tão enfatizado pela indústria cultural, enquanto relega a plano infinitamente inferior os genocídios praticados pelos hitleristas contra outros povos por eles considerados inferiores. Fala-se demais nos 6 milhões de judeus que o III Reich assassinou e de menos, p. ex., nos 20 milhões de soviéticos, idem.
O pior é que muitas vezes isto, implicitamente, acaba sendo utilizado como justificativa para as atrocidades que Israel comete na atualidade, como se os palestinos devessem pagar pelos pecados de Hitler.
Se Ahmadinejad tivesse feito as ressalvas corretas, não mereceria reprovação. Preferiu tapar o sol com a peneira, negando a verdade histórica: os judeus também foram massacrados pelos nazistas.
Mas, por uma questão de coerência, Lula não poderia mesmo considerar a declaração falaciosa de Ahmadinejad um motivo para desconvidá-lo ou para remarcar a visita.
Afinal, sempre que se discutiu a versão brasileira do Holocausto (as atrocidades cometidas pela ditadura militar contra os resistentes e contra cidadãos que, mesmo sem estarem envolvidos em atividades políticas, despertaram suspeitas das otoridades, como os moradores do Araguaia), a atitude de Lula tem sido a de pregar o esquecimento.
Foi ele quem proibiu seus ministros de agirem no sentido da revogação da Lei de Anistia de 1979. E é ele o responsável último pelos sucessivos pareceres da Advocacia Geral da União, no sentido de que tal anistia autoconcedida pelos torturadores é definitiva e impede a punição dos Ustras da vida.
Então, seria hipócrita Lula tomar qualquer atitude contra Ahmadinejad por ele negar atrocidades ao invés de esquecê-las, simplesmente.
E hipócrita Lula não é.
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