Sant'Anna de Stazzema: o fascismo como mal absoluto

Em desrespeito cabal à memória das 560 pessoas violentadas, humilhados, torturadas, trucidadas e queimadas e das centenas de milhares de populares italianos golpeados pelo fascismo, nesse 7 de setembro de 2008, Gianni Alemanno, atual prefeito de Roma, declarou durante visita ao Museu do Holocausto, em Israel, que não houve mal absoluto no fascismo (...) Por Florence Carboni (*).


A Toscana é famosa por suas cidades medievais e renascentistas, como Florence, Arezzo, Volterra, Siena, e morros suaves recobertos de parreiras e oliveiras, dominados velhos casarões protegidos por altos ciprestes. Não é um estereótipo: essa Toscana existe e continua atraindo especuladores imobiliários e multidões de turistas interessados por seu precioso acervo artístico e suas belezas naturais.

No noroeste da região da Toscana, a cidade de Lucca, além de rico patrimônio arquitetônico, mantém ainda intactas suas muralhas renascentistas. Porém, nem toda a província de que Luca é capital parece-se às paisagens símbolos da Toscana. Quem avança de Lucca para o norte, depara-se com a Garfagnana, situada nos Alpes Apuanos, formação montanhosa que se destaca dos Apeninos setentrionais, avançando em direção à estreita planície da costa tirrênica, ao oeste, ao golfo de La Spezia, ao norte, e aos montes pisanos, ao sul.

Região Pobre, Pobre Região

Desde a Antiguidade, o subsolo singular dessa serra ensejou uma intensa atividade de mineração, com destaque para a extração do famoso mármore de Carrara. Nessa região pouco favorável à agricultura, a população sobreviveu sobretudo graças ao pastoreio e à exploração de produtos florestais, entre eles a castanha e sua farinha.

Chega-se a Sant’Anna, distrito do município de Stazzema, por uma das tantas estradas tortuosas que percorrem essa serra agreste. Sant’Anna di Stazzema tem poucos atrativos turísticos. Trata-se de uma aldeia de tipo “aberto”, comum a essas regiões serranas, formada por conjuntos de casas, em geral encravadas nas encostas dos morros altos e nos pequenos vales. No século 18, a edificação de uma pequena igreja deu origem ao centro dessa aldeia estendida.


Até agosto de 1944, a população de Sant’Anna era de uns quatrocentos habitantes, à qual se haviam agregado cerca de mil refugiados, provenientes do litoral da Versília e de outras regiões da península, ocupados pelos alemães. Em uma manhã de 12 de agosto daquele ano, praticamente toda a população da aldeia e quase duzentos refugiados foram massacrados em um dos tantos torpes crimes cometidos pelas tropas nazi-fascistas contra a população italiana.

República Fascista de Saló

Em 1943, após o desembarque dos Aliados na Sicília e a queda de Mussolini e do fascismo, o general Pietro Badoglio, que fora membro ativo do governo fascista, comandando as forças italianas na invasão da Etiópia, foi nomeado chefe do novo governo pelo rei Vittorio Emanuele. A esse título, assinou o armistício com os Aliados, em 8 de setembro de 1943, e fugiu, a seguir, junto com a família real, em direção ao sul da península, já livre dos alemães, deixando os habitantes da capital à mercê dos nazistas. A fuga do governo, que deixou o exército acéfalo, determinou a morte e a deportação nos campos nazistas de milhares de militares italianos.

Encarcerado pelos Aliados em julho de 1943, Mussolini foi libertado dois meses mais tarde pelos nazistas que, com o apoio do pequeno exército da República fascista de Salò, formada às pressas no norte da Itália, ocuparam a parte setentrional da península, de onde foram empurrados, cada vez mais para o norte, pela ação da guerrilha comunista italiana e das tropas aliadas, entre as quais encontravam-se os trinta mil soldados da Força Expedicionária Brasileira.

Após a liberação de Roma, em 4 de junho de 1944, as forças militares nazi-fascistas foram obrigadas a retroceder para uma nova linha defensiva [Linha Gótica] que atravessava a Itália de oeste a leste, do mar Tirreno ao Adriático, passando pelas regiões da Emília-Romanha e da Toscana, um pouco acima das cidades de Florence, Prato, Pistoia e Lucca.

Luta Guerrilheira

As zonas montanhosas do Apenino e dos Alpes Apuanos – e portanto da Garfagnana, onde se encontra Sant’Anna di Stazzema – constituíam refúgio privilegiado para as divisões da guerrilha comunista que, engrossadas crescentemente por ex-soldados italianos, lançavam freqüentes assaltos contra os ocupantes nazistas e seus cúmplices fascistas.


Para impedir que homens e mulheres se incorporassem à resistência, reprimir as ações da guerrilha e desalojar os combatentes de seus refúgios, os nazi-fascistas promoviam batidas sistemáticas nas aldeias de montanha, que serviam também para arrolar à força soldados para os exércitos da República de Salò, não hesitando em massacrar a população civil para mantê-la subjugada nem que fosse pelo terror.

Na manhã de 12 de agosto de 1944, a população de Sant’Anna di Stazzema possivelmente interpretou as notícias sobre a chegada, pela pequena estrada serrana, de uma coluna alemã, como mais uma operação para obter soldados para as forças armadas fascistas. Devido a isso, os homens esconderam-se em posições mais elevadas dos montes, permanecendo mulheres, velhos e crianças na aldeia.

Vingança contra a População

Ninguém imaginava o desdobramento dos sucessos. Os habitantes do núcleo central da pequena povoação foram despertados do sono por soldados alemães e administradores fascistas locais e reunidos diante da igreja, onde todos, homens e mulheres, velhos, adolescentes, crianças e bebês, foram sumariamente fuzilados e, a seguir, queimados. Outros foram perseguidos e executados enquanto se refugiavam na mata ou foram trucidados nas velhas e pobres casas de pedra, sendo queimados a seguir junto aos poucos móveis e animais.

Mais tarde, após longas horas escondidos em antigas minas e pedreiras da região, ao voltarem para suas casas, os homens encontraram um cenário de horror: só lhes restou enterrar as centenas de mortos em valas comuns e tentar reconstruir o que sobrara de suas casas, de seus campos, de suas vidas arrasadas pela bestialidade nazi-fascista.

O crime contra a pequena e desprotegida aldeia não foi um mero acesso de crueldade. Como boa parte das tropas nazi-fascistas da região, a divisão alemã responsável pelo massacre da população civil de Sant'Anna, vinha sendo duramente atacada pela resistência. Incapazes de reprimir e destruir essa guerrilha, vingaram-se simplesmente, de modo impiedoso, contra inermes mulheres, velhos, crianças e bebês.

Memória e Impunidade

Os parentes das vítimas e os poucos sobreviventes esperaram até 2005 para verem condenados à prisão perpétua dez ex-membros das SS que tinham seus nomes, junto com 405 outros responsáveis por crimes perpetrados contra a população civil italiana entre 1943-1945, registrados em 695 processos em poder da Justiça italiana desde o fim da guerra, mas mantidos sob segredo por pressão do governo USA, interessado no apoio dos conservadores alemães e italianos contra o movimento social e operário da península. Apenas em 1994, esses registros foram encontrados por acaso, num armário fechado.

Em inícios dos anos 2000, durante o processo penal que se desenvolveu no Tribunal Militar de La Spezia, alguns testemunhos – como Mauro Pieri, Lídia Pardini e Alba Battistini, que na época do massacre, ao qual escaparam milagrosamente, tinham 12 anos os dois primeiros e 15 a última –, atestaram formalmente que entre os algozes havia quem falasse italiano, até mesmo no dialeto e com o sotaque da região. Não houve investigação ou processo contra esses criminosos fascistas italianos.

Em desrespeito cabal à memória das 560 pessoas violentadas, humilhados, torturadas, trucidadas e queimadas e das centenas de milhares de populares italianos golpeados pelo fascismo, nesse 7 de setembro de 2008, Gianni Alemanno, atual prefeito de Roma, ex-militante do Movimento Social Italiano, partido neo-fascista fundado em 1946, e, após sua dissolução, da também direitista Aliança Nacional, declarou durante visita ao Museu do Holocausto, em Israel, que não houve mal absoluto no fascismo, mas apenas nas leis raciais que esse promoveu, segundo ele, em uma outra agressão à história, apenas cedendo à pressão de Hitler.
(*) Florence Carboni, 56, italiana, lingüista, é professora do curso de Letras da UFRGS.


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