RASTREANDO FONTES DA UTOPIA FREIREANA: marcas cristãs e marxianas do legado de Paulo Freire, por Alder Júlio Ferreira Calado

Em lúcido e erudito ensaio, o educador popular e doutor em sociologia Alder Calado, recupera, desde o ponto de vista da teologia da libertação e do pensamento de Karl Marx, as principais fontes do pensamento de Paulo Freire.


“Eu sou um intelectual que não tem medo de dizer que eu amo as gentes e amo o mundo. E é porque amo as pessoas e amo o mundo, que eu brigo para que a justiça social se implante antes da caridade.” (Paulo Freire)

Um dos maiores pensadores contemporâneos, de reconhecida projeção nacional e internacional, Paulo Freire continua a exercer considerável influência na atualidade. Por diferentes motivações e por trilhas diversas, o já amplo reconhecimento de sua densa trajetória existencial e de seu legado biobibliográfico pode ser atestado por significativas categorias ou elementos conceituais por ele cunhados ou criativamente ressignificados/reelaborados, sem, porém, lesar suas respectivas fontes inspiradoras.

A despeito da variação semântica com que são por tantos e tantas utilizados, de autoria de Paulo Freire ou resultantes de efetiva incorporação, emergem de seus escritos categorias, expressões ou conceitos que passaram a ser tratados como traços bem característicos de seu legado. Trata-se de categorias, expressões ou conceitos tais como: círculo de cultura, diálogo, conscientização, educação libertadora, pedagogia do oprimido, educador-educando, educando-educador, palavras geradoras, universo vocabular, mundo da natureza, mundo da cultura, leitura de classe, ser inconcluso, ser para si, ser relacional, ser que se vai tornando, vocação ontológica de sujeito, ser de esperança, inédito viável, práxis pedagógica, entre outros. Conceitos que, por certo, dão respaldo a títulos que lhe são atribuídos, a exemplo de Andarilho da Utopia , Andarilho da Esperança ou, como também o chamo, Tecelão da Utopia , entre outros.

Com efeito, resulta difícil (re)visitar o legado biobibliográfico de Paulo Freire, sem que isso reacenda, sob múltiplos aspectos e circunstâncias, sua condição de trabalhador cultural, de “plantador de idéias” , de agente de uma Utopia libertadora, a tecer, por onde andasse, fios grávidos de Utopia, mantendo acesos os mais generosos sonhos de uma sociedade alternativa, construída na justiça e na solidariedade, o que sempre o motivou a brigar “para que a justiça social se implante antes da caridade.”, conforme depoimento seu, recolhido no CD “O Andarilho da Utopia”, produzido pela Rádio Nederland, em parceria com instituições brasileiras.

Por outro lado, por força inclusive do caráter ético-político de sua proposta pedagógica - e aqui distinguindo-se, não raro, da praxe da Academia -, as categorias centrais por ele trabalhadas não se esgotam no plano estritamente acadêmico. Rompem seus muros, desbordam da Academia, ganham a rua, alcançam a casa, impregnam as relações do Cotidiano.

A propósito da dimensão ética que atravessa o percurso existencial e o legado bibliográfico de Paulo Freire, importa ter presente o juízo avaliativo que Enrique Dussel expressa acerca de Paulo Freire, ao contrapor o “exercício da razão ético-crítica” freireana – relevante fundamento da Ética da Libertação - à mera elucubração discursiva da ética de mercado, que se contenta com recursos cognitivos como solução para os embates éticos. (cf. DUSSEL, 2000).

Um percurso pelas principais produções de Paulo Freire permite-nos perceber, a partir mesmo das citações nelas encontradas, a variedade de autores e mesmo de correntes de pensamento com que ele estabeleceu diálogo. Como assinalou Paulo Rosas, a justo título, contemplando especialmente sua atuação intelectual correspondente ao “período do Recife”: “À medida que Freire aprofundava e, de uma certa maneira, diversificava suas reflexões, ele diversificava também suas fontes” (ROSAS, 2004, p. 25).

Aí também reside sua marca de homem do Diálogo. Não costumava limitar seu exercício de interlocução a um círculo restrito de autores, ou a uma única corrente de pensamento. Preferia, também nisso, portar-se como andarilho dialogante que, partindo de seu quadro próprio de referência, não hesitava em estender sua tenda dialogante a distintas grades de formulação teórica.

Sempre, porém, o fazia, a partir de situações concretas. Diferentemente de uma posição academicista, cujos representantes costumam superestimar infindáveis exercícios de elucubração, tomados pela sede de “conhecer por conhecer”, a perspectiva freireana sempre recorre à teoria, a partir das indagações e desafios suscitados pelo chão do cotidiano, em busca de pistas ou elementos de respostas em relação aos desafios colocados pelas situações concretas.

É bem assim que vai, por exemplo, a Hegel como mediação para um entendimento mais consistente a respeito de consciência independente/consciência dependente (cf. FREIRE, 1973:46), quanto aos desafios do efervescente contexto histórico de mobilização característico daquele período, inclusive por parte dos estudantes. Impelido, igualmente, pela indignação contra a avareza dos privilegiados, que têm olhos exclusivamente para os próprios interesses, Freire recorre a Erich Fromm, em busca de entendimento dessa postura “necrófila” dos opressores, para quem “la persona humana son apenas ellos. Los otros son ´objeto, cosas´” (...) “La humanización les pertenece. La de los otros, aquella de sus contrarios aparece como subversión.” (ib., p. 58/59)

Simone de Beauvoir e Jean Paul Sartre constituem outros interlocutores de Freire, graças à sua contribuição ao esforço de desvelamento da consciência de opressores e oprimidos. Em relação aos primeiros, Freire cita uma afirmação percuciente de Simone de Beauvoir, ao sustentar que o que pretendem os opressores “es transformar la mentalidad de los oprimidos y no la situación que los oprime.” (ib., p. 79), enquanto em Sartre busca inspiração para a formulação do seu conhecido conceito de consciência bancária, que, em Sartre, corresponde à “concepción ´digestiva` o ´alimenticia` del saber” (FREIRE, 1973:83).

Como se percebe, a rememoração de fontes do pensamento freireano bem como o exercício de interlocução com pensadores de ontem e de hoje já foram, direta ou indiretamente, tomados como objeto de estudo por vários autores, entre os quais aqui destacamos Beisiegel (1992) e Rosas (2004). Diferentes correntes e autores são, com efeito, apontados por estes e por outros como interlocutores de Paulo Freire.

A exemplo desses, recorre a tantas e tantos autores – Karl Jaspers, Karl Mannheim, Reinhold Niebuhr, Zevedei Barbu, C. Wright Mills, Oliveira Viana, Teilhard de Chardin, Tristão de Athaíde, Simone Weil, Emmanuel Mounier, Gilberto Freyre, Caio Prado Júnior, Anísio Teixeira, Fernando de Azevedo, Pierre Furter, Frantz Fanon, Albert Memmi, Hans Freyer, Álvaro Vieira Pinto, Celso Furtado, Karel Kosik, Gunard Myrdal, Maria Edy Ferreira, Lucien Goldman, Jomard Muniz de Brito, Jarbas Maciel, Celso de Rui Beisiegel, Francisco Weffort, Fernando García (“hondureño, alumno nuestro”), entre outros e outras mais freqüentes em suas primeiras obras.

E, a justo título ou não, não falta quem, sobretudo nas últimas décadas, nele reconheça afinidades relevantes com figuras dos mais distintos (ou distantes?) perfis político-filosóficos.

A respeito desse registro, muita coisa pode ser dita. De minha parte, entendo que, no percurso de uma vasta produção bibliográfica, dificilmente não se identifique, aqui, ali, algum traço de afinidade pontual, inclusive entre autores e autoras globalmente dissidentes, nas teses essenciais. O que parece preocupante é o esforço por vezes constatado de se tentar converter traços pontuais de afinidade efetivamente observáveis em elementos suficientes de uma afinidade filosófico-política substantiva. Sobre isso, tomando inclusive Freire como alvo de analogia com outros autores (tanto de modo convincente quanto de modo duvidoso), vários autores se têm pronunciado com argumentos, ao meu ver, consistentes. (cf., por ex., DUSSEL, 2000; ANDREOLA, 2007; ARAÚJO FREIRE, 2007; PITANO, 2007).

Dussel, por exemplo, elenca uma lista de autores cuja abordagem entende pouco afinada com sua concepção de Ética, enquanto avalia como próxima da sua a concepção de Ética trabalhada por Paulo Freire. Com relação aos que considera distanciados de sua concepção de Ética, reputa-os portadores de uma postura ora cognitivista, ora consciencialistas, ora individualistas, ora ingênuos. Nesse elenco inclui nomes como os de Habermas e Piaget, entre outros. (cf. DUSSEL, 2000, pp. 428-435).

Tomando como referências fundamentais a Casalli e a Dussel, Ana Maria Araújo Freire, por sua vez, segue a mesma linha de argumentação do segundo, ao afirmar que:

a natureza ético-humanista de Paulo responde por um peculiar modo do seu pensar sistematizado, infelizmente tão negado quanto repudiado pelos academicistas e pelos adeptos da ética do discurso e a ética do mercado (ARAÚJO FREIRE, 2007, p.178)

Com comprovada experiência de atenta observação a distintos exercícios de analogia, empreendidos por diferentes pesquisadores, em suas teses e dissertações (de algumas das quais tendo sido Examinador), confrontando Freire a diversos outros autores (Kant, Hegel, Malinowski, Peaget, Mounier, Foucault, Morin, Habermas...), Balduíno Andreola, em instigante entrevista a esse respeito, e tomando quatro critérios de classificação que denominou jocosamente de “aproximações antibióticas” (mera contraposição entre atualizados X ultrapassados); “aproximações biotônicas” (pretendendo consolidar a imagem freireana, tomando de empréstimo reforço em autores considerados de maior aceitação acadêmica); “aproximações simbiótico-idealistas” (vêem-se apenas afinidades); e “aproximações simbiótico-dialéticas” (reconhecem-se afinidades e distanciamentos). No caso das aproximações ou distanciamentos entre Freire e Habermas, eis o que ele afirma:

as aproximações simbiótico-dialéticas, como a que opera Jaime Zitkoski[22], em sua tese de doutorado, são as que consideram que existem, sim, afinidades, convergências e complementariedades, entre Freire e Harbemas, mas analisam também as diferenças, algumas pequenas, outras maiores, e, finalmente, as profundas e inconciliáveis, entre uma obra individual de um autor, Habermas, construída a partir de uma visão eurocêntrica, e a de Freire, que elabora a Pedagogia do oprimido, no diálogo com os sujeitos históricos, os oprimidos ou “condenados da Terra”, segundo Fanon[23], da América Latina e do mundo, no contexto de um processo continental de libertação, violentamente reprimido e sufocado pelos regimes militares, e que tem suas expressões teóricas numa Filosofia da Libertação, na Teologia da Libertação[24], numa Pedagogia da Libertação, na Psicoterapia do Oprimido de Alfredo Moffat[25], no Teatro do Oprimido de Augusto Boal[26], e numa gama imensa de obras que teorizam a práxis histórica da Educação Popular e dos movimentos populares, entre os quais se distingue o MST. (cf. Entrevista concedida por Balduíno Andreola, in http://amaivos.uol.com.br/templates/amaivos/amaivos07/noticia/noticia.asp?cod_noticia=8773&cod_canal=41 ).

Ainda consoante à mesma linha de interpretação, Sandro de Castro Pitano, ao destacar três diferenças relevantes entre Freire e Habermas (uma de natureza contextual, outra de caráter teórico e uma terceira de corte metodológico), assinala:

A ação comunicativa pressupondo materializar-se entre sujeitos competentes do ponto de vista moral, cognitivo e lingüístico, revela um formalismo inócuo diante das contradições sociais do nosso contexto. A proposta habermasiana concebe, não o sujeito da Educação Popular, como em Freire, mas um ser humano genérico (...)

E conclui, na mesma página: “Talvez as novas leituras exijam bem mais um retorno aos referenciais teóricos tradicionais, resgatando conceitos, do que a assunção de novos modelos ou teorias” (PITANO, 2008, p. 133).

Como se percebe, é amplo o leque de autores e correntes tomados, a justo título ou não, como interlocutores ou como referências fontais do pensamento de Freire, aqui nos propomos acentuar apenas duas referências fontais, sem deixarmos de reconhecer a incidência em Paulo Freire de outras correntes de pensamento e respectivos representantes.

Entendendo que essas duas correntes correspondem, de modo mais representativo, a suas referências axiais: iniciamos por uma breve incursão pela corrente do Cristianismo, o Cristianismo Social, tal como assumido pela Teologia da Libertação. Em seguida, empreendemos um breve percurso analógico pelo legado marxiano, lido sob um ângulo humanista.

1. Incidência do pensamento social cristão nos escritos freireanos

Com relação à incidência em Paulo Freire de relevantes traços do Cristianismo, sob a ótica da Teologia da Libertação, vale ressaltar que se trata provavelmente da corrente mais enraizada, não apenas em seu legado bibliográfico, mas em todo o seu percurso existencial.

Não é por acaso que reconhecidas figuras da Teologia da Libertação não hesitam em associá-lo aos teólogos da libertação. A despeito de não ter sido esta a área a que tenha consagrado o melhor de seus escritos, Paulo Freire contribui com a formulação da Teologia da Libertação, por meio de sua proposta ético-filosófica e política.

Como se sabe, a Teologia da Libertação, seguindo o famoso “Método Ver-Julgar-Agir do Movimento da Ação Católica, inclusive em sua versão especializada (JAC, JEC, JIC, JOC, JUC, ACO), arranca da análise da realidade social (o “Ver” ou “mediação sócio-analítica”) para partir, em seguida, para o exame especificamente teológico, feito à luz dos textos fundantes do Cristianismo (o “Julgar”), do que resultam pistas práticas de caráter político-pastoral (“Agir”). O aporte freireano incide principalmente no exercício da “mediação sócio-analítica”.

Eis por que teólogos como Clodovis Boff, um dos principais teóricos da Teologia da Libertação, num dos seus escritos relevantes, no qual também propõe uma apresentação da Teologia da Libertação e de seus principais representantes, nos distintos continentes, não hesita em incluir na lista dos principais representantes desta mesma corrente no Brasil, ao lado de Rubem Alves, Leonardo Boff, Eduardo Hoornaert e J. B. Libânio, “P. Freire, pedagogo, agora em Genebra - simpatizante da TdL”. (cf. BOFF, 1978, p. 187).

Aliás, quanto a isso, Clodovis Boff não terá sido o único, nem o primeiro. É acompanhado ou seguido por outros pensadores, de diferentes áreas, inclusive da Filosofia, como é o caso de Roger Garaudy que, em artigo datado de 1978, a partir do próprio título (“A pedagogia de Paulo Freire e os teólogos da libertação”), já acenava também para tal relação. Relação igualmente atestada pelos laços que ligavam Paulo Freire a figuras como James Cone, um dos representantes mais respeitados da Teologia Negra da Libertação, de quem Paulo Freire chegou a prefaciar, ainda nos inícios dos anos 70, a edição argentina do seu famoso livro A Black Theology of Liberation, ocasião em que Paulo Freire justifica seu entusiasmo com a obra recém-lançada:

É que a “black theology”, de que Cone é uma das melhores expressões nos Estados Unidos, se identifica, indiscutivelmente, com a “teologia da libertação” que hoje floresce na América Latina. O profetismo de ambas não significa somente um falar em nome dos que se encontram proibidos de fazê-lo, mas, sobretudo, em lutar lado a lado com eles para que, transformando revolucionariamente a sociedade que os reduz ao silêncio, possam dizer, efetivamente, sua palavra. (FREIRE, 1984, p. 129).

Sem abrir mão do reforço desses testemunhos, o propósito axial deste item é o de, mediante uma breve incursão por seus principais textos, assinalar efetivas afinidades – umas mais, outras menos explícitas - entre elementos de textos fundantes do Cristianismo e o sentir-decidir-agir de Paulo Freire. Então, vejamos alguns casos.

- A Liberdade como vocação ontológica do Ser Humano – A esse respeito Paulo Freire reúne um amplo leque de afirmações, em seus distintos livros. Preocupado com o drama da opressão como realidade presente, não perdia o horizonte fundamental do Ser Humano, o de incessante busca de Liberdade, convencido que estava de que “Humanización o deshumanización, dentro de la Historia, en un contexto real, concreto, son posibilidades de los hombres como seres inconclusos y concientes de su inconclusión. Sin embargo si ambas son posibilidades, nos parece que solo la primera responde a lo que denominamos vocaación de los hombres.” (FREIRE, PO, 1971, p. 38).

Isto porque para Freire: “Existir ultrapassa viver porque é mais do que estar no mundo. É estar nele e com ele.” (FREIRE, EPL, 1971, p. 40, Nota 2). Uma plantinha, por exemplo, tem assegurada na Terra sua forma de vida, que é distinta da do Ser Humano. Para este não interessa qualquer forma de vida. Viver não é simplesmente vegetar. Como consciência do Universo, o Ser Humano, para se realizar, vai além de uma forma de vida vegetativa. A vocação do Ser Humano é para a Liberdade, que coincide com vida plena.

Precisamente aqui tem lugar na bibliografia freireana a inspiração cristã. O Reino que Jesus veio anunciar, e do qual Ele dá testemunho, é um Reino de Liberdade: “Para a Liberdade é que vocês foram chamados, irmãos”, afirma o apóstolo Paulo às comunidades da região da Galácia, na Ásia Menor (Gl 5, 13). Um Reino onde reina a Paz como obra da Justiça, e por isso, onde há vida plena: “Eu vim para que todos tenham vida e vida em abundância.” (Jo 10, 10). Ainda a propósito da centralidade que a Liberdade ocupa na experiência do Seguimento de Jesus, Comblin sustenta, a justo título, que “A vocação para a liberdade é o núcleo central do evangelho e o ponto de partida da nova humanidade.” (COMBLIN, 1998:12).

O ser humano como um ser inconcluso que vai se fazendo – Eis outro elemento recorrente nos escritos freireanos. Dos primeiros aos últimos. Se, por exemplo, em meados dos anos 60, ele sustentava que “Só na convicção do inacabado pode encontrar o homem e as sociedades o sentido da esperança. Quem se julga acabado está morto.” (FREIRE, EPL, 1971, p. 53), afirmação semelhante Paulo Freire vai reiterar, num dos seus últimos escritos, nos seguintes termos: “Onde há vida há inacabamento. (...) “entre homens e mulheres o inacabamento tornou-se consciente” (FREIRE, 1977, p. 55). Sinaliza a condição histórica, e portanto mutável, do Ser Humano, no que se aproxima de figuras como Simone de Beauvoir, ao sustentar a dimensão perfectível de mulheres e homens, que vão se tornando no processo histórico. Daí o sentido da esperança acima mencionado por Freire.

Também aí se observa uma herança cristã, cujos textos - do Antigo e do Novo Testamento - alertam ao Ser Humano de sua natureza finita, limitada, perfectível. Muito conhecido é o alerta pronunciado nas cerimônias da Quarta-Feira de Cinzas, na liturgia católica: “Lembra-te que és pó e em pó hás de tornar-te”, numa referência explícita ao livro do Gênesis (Gn 3, 19).

É a consciência de seus limites que permite ao Ser Humano apostar, com humildade, em suas potencialidades, nos dons que lhe foram confiados. É, com efeito, fundamental, no espírito da Bíblia, o exercício da consciência dos próprios limites, como condição para avançar a águas mais profundas, pois “o que é fraco no mundo Deus escolheu para confundir o que é forte”, afirma Paulo aos cristãos de Corinto (1 Cor 1, 27).

No Seguimento de Jesus, as grandes coisas vêm das pequenas: “[O Reino de Deus] é como um grão de mostarda: quando é semeado na terra, é a menor de todas as sementes; mas, depois de semeada, cresce e torna-se a maior de todas as hortaliças”. (Mc 4, 31-32).

Ter consciência dos próprios limites é condição para o exercício da auto-avaliação que passa, entre outros requisitos, pelo reconhecimento dos próprios descaminhos, a exemplo da lição que Jesus dá aos que se insurgiam contra a mulher flagrada em adultério: “Quem não tiver pecado, atire a primeira pedra.” (Jo 8, 7). Condição para o exercício de auto-crítica: “Hipócrita, tira primeiro a trave do teu olho, e então enxergarás direito para tirar o cisco do olho do teu irmão.” (Mt 7, 5).

O ser humano como expressão de uma experiência dialógica em movimento - A dimensão relacional é muito forte na experiência humana. E manifesta-se mais eficazmente por meio da ação dialógica, uma das categorias centrais do legado freireano. Na Pedagogia de Paulo Freire, ninguém se educa isoladamente, até porque a ação educativa, sendo um processo social, revela-se necessariamente coletiva, comunitária, sem que isso implique prescindir-se da individualidade, da dimensão pessoal dos protagonistas. A fecunda experiência dos círculos de cultura é também emblemática, a esse respeito.

São vastas e recorrentes, a esse propósito, as referências diretas e indiretas, na obra de Paulo Freire. Nele, o exercício dialógico é condição de afirmação da ação intercultural, mais do que da mera multiculturalidade, como costuma lembrar João Francisco de Souza. (cf., por ex., SOUZA, 2004).

Essa posição freireana também encontra lastro de afinidade na experiência cristã, na ótica da Teologia da Libertação. O Deus de Jesus de Nazaré revela-se pela Aliança feita com o seu Povo. Aliança pela qual esse Povo é chamado a ser um povo de irmãos, de diferentes tribos e nações, tendo-O como único Deus. Este quer reunir os dispersos, e o mecanismo do qual lança mão é o chamamento ao diálogo, ao entendimento, ao respeito, à partilha, ao serviço, à reciprocidade, à solidariedade, à construção da unidade na diversidade. Ação dialógica que vai além do discurso, funda-se na prática entre iguais: “Sabeis que aqueles que vemos governar as nações as dominam e os seus grandes as tiranizam. Entre vós, não deverá ser assim: ao contrário, aquele que dentre vós quiser ser grande, seja o vosso servidor” (Mc 10, 42-43). Assim se tornaram conhecidas e apreciadas as antigas comunidades cristãs, tal como descritas no livro dos Atos dos Apóstolos: “Eles se mostravam assíduos ao ensinamento dos apóstolos e à comunhão fraterna, à partilha do pão e às orações. (...) Ninguém considerava seu o que possuía, mas tudo lhes era comum.” (At 2, 42; 4, 32).

Em Freire, a ação dialógica não correspondia a uma panacéia ou a um recurso incondicional. O diálogo se dá entre iguais e entre diferentes, tornando-se inviável entre antagônicos. Também em sua concepção de diálogo, ressoava o entendimento de que, por vezes, o diálogo fica obstaculizado, porque “Ninguém pode servir a dois senhores (...) Não podeis servir a Deus e ao dinheiro” (Mt 6, 24).

- A perspectiva dos condenados da Terra – Um dos fios condutores que perpassam toda a obra de Paulo Freire é sua intransigente defesa da causa dos deserdados, como protagonistas do processo de sua libertação. Para ele, com efeito,

No existe otro camino si no el de la práctica de una pedagogía liberadora, en que el liderazgo revolucionario, en vez de sobreponerse a los oprimidos y continuar manteniéndolos en el estado de “cosas”, establece con ellos una relación permanentemente dialógica. (FREIRE, 1973, p. 71).

Perspectiva que encontra forte respaldo de inspiração cristã, fartamente fundamentada na Bíblia, seja pela palavra dos profetas do Antigo Testamento, seja pelo claro compromisso de Jesus e de seus seguidores com a causa do oprimido, a exemplo do que se percebe numa passagem em que é próprio Jesus, ressoando a boa tradição profética de, por exemplo, Isaías 61, 1-9, quem explicita o essencial do seu Programa: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque Ele me ungiu para evangelizar os pobres, enviou-me para anunciar a libertação aos cativos, aos cegos a recuperação da vista, para restituir a liberdade aos oprimidos, para proclamar um ano de graça da parte do Senhor.” (Lc 4, 17-19).

Tal é a natureza desse compromisso do Cristianismo com a causa dos pobres, que um conhecido teólogo não hesita em afirmar:

A questão dos pobres não é apenas uma entre outras questões, não é apenas uma parte do problema da evangelização ao lado de muitas outras. É o único desafio único diante do qual todos os demais empalidecem.” (COMBLIN, 2002, p. 11).

Essas são algumas das marcas observáveis, de passagem, no que tange à incidência das fontes cristãs sobre o legado de Paulo Freire. Outras várias poderiam, igualmente, ser enfatizadas, tais como a sede de justiça de que os profetas são contundentes (Isaías, Jeremias, Amós, Oséias, Miquéias, entre outros), e de que estão repletas as páginas dos Evangelhos, a exemplo do famoso Sermão da Montanha, no início do capítulo 5 de Mateus.

A curiosidade epistemológica também tem inspiração bíblica, em vários textos. Basta lembrar a freqüência com que Jesus chama a atenção dos seus discípulos e discípulas para estarem atentos aos sinais dos tempos, buscando exercitar continuamente sua capacidade perceptiva (“Quem tiver ouvidos, ouça”(Mt 13, 9; Mc 4, 23).

Uma outra passagem emblemática nesse apelo bíblico ao exercício do discernimento encontra-se, por exemplo, no chamamento Paulino: “Examinai todas as coisas e retende o que é bom” (1 Ts 5, 21). Ainda é pertinente lembrar aqui o lugar que o discernimento, a sabedoria tem na cultura do Povo de Deus. É conhecida, a esse propósito, a aprovação de Deus à prece de Salomão por sabedoria: “já que não pediste nem riqueza, nem tesouro, nem glória, nem a vida dos teus inimigos, já que nem mesmo pediste vida longa, mas sabedoria e inteligência para julgar o meu povo sobre o qual te constituí rei, a sabedoria e a inteligência te são concedidas.” (2 Cr 1, 11-12).

Outros valores bíblicos também influenciaram, direta ou indiretamente, o legado freireano, tais como o compromisso ético, a dimensão docente e discente do ser humano, o chamamento a uma ação instituinte, na perspectiva da construção de uma nova sociedade, destacando-se aqui a relevância do protagonismo do conjunto dos membros da nova sociedade (em linguagem bíblica: do Povo de Deus).

2. Rastros marxianos na produção bibliográfica de Paulo Freire

Ora de modo mais explícito, ora em tom menos enfático, a presença de Marx também se faz presente na obra de Paulo de Paulo Freire. A seguir, buscamos rastrear tal incidência, que reputo mais forte em sua formação ético-política, depois da influência da fonte do Cristianismo, na ótica da Teologia da Libertação, reiterando o reconhecimento da incidência significativa em sua obra de outras correntes de pensamento.

Ainda que tal incidência se dê, por vezes, em relação a outros autores marxistas (aqui citaria um Antonio Gramsci, um Ernesto Che Guevara, por exemplo), nosso intento se restringe sobremaneira à influência ou à associação de traços do legado de Karl Marx na obra de Paulo Freire.

Os tópicos a seguir sublinhados acerca de tal incidência constituem apenas alguns exemplos. Outros ocorrem de modo implícito. Ainda assim, nem tanto, quando se trata de acentuar, em ambos, o caráter social da condição humana. Em Marx, isso é uma constante, ao longo de suas obras. A própria individualidade humana está fortemente condicionada à vida comunitária, que, aliás, lhe dá sentido e sustentação:

Uso da Dialética na análise das relações macro-sociais - Iniciamos pela influência da Dialética em seu legado, seja pela via hegeliana, seja principalmente pela influência marxiana, à medida que Freire, ao recorrer à Dialética, não o faz por simples exercício lógico ou como mero instrumental analítico, se bem que este expediente não estava descartado em sua apaixonada arte de redação. Também nisso reside um ponto comum entre Marx e Freire. Áquele não agradava o mero exercício do pensar pelo pensar, da lógica pela lógica. Se da Dialética se serviu, o fez como meio de encontrar pistas de transformação social.

É conhecida sua Tese 11, dedicada à fundamentação de sua oposição ao exercício filosófico proposto por Feuerbach e pela filosofia alemã da época: “Até hoje, outra coisa não fizeram os filósofos do que interpretar o mundo de diversas maneiras. Importa mesmo é transformá-lo.” Em incessante estado de busca de transformação da sociedade e dos valores então hegemônicos, tratou de recorrer à Dialética, como instrumento de reinvenção do mundo.

Eis por que um ponto axial da elaboração teórica de Marx reside no recurso à Dialética como instrumento a partir do qual seus argumentos encontravam ressonância no chão das relações sociais. Nesse sentido, velhos princípios remontando ao pré-socrático Heráclito, de que “Tudo está ligado a tudo” ou de que “Tudo muda” encontram em Marx (e em outros discípulos seus) um genial reelaborador, cuja grande contribuição não se restringia a ensaiar jogos de raciocínios teórico-abstratos, mas, antes, arrancava de sua ousadia de apreender e compreender movimentos concretos e complexos inscritos na tessitura das macro-relações sociais.

Sob vários aspectos, Freire percorre trilhas semelhantes. Disso dá testemunho, por exemplo, a forma como concebeu e implementou um dos seus trabalhos principais, Pedagogia do Oprimido. Escritas em Santiago, e datadas do outono de 1969, na condição de exilado fazia três anos, suas “Primeiras Palavras” que servem de introdução ao livro, oferecem elementos significativos. Um deles refere-se aos procedimentos metodológicos dos quais se valeu. Tem a ver com uma confluência de circunstâncias – antes do, e durante o exílio -, que ele observou criteriosamente, buscando identificar seus traços de ligação, bem como suas diferenças. Como se tornaria uma marca do seu procedimento de pesquisador, partiu de experiências concretas por ele vivenciadas, no Brasil e no exílio chileno.

Se se toma, igualmente, como outro exemplo emblemático, o roteiro que propõe já no primeiro capítulo desse mesmo livro, pode-se observar a clara incidência do instrumental dialético de análise, numa perspectiva de superação concreta das relações em jogo. Com efeito, após justificar a adoção da categoria “Pedagogia do Oprimido”, passa a analisar “a contradição opressores-oprimidos e sua superação”, partindo da “situação concreta” seja dos opressores, seja dos oprimidos, do que vai resultar uma de suas conclusões: “Ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho. Os homens se libertam em comunhão.”

Aqui se trata da construção da unidade dos oprimidos em luta contra os opressores, não em vista de uma mera inversão de posições (do tipo: quem era oprimido vira opressor, quem era opressor passa à condição de oprimido), mas para subverter a própria natureza da relação: trata-se de extinguir definitivamente a velha ordem, fazendo emergir uma nova sociabilidade, em que já não tenha lugar nem opressor nem oprimido, razão pela qual o objetivo consiste na superação da própria natureza da relação.

Esse procedimento de Freire não se limita a esse escrito. Ao longo de sua produção bibliográfica, observa-se que ele reedita tal prática analítica.

Adoção da prática como critério da verdade – Importa atentar, aqui, para uma feliz confluência das duas fontes de inspiração em tela. Tanto o Cristianismo como o Marxismo (ou, mais precisamente, a figura de Marx) assumem a comprovação da prática como critério da verdade. Por um lado, no caso do Cristianismo, são freqüentes as passagens do Novo Testamento denunciando como hipócritas as palavras destituídas de comprovação pela via da prática, dos gestos: “Nem todo aquele que diz: `Senhor, Senhor` entrará no Reino dos céus, mas sim, aquele que faz a vontade do meu Pai que está nos céus.” (Mt 7, 21).

Ainda nesse mesmo capítulo, há outras referências semelhantes, como a da admiração que o povo dos pobres nutria por Jesus de Nazaré, por conta de sua coerência entre discurso e prática. Poderíamos, ainda, citar a Carta de Tiago, que insiste em que “a fé sem obras é morta” (Tg 2, 17).

Por outro lado, no caso de Marx, desponta como uma das afirmações mais representativas o teor da Tese 2 contraposta ao pensamento de Feuerbach: “A questão de se atribuir ao pensamento humano uma verdade objetiva não é uma questão de teoria, mas uma questão prática. É na prática que o homem comprova a verdade.” (MARX-ENGELS, 1976, p. 1).

Ao longo dos escritos de Paulo Freire, mas igualmente no percurso de sua existência, são notórios os gestos e palavras, quanto ao peso extraordinário desse princípio práxico, representado pela coerência entre a fala e o gesto, bem expresso, por exemplo, nessa passagem de Pedagogia do Oprimido, após apontar o testemunho como constitutivo da ação revolucionária, em qualquer período histórico:

Entre los elementos constitutivos del testimonio, los cuales no varian históricamente, se cuenta la coherencia entre la palabra y el acto de quien testimonia, la osadía que lo lleva a enfrentar la existencia como un riesgo permanente, la radicalizaciónm y nunca la sectarización, de la opción realizada que conduce a la acción no sólo a quien testimonia sino a aquellos a quien da su testimonio... La valentía de amar que, creemos quedó claro, no significa la acomodación a un mundo injusto sino la transformación de este mundo para una creciente liberación de los hombres. (FREIRE, 1973, p. 232).

Essa é uma marca bem freireana – a coerência. Não pelo fato de que, ser inconcluso, não tenha agido eventualmente de modo incoerente, mas pelo cuidado e pela autovigilância que exercia, de modo a cultivar um discurso que correspondesse ao seu agir:

Até hoje, sem exceção, nenhum dos poucos livros que escrevi deixou de ser uma espécie de relatório, não burocrático, é certo, de experiências realizadas ou em realizando-se em momentos distintos da atividade político-pedagógica em que me acho engajado desde o começo de minha juventude.”), ousadia, radicalidade, valentia de amar, crença no povo. (CGB, p. 173).

Em Freire, o cultivo da coerência estava impregnado e era continuamente alimentado por uma dimensão ética tão densa, que, ao articular-se à dimensão política, a esta, em última instância, se sobrepunha:

Em lugar de converter-me ao centro e eventualmente ganhar o poder, como progressista prefiro abraçar a pedagogia democrática e, sem saber quando, com as classes populares alcançar o poder para reinventá-lo. (AsdM, p. 38).

Quem educa o educador? - Um dos muitos cuidados característicos de Paulo Freire como Pedagogo era o de situar toda ação educativa no contexto das relações sociais, como um processo social. Poucos, como ele, fizeram isso de forma tão explícita e recorrente: a compreensão da educação como um sub-sistema do sistema social.

Por sua vez, a ação educativa, compreendida como uma relação social, tinha lugar nos distintos espaços e tempos vivenciados pelos sujeitos (individuais e coletivos), não se restringindo ao espaço-tempo escolar, mas fazendo-se presente nos mais variados espaços vitais, e ainda com mais força nos processos educativos não-formais. A Educação Popular, lida na perspectiva freireana, aponta bem nessa direção.

Dentre vários pontos de sua contribuição específica a essa formulação, um diz respeito aos protagonistas desse processo. Aqui, se faz “dodiscência”, processo em virtude do qual docentes aprendem, enquanto ensinam; e discentes ensinam, enquanto aprendem. Nele, o aprender erige-se em experiência fundante do processo educacional, até porque

foi aprendendo socialmente que, historicamente, mulheres e homens descobriram que era possível ensinar. Foi assim, socialmente aprendendo, que ao longo dos tempos mulheres e homens perceberam que era possível – depois, preciso – trabalhar maneiras, caminhos, métodos de ensinar. Aprender precedeu ensinar ou, em outras palavras, ensinar se diluía na experiência realmente fundante de aprender. (cf. PA, p. 26).

Observa-se algum tipo de relação entre essa tese tão marcante do legado de Freire e a conhecida formulação de Marx, correspondente à Tese 3, contraposta a Feuerbach, de que, em matéria de educação, de aprendizado, ninguém – nem mesmo (ou principalmente?) quem se pretenda educador tarimbado – está suficientemente pronto para reverter as circunstâncias adversas:

A doutrina materialista da transformação das circunstâncias e da educação esquece que o homem é necessário para transformar as circunstâncias e que o próprio educador precisa ser educado. (MARX-ENGELS, 1976, p. 2).

Vários outros pontos da Pedagogia freireana encontram suporte ou inspiração, expressamente ou não, em formulações de Marx, a começar pela forte sensibilidade da ação histórica sobre as relações educacionais e outras atinentes ao processo de humanização. Nos diversos textos de Paulo Freire, a começar dos primeiros, seu senso de historicidade aflora à primeira vista.
Como não reconhecer, com efeito, alguma semelhança entre, de um lado, a atenção sistemática que Freire cultivava em relação ao contexto, à situação histórica concreta, e, por outro, a extraordinária força da historicidade nos escritos de Marx, como, por exemplo, nessa passagem da A Ideologia Alemã (produzida em parceria com Engels):

O mesmo modo como os indivíduos manifestam sua vida, reflete exatamente o que eles são. O que eles são coincide, portanto, com a sua produção, tanto com o que produzem, quanto com a maneira como produzem. (MARX e ENGELS, 1976, p. 15).

Ou, ainda mais claramente, nessa passagem de O Dezoito Brumário de Luiz Bonaparte, em que afirma:

Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem segundo a sua livre vontade, não a fazem sob circunstâncias de sua escolha, mas sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. (MARX, 1987, p. 15).

Contextualizar os fatos, as situações, as lutas e os desafios – eis o primeiro cuidado que também Freire costumava tomar. Basta, para tanto, conferir os roteiros de seus principais textos. Observe-se que, assim agindo, acena para a dupla influência aqui considerada: a de caráter cristão e a de perfil marxiano. Com relação à influência cristã, pelo menos sob a ótica da leitura da Teologia da Libertação, vale notar em seus escritos elementos da presença do famoso Método da Ação Católica especializada – o “Ver-Julgar-Agir” -, claro que com reelaboração ou outra roupagem adaptada ao campo de análise próprio das ciências sociais, especialmente o da Educação. Outro traço forte comum incidente em Marx e retomado por Freire, tem a ver com um processo humanizador do qual sejam sujeitos os próprios interessados: os oprimidos.

O protagonismo dos “de baixo” – De fato, tanto em um como no outro, este se apresenta como um elemento-chave de sua concepção de homem e de sociedade. Em Marx, isso aparece seguidamente, em algumas de suas obras. É o núcleo mais enfático de sua aposta na condição humana: seu caráter protagonista, de sujeito de sua história, de sujeito de sua emancipação, como vem bem sublinhado em tantas passagens, como

Um ser só se considera autônomo, quando é senhor de si mesmo, e só é senhor de si, quando deve a si mesmo seu próprio modo de existência. Um homem que vive graças a outro, se considera a si mesmo um ser dependente. (MARX, 1974, p. 20).

Eis por que, também do ponto de vista sociológico, tal autonomia tem que ter expressão social, ou seja, deve comportar um processo em incessante construção, ou, nos termos do preâmbulo dos Estatutos da I Associação Internacional dos Trabalhadores, “A emancipação dos trabalhadores é obra dos próprios trabalhadores.”

De modo semelhante, Paulo Freire, em vários de seus escritos, traz à tona sua incessante defesa da condição de protagonistas das classes populares. É o que sucede, por exemplo, desde Educação como prática da Liberdade, em que, ao considerar a passagem de uma “sociedade fechada” a uma sociedade radicalmente democrática, Paulo Freire entende que, enquanto na primeira, a condição do povo restringe-se a uma “imersão”, um estado de apatia, de passividade, característica de meros espectadores, outra é a característica de uma sociedade alternativa, na medida em que

Se na imersão [o povo] era puramente espectador do processo, na emersão descruza os braços e renuncia à expectação, exige a ingerência. Já não se satisfaz em assistir. Quer participar. (FREIRE, 1971, p. 55).

Não menos enfático, a esse mesmo propósito, Freire se pronuncia, em outra sua obra capital:

Dado que en la síntesis cultural no existen los invasores, ni tampoco existen los modelos impuestos, los actores faciendo de la realidad el objeto de su análisis crítico al que no dicotomizan de la acción, se van insertando como sujetos en el proceso histórico. (FREIRE, 1973, pp. 239-240)

Tanto do ponto de vista filosófico quanto do ponto de vista sociológico, Freire tratou de explicitar bem essa condição de protagonismo da transformação social, a que são historicamente chamados os que se sentem comprometidos com a transformação social, ou seja, os deserdados e seus aliados:


Do ponto de vista filosófico, um ser que é ontologicamente “para si” se “transforma” em ser “para outro” quando, perdendo o direito de decidir, não opta e segue as prescrições de outro ser. Suas relações com este outro são as relações que Hegel chama “consciência servil para a consciência senhorial”. A sociedade cujo centro de decisão não se encontra em seu ser, mas no ser de outra, se comporta em relação a esta como um “ser para outro”. (FREIRE, EM, 1999, p. 55).

Por outro lado, para Freire, sendo o homem um “ser do trabalho e da transformação do mundo”, sua condição característica há de ser a de “um agente social”, um sujeito dessa transformação, que, no entanto, não é obra de alguns iluminados, mas do conjunto dos e das que, livre e conscientemente, se fazem sujeitos dessa mudança:

A mudança não é trabalho exclusivo de alguns homens, mas dos homens que a escolhem. O trabalhador social tem que lembrar a estes homens que são tão sujeitos como ele do processo da transformação. E se nas circunstâncias – determinadas – já mencionadas neste estudo, em que a estrutura social vem dificultando a transformação dos homens em sujeitos, seu papel não é o de reforçar o estado de objeto em que se encontram, achando que podem assim ser sujeitos, mas problematizar-lhes este estado. (FREIRE, 1999, p. 52).

Omnilateralidade ou perpectiva da totalidade –
Eis um outro aspecto de confluência observável entre a proposta marxiana e a formulação de Paulo Freire, tanto no que diz respeito ao caráter da transformação social almejada, como no que concerne ao tipo de formação requerido.

Em Marx, essa inquietação aparece, desde suas obras de juventude, como nos Manuscritos Econômico-Filosóficos:

O homem – por mais que seja um indivíduo particular, e justamente é sua particularidade que faz dele um indivíduo e um ser social individual efetivo – é, na mesma medida, a totalidade, a totalidade ideal, o modo de existência subjetivo da sociedade pensada e sentida para si, do mesmo modo que também na efetividade ele existe tanto como intuição e gozo efetivo do modo de existência social, tanto como uma totalidade de exteriorização da vida humana. (MARX, 1976, p. 16).

Nele, o ser humano é entendido como uma unidade que comporta dimensões distintas e organicamente relacionadas, unidade gestada no útero da sociedade, da qual é expressão e sujeito, razão pela qual sua dimensão coletiva não apaga, antes completa, sua singularidade. Característica que implica o entendimento do ser humano como um ser complexo, como uma malha de relações, cuja formação integral está condicionada pelo tipo de sociabilidade de que seja protagonista ou objeto.

Na sociedade capitalista, ou em qualquer sociedade de classes, o ser humano se vê impedido de realizar-se em todas as suas dimensões, na medida em que “O homem necessitado, carregado de preocupações, não tem senso para o mais belo espetáculo.” Situação compreensível, posto que “O sentido prisioneiro da grosseira necessidade prática, tem apenas um sentido limitado. O homem que morre de fome não existe a forma humana da comida”. Para Marx, com efeito,

É somente graças à riqueza objetivamente desenvolvida da essência humana que a riqueza da sensibilidade humana subjetiva é em parte cultivada, e é em parte criada que o ouvido torna-se musical, que o olho percebe a beleza da forma, em resumo, que os sentidos tornam-se capazes do gozo humano, tornam-se sentidos que se confirmam como forças essenciais humanas. Pois não só os cinco sentidos, como também os sentidos chamados espirituais, os sentidos práticos (vontade, amor, etc.), em uma palavra, o sentido humano, a humanidade dos sentidos, constituem-se unicamente mediante o modo de existência de seu objeto, mediante a natureza humanizada. A formação dos cinco sentidos é um trabalho de toda a história universal até nossos dias. (MARX, 1976, p. 18).

Paulo Freire, por sua vez, aborda essa questão – tanto direta quanto indiretamente – sob diferentes aspectos. Aqui destaco dois: um que se remete mais expressamente ao modo de construir essa nova sociedade, e outro atinente ao perfil dos protagonistas dessa sociabilidade alternativa.

No primeiro caso, é freqüente a discussão sobre se se trataria de uma construção feita em etapas, ou se, antes, de um processo de mudança estrutural, a ser perseguido em sua inteireza, não comportando uma lógica etapista. Nesse sentido, ao abordar a condição e as tarefas do trabalhador social, como um dos agentes de transformação social, Freire assim se pronuncia:

Outro aspecto fundamental que não pode passar despercebido do trabalhador social é que a estrutura social, que deve ser mudada, é uma totalidade. O objetivo da ação da mudança é a superação de uma totalidade por outra, onde a nova não continue apresentando a contradição estabilidade-mudança que, como dissemos, constitui a “duração” da estrutura social, e também o histórico-social. (FREIRE, EM, 1999, p. 52).

O segundo ponto a destacar diz respeito ao perfil de protagonista desse processo, a propósito do que ele se estende em algumas de suas obras, a exemplo do que afirma em Educação e Mudança:

O papel do trabalhador social que opta pela mudança, num momento histórico como este, não é propriamente o de criar mitos contraditórios, mas o de problematizar a realidade aos homens, proporcionar a desmitificação da realidade mitificada. Aos mitos, que são os elementos básicos da ação manipuladora dos indivíduos, deve responder, não com a manipulação da manipulação que realizam os que estão contra a mudança. Isto não é possível pela simples razão de que a manipulação é instrumento da desumanização – consciente ou não, pouco importa -, enquanto a tarefa de mudar, de quem está com a mudança, só se justifica em sua finalidade humanista. É impossível servir a esta finalidade, com instrumentos e meios que servem à outra. (FREIRE, 1999, p. 54).

Proposta revolucionária – Também aqui se observa um ponto de confluência entre Karl Marx e Paulo Freire, ou mais precisamente: a influência do primeiro sobre o segundo. Com efeito, sob vários aspectos, é possível observar-se a incidência em Paulo Freire de elementos significativos da proposta de transformação social à qual Marx dedicou o melhor de sua existência.

Proposta que aparece distintamente nomeada em ambos. Em Marx, cai melhor o conceito de “Revolução” ou transformação revolucionária, nova sociedade, ou até simplesmente “Verändern” (mudar, transformar), como aparece nos termos da Tese 11, contrapondo-se a uma tendência meramente interpretativa que apontava na proposta filosófica de Feuerbach.

Embora sob a forma de retificações ou ajustes, que aparecem com o nome de “Crítica ao Programa de Gotha”, Marx enfatiza bem o horizonte e os caminhos desse horizonte.

De modo semelhante, os termos podem variar nas obras de Freire – e variam -, mas permanecem claros os aspectos nucleares desse horizonte: em ambos se trata de uma nova sociedade contraposta, no conteúdo e na forma, ao Capitalismo. Proposta que cuida de destronar esse modelo, sem dar trégua ao esforço de perseguir e cultivar valores característicos dessa nova sociedade, tais como a erradicação da dominação de classe, bem como dos mecanismos que lhe dão sustentação, ao mesmo tempo em que se trata de tecer novas relações humanas e sociais, alternativas ao modelo até então vigente, em favor de valores tais como a emancipação, a solidariedade, a partilha, o respeito à autodeterminação dos povos, a cooperação entre os povos, enfim, a garantia das condições sócio-históricas favoráveis ao ininterrupto processo o de humanização que permita a todos os Humanos o desenvolvimento de suas mais diferentes potencialidades.

A questão de fundo, pois, não está em apenas substituir um velho programa adequado ao interesse do colonizador por um novo, mas em estabelecer a coerência entre a sociedade reconstruindo-se revolucionariamente e a educação como um todo que a ela deve servir. E a teoria do conhecimento que esta deve pôr em prática implica num método de conhecimento antagônico ao da educação colonial. (FREIRE, CGB, 1978, p. 123).

Percebe-se entre ambos uma significativa afinidade quanto ao horizonte, ao rumo do processo de humanização, que em ambos se apresenta marcado pela esperança ou pela confiança de um destino generoso para o Gênero Humano.

No caso de Marx, sua aposta numa sociedade alternativa estava lastreada em toda uma vida de buscas incessantes, feitas em circunstâncias permeadas de penúria econômica (dele e de sua família) e de enormes sacrifícios e perseguições (foi expulso de mais de um país...). Toda uma vida a serviço da causa da Classe Trabalhadora, orientada, de um lado, a um combate sem trégua aos fundamentos da sociedade capitalista, seja do ponto de vista intelectual (haja vista o significado de sua obra da qual é emblemático, por exemplo, O Capital), seja do ponto de vista de sua práxis (sua efetiva e relevante participação e acompanhamento frutuoso das grandes iniciativas internacionalistas de combate à burguesia e de emancipação da Classe Trabalhadora (cf. o Manifesto do Partido Comunista, sua participação relevante na fundação da Associação Internacional dos Trabalhadores, entre outros exemplos).

Semelhante horizonte também se propunha Paulo Freire, ao seu estilo, atribuindo a sua proposta nomes diversos – inclusive o de “síntese cultural” (cf. Pedagogia do Oprimido), ao apostar profundamente no processo de libertação dos seres humanos – tanto dos oprimidos como dos opressores -, cabendo aos primeiros a iniciativa de, ao se libertarem, libertarem também seus opressores de sua desumanização: “Aí reside a grande tarefa humanística e histórica dos oprimidos: libertar-se a si mesmos e libertar os opressores.” (ib., p. 39).

Desafio enorme, por certo, cujo exitoso enfrentamento demanda o cotidiano aprendizado de ser Sujeito, de passar progressivamente da mera condição de espectador ou de simples tarefeiro à condição de protagonista, até porque

Na medida em que o homem perde a capacidade de optar e vai sendo submetido a opções alheias que o minimizam e as suas decisões, porque resultadas de comandos estranhos, já não se integra. Acomoda-se. Ajusta-se. O homem integrado é o homem Sujeito. (EPL, 1989:42).

Tarefa fundamental posta aos seres humanos como garantia de uma existência digna para todos, pois não lhes interessa um tipo de vida qualquer, já que “Existir ultrapassa viver porque é mais do que estar no mundo. É estar nele e como ele. (...) Transcender, discernir,dialogar (comunicar e participar) são exclusividades do existir.” (EPL, 1989:40-41).

Num como no outro, há diferenças, sim, há distintos acentos, não apenas por conta de seus respectivos contextos histórico-culturais. Também por conta de sua formação e de suas opções filosóficas. No essencial, porém, prevalecem as afinidades.

No caso de Freire, por exemplo, até por conta do seu contexto sócio-histórico, aparecem mais enfáticos certos pontos. A exemplo, no caso de Freire, de sua consciência cósmica, o ser humano tendo lugar distinto no mundo. Distinto, por exemplo, de uma plantinha, que se satisfaz com terra, água, calor... O que implica reforçar o entendimento seu, acima assinalado, de que qualquer tipo de vida não basta aos seres humanos, enquanto seres vocacionados a uma vida em plenitude, chamados a um desenvolvimento omnilateral de suas potencialidades, vocacionados para a Liberdade.

E quem se aventura pelos caminhos da Liberdade, mantendo sólidos os princípios e a coerência, não foge às situações embaraçosas, encara os conflitos do cotidiano, como aconteceu tantas vezes a Paulo Freire. Ainda há pouco tempo atrás, vivia-se na América Latina e no Brasil, enfrentava-se uma forte pressão imperialista para que se aceitasse a ALCA, creio valer a pena rememorar a posição de Paulo Freire, por exemplo, num episódio similar, também carregado de tensão e de conflitos, que ele nos conta a propósito das pressões do Governo dos Estados Unidos sobre o Governo brasileiro, para que este “engolisse” de qualquer jeito o “pacote” da USAID, voltado para o ensino superior. O então ministro da educação, Darcy Ribeiro, o havia convidado a representar o Governo brasileiro, junto à SUDENE, em companhia de Nailton Santos (irmão de Milton Santos), nas negociações sobre o projeto norte-americano da USAID para o Nordeste, lembrando que tal incumbência “não rendia dinheiro algum, mas que era politicamente muito importante”:

“Numa dessas reuniões, disse ao representante americano que aquilo não era uma doação, mas sim um empréstimo, e que, se o dinheiro fosse dado, ainda poderia entender que se fizessem exigências, mas que elas eram inconcebíveis num empréstimo. E completei que, de qualquer forma, como doação ou empréstimo, as exigências eram inaceitáveis; que o Brasil tinha que ter autonomia para decidir, por exemplo, onde os seus professores iriam estudar e que móveis construir.” (FREIRE, APPH, I, 1987: 23).

Aprender com o povo simples, o que implica não se distanciar do seu dia-a-dia
- A fidelidade à causa de libertação dos trabalhadores e dos deserdados da Terra constitui um outro elemento a merecer destaque na vida e na obra de Marx, de que também Paulo Freire dá testemunho, com motivações possivelmente diferenciadas, sob um ou outro aspecto, mas ambos demonstrando coerência para além de seus discursos.

Dificilmente ambos teriam amargado reiteradas expulsões e exílios (expulso da França, da Bélgica, Marx teve que curtir duro exílio na Inglaterra... Freire, por sua vez, teve que se refugiar na Bolívia, no Chile, e viver longo tempo como exilado na Suíça), caso tivessem se restringido a meras palavras. Ontem como hoje, as tiranias de qualquer tipo não se espantam tanto com ameaças verbais (desde que não as percebam acompanhadas de gestos). Por várias vezes, discursos até inflamados de mera verborragia ou “palavras de ordem” vazias foram assimiladas, tão logo essas forças se certificavam de sua fragilidade, manifesta por arrependidas retratações ou delações colhidas sem maior constrangimento. O que, porém, não “engolem” é alguém cujo discurso venha carregado de força práxica. Marx e Freire aqui incidem efetivamente.

Na “Crítica ao Programa de Gotha”, por exemplo, pode-se perceber o empenho de Marx pela coerência e pela efetiva defesa dos interesses da Classe Trabalhadora. A esse propósito, um dos elementos a merecer destaque pode-se observar em sua “Carta de Acompanhamento a W. Bracke”, datada de 5 de maio de 1875 (já não se tratando, portanto, de uma peça correspondente às suas obras de juventude – “Frühschriften”), na qual, a despeito de toda a carga de trabalho, combinada com extrema precariedade de sua saúde , criticava, com argumentos convincentes, diversos aspectos de fundo e de natureza tática inscritos no “Programa de Gotha”, que seria proposto e debatido, por ocasião de importante Assembléia dos militantes do Partido Operário Alemão. Por uma ótica pragmática, além das limitações graves que o cercavam, naquela ocasião, Marx poderia simplesmente ter preferido contemporizar, a ninguém desagradando, e contentar-se com a imagem do seu passado...

Atitude também observável em Freire, em diferentes momentos de seu percurso existencial, do qual podemos destacar várias situações e exemplos emblemáticos, a partir mesmo do que Freire entendia como qualidades revolucionárias: “a coerência entre a palavra e o ato” (FREIRE, 1971 p. 232), “a palavra é também para ser ´vista´, envolvida no gesto necessário” (FREIRE, 1978, p. 63), de modo a refletir-se concretamente em seu com-viver, como um “relatório” de suas experiências concretamente vivenciadas, relatadas em seus seus livros (cf. FREIRE, 1978, p. 173). Noutra circunstância, essa prática revolucionária assume o nome de compromisso solidariedade com os deserdados:“O verdadeiro compromisso é a solidariedade, e não a solidariedade com os que negam o compromisso solidário, mas com aqueles que, na situação concreta, se encontram convertidos em ´coisas´ ”. (FREIRE, 1999, p. 19).

Tendo em vista que as mudanças efetivas pelas quais Marx e, também sob sua influência, Freire sempre se bateram, são obra coletiva, na qual as camadas populares são chamadas a exercer seu insubstituível protagonismo, eles nunca aceitaram abrir mão de suas convicções. Freire, por exemplo, afirmava que “só nas bases populares e com elas, poderíamos realizar algo de sério e autêntico para elas.” (FREIRE, ACL, 1989, p. 102).

Isso demandava e demanda presença lá onde o povo está, lá “onde se encontram os homens concretos” (EM, 1999:19). Por isso, sempre lemos em seus textos reiterados exemplos de seu relacionamento com as gentes, seja no campo, seja na cidade, pois ele entendia que “O compromisso, próprio da existência humana, só existe no engajamento com a realidade, de cujas ´águas´ os homens verdadeiramente comprometidos ficam ´molhados´, ensopados.” (FREIRE, EM, 1989:19).

Recorrentes são as passagens e episódios por ele narrados atestando a freqüência com que se fazia presente no meio das gentes, nas favelas, nos assentamentos, nas escolas públicas, nos mais diferentes espaços populares, no Brasil, na América do Sul, na América Central, na África...

Ao contrário dos proclamados “representantes” do povo (não apenas no legislativo e no executivo!), que vivem uma vida distante, a anos-luz, das condições do cotidiano do povo, Paulo Freire, desde suas frutuosas atividades em Recife, fazia questão de freqüentar o povo. Até em seus poemas, tais reminiscências lhe eram constantes, a exemplo do que se observa numa carta-poema dedicada a Recife, a qual, graças à sua modesta auto-avaliação como poeta, por muito tempo foi mantida inédita. Poema que resultou das reminiscências de sua terra, quando, no exílio, recebe uma revista sobre capitais brasileiras. Ele passa a ler pacientemente sobre distintas capitais,

(...) Até que cheguei ao Recife. E fiquei parado. Obviamente aí as lembranças e as saudades eram muito maiores. Me revi dando aulas numa favela, nas esquinas, revi meus namoros de infância e adolescência, o começo de minha vida com a Elza, os filhos nascendo. Revi tudo isso durante a tarde toda.. (FREIRE, APPH, I, 1987:124).

Reminiscências que inspiraram a construção do poema “Recife Sempre”, que ele hesitava em publicar por injustificados receios de sua rigorosa auto-avaliação. Nesse belo poema, Paulo Freire se sente tocado pela figura do vendedor de “doce de banana e goiaba”, a quem Paulo Freire também chama de “homem-brinquedo”::

Foi preciso que o tempo passasse
que muitas chuvas chovessem
que muito sol se pusesse
que muitas marés subissem e baixassem
que muitos meninos nascessem
que muitos homens morressem
que muitas madrugadas viessem
que muitas árvores florescessem
que muitas Marias amassem
que muitos campos secassem
que muita dor existisse
que muitos olhos tristonhos eu visse
para que entendesse
que aquele homem-brinquedo
era o irmão esmagado
era o irmão explorado
era o irmão ofendido
o irmão oprimido
proibido de ser.” (FREIRE, APPH, I, 1987:155).

Em recente artigo, inventivamente elaborado em forma de uma carta-resposta às indagações do seu amigo Sírio Velasco, acerca de uma eventual dimensão ecológica em Paulo Freire, o Prof. Balduíno Andreola recupera essa também relevante faceta de Paulo Freire. Rastreando seu percurso bibliográfico, ele recolhe passagens tocantes, de profundo encantamento com as árvores, com os rios e outros elementos da Mãe-Natureza, além de suas vivas inquietações com as formas de poluição do nosso Planeta. E Andreola o fez, recorrendo, não apenas a vários dos livros de Paulo Freire, nas também a outros escritos seus, a exemplo do trecho que extrai de uma entrevista de Paulo Freire, em 1978, concedida a O Pasquim (n. 462), em que Paulo Freire declara:

O que eu quero dizer é que sou, existencialmente, um bicho universal. Mas só sou porque sou profundamente recifense, profundamente brasileiro. E por isso comecei a ser profundamente latino-americano e depois mundial. Eu sou capaz de querer bem, enormemente, qualquer povo. (FREIRE, apud ANDREOLA, 2007, p. 37).

Considerações sinópticas

Identificar raízes do sentir-decidir-agir freireano tem sido uma empreitada cada vez mais presente na literatura corrente acerca de Paulo Freire, sob os mais distintos ângulos, inclusive aqueles por vezes avaliados como pouco impróprios.

Partindo do reconhecimento da multiplicidade de sujeitos – individuais e coletivos – com quem, direta ou expressamente Paulo Freire exercitou diálogo, ou de quem resultou algum tipo de influência, tratamos, de nossa parte, de centrar a atenção na incidência na obra e no agir de Paulo Freire de significativos elementos do legado de Karl Marx.

Nesse exercício de rastreamento, confluências relevantes foram apontadas, das quais podem ser sublinhados elementos tais como a natureza relacional dos Humanos, seu relevante condicionamento sócio-histórico, que acompanha todo o processo de humanização. Processo que se revela condicionado a contextos e estruturas que se apresentam ora como óbices, ora como favoráveis ao processo de emancipação de homens, mulheres e povos.

Afinidades também observáveis do ponto de vista de sua visão de sociedade, na medida em que tanto para Marx quanto para Freire, o modo de produção capitalista – bem assim toda sociedade de classes – revela-se radicalmente incompatível com a realização dos sonhos mais generosos da condição humana, razão por que impõe-se transformá-la desde a raiz.

Não se trata apenas de, primeiro, destruir as estruturas de organização social, para, somente após, cuidar-se de construir a nova sociedade. Importa, desde já, emitir sinais convincentes de alternatividade, nas macro e nas micro-relações do dia-a-dia, ao modo do “Mostra-me o caráter do teu dia-a-dia, e dir-te-ei com que tipo de sociabilidade estás comprometido.”


Referências bibliográficas

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Postado Por Rolando Lazarte

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