Por Bruno Ribeiro
Milton Hatoum é o escritor brasileiro mais comentado do momento. Desde sua estréia - com o romance Relato de Um Certo Oriente (Cia. das Letras, 1989) - vem atraindo olhares atentos da crítica literária. Mas é com seu segundo livro - Dois Irmãos (Cia. das Letras, 2000) - que o autor amazonense, nascido em Manaus, começou a obter o reconhecimento do leitor comum. Filho de pai libanês e mãe brasileira, Hatoum combina em sua obra referências da cultura árabe e indígena. Partes do universo da infância do menino que não via TV e sonhava ser escritor por causa do avô, um contador de histórias que o remetia à um mundo mágico, mas real: a Amazônia.
Durante muitos anos, Milton Hatoum, 56, foi professor de Língua e Literatura Francesa na Universidade do Estado do Amazonas (UEA), em Manaus. Porém, sentindo a necessidade de alavancar a carreira, mudou-se para São Paulo, onde achou a consagração definitiva com Cinzas do Norte (Cia. das Letras, 2005). Traduzido para várias línguas e comercializado em diversos países, o romance permitiu que o autor pudesse viver exclusivamente de sua literatura. Poucos no Brasil usufruem, atualmente, do reconhecimento e do prestígio de Hatoum. Conversei com o escritor na ocasião do lançamento de seu mais recente romance, Órfãos do Eldorado (Cia. das Letras, 2008), na Livraria Saraiva, em Campinas.
Bruno Ribeiro - Em uma entrevista, o senhor chegou a citar seu avô como o responsável por seu gosto pela literatura. De que maneira ele exerceu esta influência?
Milton Hatoum - Meu avô foi a biblioteca oral da minha infância. Meu primeiro livro lido, na verdade, foi um livro ouvido. Nunca conheci ninguém que contasse histórias tão bem como ele. Certamente a minha infância teria sido mais pobre sem meu avô. Eu estava na Espanha quando ele morreu e só então, quando soube de sua morte, me dei conta da importância que ele tinha sobre minha formação.
Como foi a sua infância em Manaus?
Tive a sorte de ter passado a infância em uma cidade onde não havia TV. Para quem quer escrever, para quem sonha em ser escritor, é uma vantagem imensa não ter TV em casa. Fui uma criança simples, como todas as crianças daquela região. Mas considero que minha infância foi muito rica. Tive a possibilidade de conviver com todo o tipo de gente e de cultura. De minha família ouvia histórias da Síria, do Líbano... Manaus era uma cidade que recebia muitos estrangeiros - sobretudo imigrantes árabes, judeus marroquinos, portugueses. Sem falar na forte tradição indígena. Tudo isso estimulou a minha imaginação.
É comum que seu nome apareça associado à cultura árabe no Brasil. O senhor se considera um escritor brasileiro?
Quanto a isso, deixe-me dizer uma coisa. No lançamento do meu primeiro romance nos Estados Unidos, colocaram um cartaz me apresentando como autor líbano-brasileiro. Comecei dizendo: ‘Olha, isso não faz sentido no Brasil, vocês podem tirar isso aí’. Até o meu pai, que era libanês, se sentia brasileiro. Quando chegou ao Brasil, o pai quis que os filhos falassem português. Porque, para ele, a pátria era a língua. Eu diria mais: é a língua e a infância. Eu falo português e as recordações da minha infância são amazônicas. Só posso ser brasileiro.
Como sua família se integrou à cultura da Amazônia? Não houve um estranhamento inicial?
A partir do momento em que você deixa sua terra para tentar a vida em outro país, você tem que se adaptar. Ou você se integra à nova realidade ou você é engolido por ela. Meu pai se manteve fiel à religião árabe, mas sabia que não poderia exigir o mesmo dos filhos. Mas é impressionante a capacidade que tem o Brasil de absorver outras culturas e transformá-las. A Amazônia é onde isso acontece com mais ênfase. Lá os nativos continuam se casando com imigrantes há 500 anos, numa fusão absolutamente saudável de culturas. Nós já superamos a questão das imigrações há muito tempo. Essa questão que tanto incomoda a Europa e os Estados Unidos, nós já superamos. A gente não está preocupado se a mistura de um caboclo com um alemão vai dar certo. Nosso problema é outro.
E quais são os grandes problemas que o Brasil precisa resolver?
Todo mundo sabe quais são os problemas do Brasil: a favela, a violência, a saúde, a falta de escolaridade do povo, a corrupção das instituições... Enfim, as necessidades básicas que não são atendidas. Quando resolvermos estes problemas que tanto nos envergonham, você não tenha dúvidas, seremos uma grande nação. Porque estamos à frente do resto do mundo em uma série de coisas, como na miscigenação. Nos Estados Unidos, a mistura é tratada como choque de civilizações. Aqui a coisa é resolvida na cama ou no botequim. O milagre brasileiro, eu diria, é a assimilação muito rápida das imigrações, a diluição das origens e das identidades.
O senhor acredita que a sua literatura pode ter alguma responsabilidade política ou social?
Não vejo um sentido missionário na literatura como um todo, embora haja escritores que acreditem nisso. Eu respeito quem pensa diferente, mas não acho que a literatura seja uma missão ou deva cumprir um papel político. A literatura é apenas uma forma de conhecimento. É uma forma de indagação da realidade. Ela cria um universo ficcional para questionar a realidade. A literatura é uma forma de conhecer a si mesmo e ao outro. Nesse sentido, ela pode ter alguma função social.
O senhor diz que o maior mistério da literatura é o leitor. Por quê?
Porque a gente desconhece completamente o leitor. Mente quem diz o contrário. Quando publiquei um livro de poesia, em 1978, eu sabia exatamente quem eram os meus leitores: minha mãe, meu pai e oito amigos (risos). Hoje não. Eu sou lido em todo o Brasil e em outros países também. E sempre me impressiono com as pessoas que vêm falar comigo. Viajo aos lugares mais pobres e afastados do país e sempre aparece alguém dizendo que leu o meu livro. O Brasil mudou muito nestes últimos anos. Engana-se quem pensa que o pobre continua sendo aquele coitadinho que não tem acesso à informação e à leitura.
Como o senhor explica o fato de ser um dos autores mais lidos entre o público acadêmico e ser reconhecido também pelo leitor comum?
A gente tem o péssimo costume de subestimar o povo brasileiro. Dizemos que o povo não gosta de ler. Mas é aí que a gente se engana. Dois Irmãos conquistou o público acadêmico, mas também pegou o leitor comum porque conta uma história parecida com a história de muitos de nós. As pessoas não estão percebendo que há uma massa de brasileiros despossuídos com acesso à internet e cartão de crédito. Essas pessoas não estão mais esperando que alguém lhes explique as coisas. Estão indo atrás do conhecimento, comprando livros pelo computador, correndo atrás do prejuízo. Tenho notado que, nos últimos seis ou sete anos, que coincidem com o governo do Lula, o leitor brasileiro deixou de ser o cara de classe média alta.
Por que o senhor tomou a decisão de sair de Manaus e se mudar para São Paulo?
Há cerca de oito anos, minha vida começou a andar para trás. Estava tudo errado. Nada mais estava acontecendo de positivo na minha vida e eu resolvi vir para o Sudeste. São Paulo me libertou, porque minha vida de escritor começou quando cheguei aqui, em 2000. A mudança teve uma razão muito pessoal e objetiva, não saí rompido com nada ou ninguém. Continuo gostando de Manaus do mesmo jeito.
O senhor está vivendo exclusivamente de literatura?
Hoje sim. Comecei a viver de literatura com Dois Irmãos. Eu sempre fui pessimista, achava que ia ser um desastre, que ninguém ia ler o meu livro. Aí o meu editor (Luiz Schwartz) apostou comigo que o romance alcançaria um público considerável no Brasil, que eu poderia deixar as aulas na universidade e, finalmente, ser apenas escritor. Paguei para ver e perdi a aposta, porque o livro bateu recordes de venda, foi adotado em escolas e universidades e traduzido para outras línguas. Para os padrões brasileiros, 50 mil exemplares vendidos é um número excelente. Os editores acham muita coisa. Eu acho um exagero.
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