Rolando Lazarte
Un conocido sociólogo y miembro del grupo de reflexión sobre Teología da libertação na perspectiva de José Comblin, partilha perplexidades com leitores e leitoras (...)
A Teologia da Libertação se propaga, apesar do veto do Vaticano, por Leonardo Boff *
Rio de Janeiro, março/2009 – Desde seu começo, no final dos anos 60, a Teologia da Libertação adotou uma perspectiva global, focada na condição dos pobres e oprimidos do mundo inteiro, vítimas de um sistema que vive da exploração do trabalho e da depredação da natureza. Este sistema explora as classes trabalhadoras e as nações mais fracas. E, além disso, reprime os que oprime e, portanto, contraria seus próprios sentimentos humanitários. Em uma palavra, todos devem ser libertados de um sistema que perdura há pelo menos três séculos e foi imposto em todo o planeta.
A Teologia da Libertação é a primeira teologia moderna que assumiu o objetivo global de pensar o destino da humanidade desde a condição das vítimas. Em consequência, sua primeira opção é se comprometer com os pobres, a vida e a liberdade para todos. Surgiu na periferia das Igrejas centrais, não nos centros metropolitanos do pensamento consagrado. Por essa origem, sempre foi considerada suspeita pelos teólogos acadêmicos e principalmente pelas burocracias eclesiásticas e da Igreja mais importante, a romano-católica.
De seu berço na América Latina, a Teologia da Libertação passou para a África, estendeu-se à Ásia e também a setores do primeiro mundo identificados com a solidariedade e os direitos humanos dos mais pobres. A pobreza entendida como opressão revela muitas faces: a dos indígenas que desde sua sabedoria ancestral conceberam uma fecunda teologia da libertação indígena, a teologia negra da libertação que resiste às marcas dolorosas deixadas nas nações que foram escravistas, a das mulheres submetidas desde a era neolítica à dominação patriarcal, a dos operários usados como combustível da máquina produtiva. A cada opressão concreta corresponde uma libertação concreta.
A questão teológica de base que até agora não acabamos de responder é: como anunciar de maneira crível um Deus que é um Pai bondoso em um mundo abarrotado de miseráveis? Só tem sentido se implicar a transformação deste mundo, de maneira que os miseráveis deixem de gritar. Para que uma mudança semelhante tenha lugar, eles próprios têm de tomar consciência, se organizar e começar uma prática política de transformação e libertação social. Como em grande parte os pobres em nossos países eram cristãos, se tratava de fazer da fé um fator de libertação.
As Igrejas, que se sentem herdeiras de Jesus, que foi um pobre que não morreu de velhice, mas na cruz como consequência de seu compromisso com Deus e com sua Justiça, seriam as aliadas naturais deste movimento de cristãos pobres. Este apoio se verificou em muitas igrejas nas quais havia bispos e cardeais proféticos como Helder Câmara e Paulo Evaristo Arns no Brasil, Arnulfo Romero em El Salvador, e muitos outros, assim como numerosos sacerdotes, religiosos e religiosas e laicos comprometidos politicamente.
Em razão de sua causa universal, já no início da década de 70, a Teologia da Libertação era um movimento internacional e convocava verdadeiros fóruns teológicos mundiais. Estabeleceu-se um conselho editorial integrado por mais de cem teólogos latino-americanos para compilar uma sistematização teológica a partir da perspectiva da libertação em 53 tomos. Já havia 13 tomos publicados quando o Vaticano interveio para abortar o projeto. O então cardeal Joseph Ratzinger foi rigoroso. Cortou pela raiz um trabalho promissor e benéfico para todas as igrejas periféricas e especialmente para os pobres. Passará à história como o cardeal – e depois papa – inimigo da inteligência dos pobres.
A Teologia da Libertação criou uma cultura política. Ajudou a formar organizações sociais como o Movimento dos Sem-Terra, a Pastoral Indígena, o Movimento Negro e foi fundamental na criação do Partido dos Trabalhadores no Brasil, cujo líder, o presidente Lula, sempre se reconheceu na Teologia da Libertação.
Hoje em dia, esta teologia transcendeu os limites confessionais das igrejas e se converteu em uma força político-social. Além de Lula, identificam-se publicamente com a Teologia da Libertação os presidentes Rafael Correa, do Equador; o ex-bispo Fernando Lago, do Paraguai; Daniel Ortega, da Nicarágua, e Hugo Chávez, da Venezuela, além do atual presidente da Assembléia das Nações Unidas, o sacerdote nicaragüense Miguel D’Escoto. Sua força maior não reside nas cátedras dos teólogos, mas nas inumeráveis comunidades eclesiásticas de base (só no Brasil existem cerca de cem mil), nos milhares e milhares de círculos nos quais se lê a Bíblia no contexto da opressão social e nas chamadas pastorais sociais.
Roma incorre na profunda ilusão de crer que com seus documentos doutrinários emitidos por burocracias frias e distantes da vida concreta dos fieis conseguirá frear a Teologia da Libertação. Ela nasceu ouvindo o grito dos pobres e hoje a comove o grito da Terra. Enquanto os pobres continuarem se lamentando e a Terra gemendo sob a virulência consumista, haverá mil razões para sentir o chamado de uma interpretação libertária e revolucionária dos evangelhos. A Teologia da Libertação é a resposta a uma realidade injusta e salva a Igreja central de sua alienação e de um certo cinismo.
* Leonardo Boff é teólogo e co-autor da Carta da Terra.
A Teologia da Libertação é a primeira teologia moderna que assumiu o objetivo global de pensar o destino da humanidade desde a condição das vítimas. Em consequência, sua primeira opção é se comprometer com os pobres, a vida e a liberdade para todos. Surgiu na periferia das Igrejas centrais, não nos centros metropolitanos do pensamento consagrado. Por essa origem, sempre foi considerada suspeita pelos teólogos acadêmicos e principalmente pelas burocracias eclesiásticas e da Igreja mais importante, a romano-católica.
De seu berço na América Latina, a Teologia da Libertação passou para a África, estendeu-se à Ásia e também a setores do primeiro mundo identificados com a solidariedade e os direitos humanos dos mais pobres. A pobreza entendida como opressão revela muitas faces: a dos indígenas que desde sua sabedoria ancestral conceberam uma fecunda teologia da libertação indígena, a teologia negra da libertação que resiste às marcas dolorosas deixadas nas nações que foram escravistas, a das mulheres submetidas desde a era neolítica à dominação patriarcal, a dos operários usados como combustível da máquina produtiva. A cada opressão concreta corresponde uma libertação concreta.
A questão teológica de base que até agora não acabamos de responder é: como anunciar de maneira crível um Deus que é um Pai bondoso em um mundo abarrotado de miseráveis? Só tem sentido se implicar a transformação deste mundo, de maneira que os miseráveis deixem de gritar. Para que uma mudança semelhante tenha lugar, eles próprios têm de tomar consciência, se organizar e começar uma prática política de transformação e libertação social. Como em grande parte os pobres em nossos países eram cristãos, se tratava de fazer da fé um fator de libertação.
As Igrejas, que se sentem herdeiras de Jesus, que foi um pobre que não morreu de velhice, mas na cruz como consequência de seu compromisso com Deus e com sua Justiça, seriam as aliadas naturais deste movimento de cristãos pobres. Este apoio se verificou em muitas igrejas nas quais havia bispos e cardeais proféticos como Helder Câmara e Paulo Evaristo Arns no Brasil, Arnulfo Romero em El Salvador, e muitos outros, assim como numerosos sacerdotes, religiosos e religiosas e laicos comprometidos politicamente.
Em razão de sua causa universal, já no início da década de 70, a Teologia da Libertação era um movimento internacional e convocava verdadeiros fóruns teológicos mundiais. Estabeleceu-se um conselho editorial integrado por mais de cem teólogos latino-americanos para compilar uma sistematização teológica a partir da perspectiva da libertação em 53 tomos. Já havia 13 tomos publicados quando o Vaticano interveio para abortar o projeto. O então cardeal Joseph Ratzinger foi rigoroso. Cortou pela raiz um trabalho promissor e benéfico para todas as igrejas periféricas e especialmente para os pobres. Passará à história como o cardeal – e depois papa – inimigo da inteligência dos pobres.
A Teologia da Libertação criou uma cultura política. Ajudou a formar organizações sociais como o Movimento dos Sem-Terra, a Pastoral Indígena, o Movimento Negro e foi fundamental na criação do Partido dos Trabalhadores no Brasil, cujo líder, o presidente Lula, sempre se reconheceu na Teologia da Libertação.
Hoje em dia, esta teologia transcendeu os limites confessionais das igrejas e se converteu em uma força político-social. Além de Lula, identificam-se publicamente com a Teologia da Libertação os presidentes Rafael Correa, do Equador; o ex-bispo Fernando Lago, do Paraguai; Daniel Ortega, da Nicarágua, e Hugo Chávez, da Venezuela, além do atual presidente da Assembléia das Nações Unidas, o sacerdote nicaragüense Miguel D’Escoto. Sua força maior não reside nas cátedras dos teólogos, mas nas inumeráveis comunidades eclesiásticas de base (só no Brasil existem cerca de cem mil), nos milhares e milhares de círculos nos quais se lê a Bíblia no contexto da opressão social e nas chamadas pastorais sociais.
Roma incorre na profunda ilusão de crer que com seus documentos doutrinários emitidos por burocracias frias e distantes da vida concreta dos fieis conseguirá frear a Teologia da Libertação. Ela nasceu ouvindo o grito dos pobres e hoje a comove o grito da Terra. Enquanto os pobres continuarem se lamentando e a Terra gemendo sob a virulência consumista, haverá mil razões para sentir o chamado de uma interpretação libertária e revolucionária dos evangelhos. A Teologia da Libertação é a resposta a uma realidade injusta e salva a Igreja central de sua alienação e de um certo cinismo.
* Leonardo Boff é teólogo e co-autor da Carta da Terra.
A Igreja e o evangelho da prosperidade, por Luciano Batista *
* Pastor Batista atualmente desempregado (missiodei@ig.com.br), membro de NÓS TAMBÉM SOMOS IGREJA de João Pessoa, Paraíba www.kairosnostambemsomosigreja.blogspot.com
Aumentar o número de fiéis para engrandecer a igreja ou manter a fidelidade ao anúncio profético do evangelho, a boa-nova que anuncia o Reino de Deus como justiça, solidariedade e dignidade para todos e todas?
Essa talvez seja uma reflexão que poucos líderes cristãos fazem. Ao fazerem, a imensa maioria parece optar pelo crescimento numérico de suas respectivas igrejas. Pelo menos é o que se percebe. Basta verificar o numero cada vez mais crescente de igrejas evangélicas, cujo modelo prevalecente é o da igreja-empresa com sua liturgia inovadora que recorre à data-show, testemunhos miraculosos, grupos de danças, fundo musical suave estrategicamente utilizado para sensibilizar o coração do fiel, cânticos espirituais acompanhado de mantras evangélicos, ar condicionado central pregações sobre temas ligados aos problemas familiares, financeiros, saúde, tudo para promover o “bem-estar-espiritual” do “fiel”; isso sem falar dos shows gospels com seus aparatos.
Tal preocupação excessiva pelo aumento ou a diminuição dos fiéis, é real tanto entre bispos e pastores evangélicos, sejam eles de denominações históricas ou pentecostais clássicas e neo-pentecostais, quanto bispos e padres católicos. Em si tratando de João Pessoa, duas denominações evangélicas que muito tem investido no bem-estar-espiritual dos fieis, são: a IURD (1) e a Batista (2). Uma vez que o sucesso quantitativo passou a ser alvo prioritário, podemos dizer, em termos teológicos, que a igreja foi identificada com o Reino de Deus; isto é, o mero crescimento numérico da igreja é vista como a realização da missão de anunciar o Reino de Deus (3).
A nova religião “popular católica urbana” há muito se consolidou. O fenômeno padre Marcelo continua vivo, através da sua liturgia envolvente que toca a sensibilidade das emoções do povo e sua mensagem que responde diretamente às aspirações e à cultura do ser urbano, consegue conter a migração em massa de católicos (com exceção dos católicos nominais) para as igrejas evangélicas. Claro que há outros padres trabalhando com a mesma visão, é o caso do Pe. Fabio Melo. A canção nova esta ai atuando com muita eficácia em todo o país, assim como várias emissoras de rádio e canais de televisão evangélica. No fundo, ambos propagam um evangelho do sucesso e da prosperidade.
Hoje, é perfeitamente possível assistir a missa ou culto, sem sair de casa. Basta sintonizar seu aparelho televisivo nos vários canais abertos ou fechados. Esta ai a igreja que salva, cura e liberta através do poder do espírito. Mas que espírito é este? O Espírito Santo? Hora, o espírito que ai atua, é bastante limitado. Sua ação restringe-se as emoções humanas. Este espírito não produz uma fé que se compromete com as mudanças das estruturas pessoais e sociais existentes, aliás, toma por definitivas e absolutas as estruturas do sistema estabelecido promovendo um conformismo religioso-emocionalista generalizado. O deus deste evangelho e destes grupos garante a prosperidade a todos os que aderem a sua pregação. Como diz José Comblin “Tudo ficou muito simples: Jesus salva, Jesus resolve, Jesus perdoa, Jesus dá paz e felicidade a todos. Basta querer, basta aceitar... e fazer um depósito na conta bancária do missionário” (4).
A propagação do evangelho da prosperidade se dá de múltiplas maneiras (livros, jornais, folhetos, panfletos,) e, além do seu triunfalismo doentio, outra característica deste evangelho é sua intolerância religiosa. Recentemente a justiça da Bahia determinou o recolhimento em Salvador, de todos os exemplares do livro “Sim, Sim! Não, Não! Reflexões de Cura e Libertação” da editora Canção Nova, cuja autoria é do padre Jonas Abib, fundador da Canção Nova, que por sua vez esta ligada à Renovação Carismática, de tendência teológica bastante conservadora. De acordo com o ministério público, o padre cometeu o crime de “prática e incitação de discriminação ou preconceito religioso”, previsto na lei 7.716, de 1989 (5).
No seguimento cristão evangélico, são várias as estratégias utilizadas para “evangelizar os pecadores” que ainda não se converteram. O caso “Mãe Gilda” foi o que recentemente mais se destacou. Já se desenrolava há nove anos e foi parar no STJ. A saga do Abassá de Ogum, como ficou conhecida a historia, iniciou quando a Iyalorixá Jaciara Ribeiro, filha consangüínea de Mãe Gilda decidiu processar a IURD por danos morais e uso indevido da imagem da sua mãe. A ação movida pela Iyá (mãe de santo) Jaciara foi apoiada pelos advogados de Koinonia (ONG que trabalha com direitos humanos). A decisão da quarta turma do STJ obriga o jornal a Folha Universal, que publicou a foto de Mãe Gilda sob manchete ofensiva, a publicar uma retratação. O valor da indenização arbitrado pela 17ª Vara Civil da Bahia de 1.4 milhões foi reduzido para 145.250,00 (6), valor insignificante para uma igreja detentora de um patrimônio milionário.
Que evangelho foi pregado a fim de vilipendiar a imagem da Mãe Gilda? O evangelho que abraça as diferenças religiosas em nome do respeito e da tolerância? O evangelho que procura evitar tanto a colisão com o diferente quanto a sua coexistência estanque? O evangelho que se põe a serviço da construção de um mundo melhor? A quem a igreja Universal pretendia atacar? Objetivamente, as religiões afro-descendentes, numa total ausência de senso Ecumênico e dialogo inter-religioso! Claro, não se pode esperar tal senso por parte de uma igreja cujo interesse maior são os fieis de outras religiões. Esta é vista como empresa religiosa, fundamentada numa teologia da prosperidade. O teólogo luterano Gottfried Brakemeier afirma que é difícil “reconhecer nesta igreja a imagem da Igreja das origens e de seu Senhor crucificado. Trata-se de neoliberalismo econômico em roupagem religiosa. É uma religião de resultados, uma ‘ciência’ do sucesso” (7). Em síntese, a magia ai tomou o lugar do evangelho e a comunidade desapareceu tornando-se freguesia.
A impressão que temos é que estamos descendo velozmente a ladeira, e isso, tem uma “história”. Saímos do seguimento de Cristo para o cristianismo institucionalizado de Constantino, depois para a cristandade. Da cristandade para o protestantismo (que poderia ter sido um movimento de proposta), do protestantismo para o denominacionalismo e hoje para o conformismo religioso alienado das questões sociais e políticas do seu tempo. Deste modo, cada vez mais a igreja vai perdendo sua relevância e não se aprecia hoje o apoio que ela pode trazer à solução dos problemas humanos contemporâneos. Tanto o ministério quanto a mensagem cristã tem perdido a credibilidade perante uma sociedade atenta, que parece esta se divertindo com o espetáculo.
Warren W. Wiersbe, pastor batista norte-americano, descreveu os cristãos evangélicos da seguinte maneira: “Nos dias de hoje somos desafiados, mas não transformados; convencidos, mas não convertidos. Ouvimos, mas não praticamos; e, desse modo, enganamos a nós mesmos” (8). Perguntas como: Porque deveríamos escutar o que pregam as igrejas? Com que autoridade os pastores pregam para a sociedade sobre pecado e salvação? O que esse evangelho da “prosperidade” tem haver com o evangelho pregado para os pobres na época do Cristo? O evangelho de Jesus não é a denuncia dos falsos evangelhos que enganavam o povo? Já não passou da hora de por em ordem à própria casa? São feitas diariamente pelos críticos e estas, continuam sem resposta!
Acontece hoje como na época do profeta Jeremias. As pessoas desejam ser levadas para um caminho sem muito compromisso, são levadas a apoiar e defender justamente aqueles que os engana e destrói. “É o que deseja o meu povo” (Jr.5:31) Por que? Porque a natureza humana deseja o caminho mais fácil para não ter de ouvir a Palavra de Deus, arrepender-se e obedecer à sua vontade. É esse o motivo de a multidão ter seguido a Pasur e não a Jeremias, escolhido a Barrabás e não a Cristo, apedrejado os profetas verdadeiros e açoitado os servos de Deus. A multidão prefere o caminho largo; é mais fácil, mais cômodo e certamente há muito mais companhia.
Jeremias escreveu sobre o coração varias vezes em suas profecias. “Enganoso é o coração mais do que todas as coisas, e desesperadamente corrupto, quem o conhecerá?” (17:9) Para um povo de religião de aparência, Deus anunciou através do profeta: “Buscar-me-eis, e me achareis, quando me buscardes de todo o vosso coração”. (29:13). Pelo menos nove vezes Jeremias escreveu sobre a imaginação do coração perverso do homem. Pasur e o seu grupo jamais pregaram sermões radicais como esses. Prometeram paz, proteção, prosperidade, e as multidões os aplaudiram e apoiaram.
Atento ao povo que se desviava, Javé disse: “Porque dois males cometeu o meu povo: a mim me deixaram, o manancial de águas vivas. E cavaram cisternas, cisternas rotas, que não retêm as águas”. (Jr.2:13). Não foi uma mensagem muito popular, e fez com que Jeremias ficasse em apuros perante a instituição religiosa. Mas Jeremias era um profeta, não um mercenário; não desistiu apesar de o povo rejeitar sua mensagem.
Um último paralelismo entre a nossa época e a época de Jeremias: os falsos profetas eram homens gananciosos que usavam a religião para obtenção de lucros pessoais. Jactavam-se de sua prosperidade e da prosperidade do templo e da nação. Afinal, não eram eles o povo escolhido de Deus, e a sua riqueza não era prova de sua fidelidade e benção divina?
Por vários lugares onde passamos e encontramos igrejas-empresas, que propagam o evangelho da prosperidade, percebemos que as pessoas deixaram de ser rebanho e passaram a ser mala-direta, mantenedoras e parceiras de empreendimentos religiosos. A justificativa de que todos precisam conhecer “o verdadeiro evangelho” acaba se transformando, com o tempo, em necessidade de encontrar uma vitrine onde a instituição se mostre como produto. Como afirma Ed René Kivitz, “foi o tempo em que os pastores se gabavam de pastorear grandes igrejas. Agora a moda é ser apostolo de uma rede de igrejas”. (9)
Não creio que devamos esperar por parte dos lideres espirituais (pastores, padres,) destas respectivas igrejas que defendem e pregam o evangelho da prosperidade, uma leitura e interpretação da bíblia que considere a realidade histórica da salvação como querida efetivamente por Deus (conforme nos aponta Gustavo Gutierrez para quem a libertação e a salvação são dados reais, presentes no mundo, presentes na historia). Tenho profundas duvidas se devemos esperar uma reflexão ou mesmo uma pregação da fé em Cristo no contexto dos povos crucificados (como sempre o fez com seriedade e compaixão Jon Sobrino). Honestamente, não sei se devemos esperar que seus pregadores encarnem a verdade de que a realidade ultima para Jesus, O Reino de Deus, seja também para eles, pois sua realidade primeira e ultima está diretamente relacionada ao crescimento numérico e financeiro de seus “reinos” aqui na terra, pois, como afirma José Comblin, “a igreja ainda não sabe como se emancipar do poder do dinheiro, que tudo invade”. (10)
“Não ajunteis tesouros na terra, onde a traça e a ferrugem tudo consomem,.. Porque onde estiver o vosso tesouro, aí estará também o vosso coração”. (Mt.6:19-21)
(1) IURD é a sigla utilizada para identificar a Igreja Universal do Reino de Deus. O investimento financeiro realizado por esta denominação de cunho neo-pentecostal pode ser visibilizado por suas suntuosas construções, a exemplo do que se pode ver no centro da cidade próximo a lagoa (Parque Sólon de Lucena) e/ou principalmente na Av. Epitácio Pessoa, a principal avenida da capital paraibana.
(2) As Igrejas Batistas como Cidade Viva (no bairro do Bessa/Centro de Convenções Cidade Viva), PIB (Primeira Igreja Batista de JP/Espaço Gospel/Bairro de Manaira), Batistinha (Cujo Templo é um dos mais modernos do nordeste/no Bairro do Bessa) tem investido consideravelmente em seus espaços culticos a fim de proporcionar “bem-estar-espiritual” aos seus freqüentadores.
(3) Mo Sung, Jung. A crise do cristianismo e a crise do mundo – artigo publicado na internet, no site http://servicioskoinonia.org/relat/247p.htm
(4) Comblin, José. Quais os desafios dos temas teológicos atuais? São Paulo. Paulus, 2005 – pg. 7
(5) (fonte: Verbonet, Ultima Instância e Jornal Folha de São Paulo)
(6) Idem.
(7) Brakemeier, Gottfried. Preservando a Unidade do Espírito no Vínculo da Paz: Um curso de ecumenismo – São Paulo. Aste, 2004 – pg. 27
(8) W. Wiersbe, Warren. A Crise de Integridade – São Paulo. Vida, 1991.
(9) Kivitz, Ed René. Outra espiritualidade – São Paulo. Mundo Cristão, 2006 – pg. 38
(10)Comblin, José. A profecia na Igreja – São Paulo. Paulus, 2008 – pg. 286
Aumentar o número de fiéis para engrandecer a igreja ou manter a fidelidade ao anúncio profético do evangelho, a boa-nova que anuncia o Reino de Deus como justiça, solidariedade e dignidade para todos e todas?
Essa talvez seja uma reflexão que poucos líderes cristãos fazem. Ao fazerem, a imensa maioria parece optar pelo crescimento numérico de suas respectivas igrejas. Pelo menos é o que se percebe. Basta verificar o numero cada vez mais crescente de igrejas evangélicas, cujo modelo prevalecente é o da igreja-empresa com sua liturgia inovadora que recorre à data-show, testemunhos miraculosos, grupos de danças, fundo musical suave estrategicamente utilizado para sensibilizar o coração do fiel, cânticos espirituais acompanhado de mantras evangélicos, ar condicionado central pregações sobre temas ligados aos problemas familiares, financeiros, saúde, tudo para promover o “bem-estar-espiritual” do “fiel”; isso sem falar dos shows gospels com seus aparatos.
Tal preocupação excessiva pelo aumento ou a diminuição dos fiéis, é real tanto entre bispos e pastores evangélicos, sejam eles de denominações históricas ou pentecostais clássicas e neo-pentecostais, quanto bispos e padres católicos. Em si tratando de João Pessoa, duas denominações evangélicas que muito tem investido no bem-estar-espiritual dos fieis, são: a IURD (1) e a Batista (2). Uma vez que o sucesso quantitativo passou a ser alvo prioritário, podemos dizer, em termos teológicos, que a igreja foi identificada com o Reino de Deus; isto é, o mero crescimento numérico da igreja é vista como a realização da missão de anunciar o Reino de Deus (3).
A nova religião “popular católica urbana” há muito se consolidou. O fenômeno padre Marcelo continua vivo, através da sua liturgia envolvente que toca a sensibilidade das emoções do povo e sua mensagem que responde diretamente às aspirações e à cultura do ser urbano, consegue conter a migração em massa de católicos (com exceção dos católicos nominais) para as igrejas evangélicas. Claro que há outros padres trabalhando com a mesma visão, é o caso do Pe. Fabio Melo. A canção nova esta ai atuando com muita eficácia em todo o país, assim como várias emissoras de rádio e canais de televisão evangélica. No fundo, ambos propagam um evangelho do sucesso e da prosperidade.
Hoje, é perfeitamente possível assistir a missa ou culto, sem sair de casa. Basta sintonizar seu aparelho televisivo nos vários canais abertos ou fechados. Esta ai a igreja que salva, cura e liberta através do poder do espírito. Mas que espírito é este? O Espírito Santo? Hora, o espírito que ai atua, é bastante limitado. Sua ação restringe-se as emoções humanas. Este espírito não produz uma fé que se compromete com as mudanças das estruturas pessoais e sociais existentes, aliás, toma por definitivas e absolutas as estruturas do sistema estabelecido promovendo um conformismo religioso-emocionalista generalizado. O deus deste evangelho e destes grupos garante a prosperidade a todos os que aderem a sua pregação. Como diz José Comblin “Tudo ficou muito simples: Jesus salva, Jesus resolve, Jesus perdoa, Jesus dá paz e felicidade a todos. Basta querer, basta aceitar... e fazer um depósito na conta bancária do missionário” (4).
A propagação do evangelho da prosperidade se dá de múltiplas maneiras (livros, jornais, folhetos, panfletos,) e, além do seu triunfalismo doentio, outra característica deste evangelho é sua intolerância religiosa. Recentemente a justiça da Bahia determinou o recolhimento em Salvador, de todos os exemplares do livro “Sim, Sim! Não, Não! Reflexões de Cura e Libertação” da editora Canção Nova, cuja autoria é do padre Jonas Abib, fundador da Canção Nova, que por sua vez esta ligada à Renovação Carismática, de tendência teológica bastante conservadora. De acordo com o ministério público, o padre cometeu o crime de “prática e incitação de discriminação ou preconceito religioso”, previsto na lei 7.716, de 1989 (5).
No seguimento cristão evangélico, são várias as estratégias utilizadas para “evangelizar os pecadores” que ainda não se converteram. O caso “Mãe Gilda” foi o que recentemente mais se destacou. Já se desenrolava há nove anos e foi parar no STJ. A saga do Abassá de Ogum, como ficou conhecida a historia, iniciou quando a Iyalorixá Jaciara Ribeiro, filha consangüínea de Mãe Gilda decidiu processar a IURD por danos morais e uso indevido da imagem da sua mãe. A ação movida pela Iyá (mãe de santo) Jaciara foi apoiada pelos advogados de Koinonia (ONG que trabalha com direitos humanos). A decisão da quarta turma do STJ obriga o jornal a Folha Universal, que publicou a foto de Mãe Gilda sob manchete ofensiva, a publicar uma retratação. O valor da indenização arbitrado pela 17ª Vara Civil da Bahia de 1.4 milhões foi reduzido para 145.250,00 (6), valor insignificante para uma igreja detentora de um patrimônio milionário.
Que evangelho foi pregado a fim de vilipendiar a imagem da Mãe Gilda? O evangelho que abraça as diferenças religiosas em nome do respeito e da tolerância? O evangelho que procura evitar tanto a colisão com o diferente quanto a sua coexistência estanque? O evangelho que se põe a serviço da construção de um mundo melhor? A quem a igreja Universal pretendia atacar? Objetivamente, as religiões afro-descendentes, numa total ausência de senso Ecumênico e dialogo inter-religioso! Claro, não se pode esperar tal senso por parte de uma igreja cujo interesse maior são os fieis de outras religiões. Esta é vista como empresa religiosa, fundamentada numa teologia da prosperidade. O teólogo luterano Gottfried Brakemeier afirma que é difícil “reconhecer nesta igreja a imagem da Igreja das origens e de seu Senhor crucificado. Trata-se de neoliberalismo econômico em roupagem religiosa. É uma religião de resultados, uma ‘ciência’ do sucesso” (7). Em síntese, a magia ai tomou o lugar do evangelho e a comunidade desapareceu tornando-se freguesia.
A impressão que temos é que estamos descendo velozmente a ladeira, e isso, tem uma “história”. Saímos do seguimento de Cristo para o cristianismo institucionalizado de Constantino, depois para a cristandade. Da cristandade para o protestantismo (que poderia ter sido um movimento de proposta), do protestantismo para o denominacionalismo e hoje para o conformismo religioso alienado das questões sociais e políticas do seu tempo. Deste modo, cada vez mais a igreja vai perdendo sua relevância e não se aprecia hoje o apoio que ela pode trazer à solução dos problemas humanos contemporâneos. Tanto o ministério quanto a mensagem cristã tem perdido a credibilidade perante uma sociedade atenta, que parece esta se divertindo com o espetáculo.
Warren W. Wiersbe, pastor batista norte-americano, descreveu os cristãos evangélicos da seguinte maneira: “Nos dias de hoje somos desafiados, mas não transformados; convencidos, mas não convertidos. Ouvimos, mas não praticamos; e, desse modo, enganamos a nós mesmos” (8). Perguntas como: Porque deveríamos escutar o que pregam as igrejas? Com que autoridade os pastores pregam para a sociedade sobre pecado e salvação? O que esse evangelho da “prosperidade” tem haver com o evangelho pregado para os pobres na época do Cristo? O evangelho de Jesus não é a denuncia dos falsos evangelhos que enganavam o povo? Já não passou da hora de por em ordem à própria casa? São feitas diariamente pelos críticos e estas, continuam sem resposta!
Acontece hoje como na época do profeta Jeremias. As pessoas desejam ser levadas para um caminho sem muito compromisso, são levadas a apoiar e defender justamente aqueles que os engana e destrói. “É o que deseja o meu povo” (Jr.5:31) Por que? Porque a natureza humana deseja o caminho mais fácil para não ter de ouvir a Palavra de Deus, arrepender-se e obedecer à sua vontade. É esse o motivo de a multidão ter seguido a Pasur e não a Jeremias, escolhido a Barrabás e não a Cristo, apedrejado os profetas verdadeiros e açoitado os servos de Deus. A multidão prefere o caminho largo; é mais fácil, mais cômodo e certamente há muito mais companhia.
Jeremias escreveu sobre o coração varias vezes em suas profecias. “Enganoso é o coração mais do que todas as coisas, e desesperadamente corrupto, quem o conhecerá?” (17:9) Para um povo de religião de aparência, Deus anunciou através do profeta: “Buscar-me-eis, e me achareis, quando me buscardes de todo o vosso coração”. (29:13). Pelo menos nove vezes Jeremias escreveu sobre a imaginação do coração perverso do homem. Pasur e o seu grupo jamais pregaram sermões radicais como esses. Prometeram paz, proteção, prosperidade, e as multidões os aplaudiram e apoiaram.
Atento ao povo que se desviava, Javé disse: “Porque dois males cometeu o meu povo: a mim me deixaram, o manancial de águas vivas. E cavaram cisternas, cisternas rotas, que não retêm as águas”. (Jr.2:13). Não foi uma mensagem muito popular, e fez com que Jeremias ficasse em apuros perante a instituição religiosa. Mas Jeremias era um profeta, não um mercenário; não desistiu apesar de o povo rejeitar sua mensagem.
Um último paralelismo entre a nossa época e a época de Jeremias: os falsos profetas eram homens gananciosos que usavam a religião para obtenção de lucros pessoais. Jactavam-se de sua prosperidade e da prosperidade do templo e da nação. Afinal, não eram eles o povo escolhido de Deus, e a sua riqueza não era prova de sua fidelidade e benção divina?
Por vários lugares onde passamos e encontramos igrejas-empresas, que propagam o evangelho da prosperidade, percebemos que as pessoas deixaram de ser rebanho e passaram a ser mala-direta, mantenedoras e parceiras de empreendimentos religiosos. A justificativa de que todos precisam conhecer “o verdadeiro evangelho” acaba se transformando, com o tempo, em necessidade de encontrar uma vitrine onde a instituição se mostre como produto. Como afirma Ed René Kivitz, “foi o tempo em que os pastores se gabavam de pastorear grandes igrejas. Agora a moda é ser apostolo de uma rede de igrejas”. (9)
Não creio que devamos esperar por parte dos lideres espirituais (pastores, padres,) destas respectivas igrejas que defendem e pregam o evangelho da prosperidade, uma leitura e interpretação da bíblia que considere a realidade histórica da salvação como querida efetivamente por Deus (conforme nos aponta Gustavo Gutierrez para quem a libertação e a salvação são dados reais, presentes no mundo, presentes na historia). Tenho profundas duvidas se devemos esperar uma reflexão ou mesmo uma pregação da fé em Cristo no contexto dos povos crucificados (como sempre o fez com seriedade e compaixão Jon Sobrino). Honestamente, não sei se devemos esperar que seus pregadores encarnem a verdade de que a realidade ultima para Jesus, O Reino de Deus, seja também para eles, pois sua realidade primeira e ultima está diretamente relacionada ao crescimento numérico e financeiro de seus “reinos” aqui na terra, pois, como afirma José Comblin, “a igreja ainda não sabe como se emancipar do poder do dinheiro, que tudo invade”. (10)
“Não ajunteis tesouros na terra, onde a traça e a ferrugem tudo consomem,.. Porque onde estiver o vosso tesouro, aí estará também o vosso coração”. (Mt.6:19-21)
(1) IURD é a sigla utilizada para identificar a Igreja Universal do Reino de Deus. O investimento financeiro realizado por esta denominação de cunho neo-pentecostal pode ser visibilizado por suas suntuosas construções, a exemplo do que se pode ver no centro da cidade próximo a lagoa (Parque Sólon de Lucena) e/ou principalmente na Av. Epitácio Pessoa, a principal avenida da capital paraibana.
(2) As Igrejas Batistas como Cidade Viva (no bairro do Bessa/Centro de Convenções Cidade Viva), PIB (Primeira Igreja Batista de JP/Espaço Gospel/Bairro de Manaira), Batistinha (Cujo Templo é um dos mais modernos do nordeste/no Bairro do Bessa) tem investido consideravelmente em seus espaços culticos a fim de proporcionar “bem-estar-espiritual” aos seus freqüentadores.
(3) Mo Sung, Jung. A crise do cristianismo e a crise do mundo – artigo publicado na internet, no site http://servicioskoinonia.org/relat/247p.htm
(4) Comblin, José. Quais os desafios dos temas teológicos atuais? São Paulo. Paulus, 2005 – pg. 7
(5) (fonte: Verbonet, Ultima Instância e Jornal Folha de São Paulo)
(6) Idem.
(7) Brakemeier, Gottfried. Preservando a Unidade do Espírito no Vínculo da Paz: Um curso de ecumenismo – São Paulo. Aste, 2004 – pg. 27
(8) W. Wiersbe, Warren. A Crise de Integridade – São Paulo. Vida, 1991.
(9) Kivitz, Ed René. Outra espiritualidade – São Paulo. Mundo Cristão, 2006 – pg. 38
(10)Comblin, José. A profecia na Igreja – São Paulo. Paulus, 2008 – pg. 286
BERGMAN E DREYER, HERDEIROS CINEMATOGRÁFICOS DE KIERKEGAARD, por Romero Venâncio
Filósofo e cientista social, ativista do Grupo Nós Também Somos Igreja, de João Pessoa, Paraíba, e colaborador no Centro Dom Oscar Romero de Direitos Humanos de Tibiri, periferia da capital paraibana, o autor oferece aos leitores e leitoras de Consciência, as seguintes reflexões, resumidas no parágrafo a seguir:
Entre a filosofia existencial de Soren Kierkeggard e o cinema de Ingmar Bergman e Carl Th. Dreyer existe uma “afinidade eletiva” que acontece na forma de tratar a trama humana do existir e na estrutura formal de incorporar alguns elementos da filosofia do pensador dinamarquês nas películas. Na abordagem de um grupo específico de temáticas, fica claro as relações entre o filósofo e os cineastas escandinavos: a existência ou não de Deus; a morte; a culpa; a experiência da crise; a escolha; a angustia; a fina ironia... Seguindo uma preciosa observação do pensador canadense Charles Le Blanc, de que existem verdades nas quais temos de comprometer a nós mesmos e tão essenciais que a existência é incompreensível sem elas, podemos situar as obras de Bergman/Dreyer e Kierkegaard num paralelo constante.
O nosso trabalho está dividido em duas partes: na primeira, apresentamos uma breve leitura de algumas categorias da filosofia de Kierkegaard que terão relevância na compreensão do cinema de Bergman. Na segunda, destacamos da obra do cineasta sueco a chamada “trilogia do silêncio” (O silêncio; Através de um espelho; Luz de inverno) e dois filmes do dinamarquês Carl Dreyer (O martírio de Joana D´arc e A palavra). Nessas obras dos cineastas escandinavos procuramos trabalhar uma perspectiva de filosofia da existência de forte influencia do pensador dinamarquês.
1.NOTAS SOBRE A FILOSOFIA DE KIERKEGAARD COM INTERESSE EM BERGMAN E DREYER
Lendo as obras de Kierkegaard, uma situação nos chama de imediato à atenção: o entrelaçamento radical entre vida e obra do filósofo. Situação esta comprovada pelos seus comentadores, tais como: Álvaro Valls; Ernane Reichmann; Charles Le Blanc; Márcio Gimenes; Deyve Redyson e outros. E isto é de muita relevância para uma primeira aproximação entre o filósofo e os cineastas. As raízes luteranas de Carl Dreyer e Ingmar Bergman são as mesmas de Kierkegaard. Uma comprovação de tais raízes em bergman esta no seu filme “Fanny e Alexander” de 1982, uma película marcadamente autobiográfica em que o cineasta sueco se volta para uma infância (na verdade, a sua própria) e a partir do olhar de uma criança ele narra os dramas das relações com um religioso autoritário. Já em A Palavra, filme de 1955, Dreyer chega colocar na boca de um personagem um tal “efeito Kierkegaard” que teria acontecido com o irmão diante de um comportamento estranho vivido pelo mesmo, sendo na verdade, o filme todo uma “espécie de citação” da filosofia da existência do pensador dinamarquês. Afirmação sustentada por uma referência de André Bazin num texto em que comenta a obra de Dreyer . O teatro, as relações familiares difíceis, os medos de um Deus tirânico; as hipocrisias são captadas pelas lentes de Bergman e Dreyer, que em muito se aproximam de imagens presentes nas obras de Kierkegaard, bastando pensar em “Temor e Tremor” de 1843.
O pensador dinamarquês, criado dentro dos rígidos princípios da religião luterana, que proclama a natureza pecaminosa do homem e sua irrevogável tendência a se corromper, viveu obcecado pelo sentimento de pecado. Isso não o impediu, durante certa fase da sua vida, de entregar-se a prazeres desregrados, onde o consumo do álcool e a exibição de roupas vistosas e pomposas ocupassem o centro de seus interesses imediatos. Aqui temos mais uma aproximação entre o cineasta e o filósofo, bastando ler as dez entrevistas feitas por três cineastas suecos com Bergman ainda na década de 60 e publicadas no Brasil pela editora paz e terra em 1978. Ainda podemos citar dois acontecimentos bem conhecidos dos leitores de Kierkegaard, a saber, a maldição que supostamente estariam sobre a família devido ao fato do pai ter blasfemado contra Deus nos campos gélidos da Dinamarca devido a uma aflição muito grande. Episódio jamais esquecido pelo filósofo e citado na obra “Diário de um sedutor”. Um segundo acontecimento esta ligado ao rompimento com a noiva e sua estranha explicação para tal fato. À medida que amadurecia suas idéias descobrindo sua vocação para o isolamento, percebeu ser incapaz de adaptar-se à convivência matrimonial, o que o levou a desmanchar o compromisso e viver atormentado com tal rompimento a vida toda, transformando-se numa situação existencial para várias meditações do filósofo. Mas as desventuras de Kierkegaard não se limitaram ao circulo familiar. Embora se mantendo fiel à confissão religiosa na qual foi educado, suas desavenças com a igreja luterana oficial, acusada por ele de ter-se burocratizado, distanciando-se da “religiosidade interior”, fundamental a todo verdadeiro cristão, impeliram-no a entrar em choque com a hierarquia eclesiástica.
Os pastores luteranos, protestava, haviam se tornado oficiais dos reis, por conseguinte, totalmente desligados de alguma verdades básicas e históricas do cristianismo. Segundo os comentadores citados, impossível dissociar a filosofia de Kierkegaard das vicissitudes pelas quais passou. Mas, também afirmam os mesmos comentadores, não é menos verdadeiro, também, angústias e inquietações latentes em sua época, que só muito mais tarde se manifestariam de maneira dramática. O pensador dinamarquês pertence ao conturbado e crítico século XIX e de certa forma, sua obra tem as marcas dessa época. Mas é importante fazer jus a uma observação de Álvaro Valls e seus seguidores de que não podemos reduzir a “obra agônica” de Kierkegaard aos acontecimentos pungentes de sua existência. Por isso seria bom evitar conferir um caráter absoluto à crônica biográfica de Kierkegaard, como se fosse uma única leitura possível da sua obra e fazer com isto uma espécie de “método” de leitura de outros filósofos. Ao longo da história do pensamento Ocidental, muitos filósofos padeceram inúmeros infortúnios pessoais, e nem por isso é licito afirmar que suas doutrinas são simples ilustração desses fatos. O nosso destaque na vida e obra de Kierkegaard, num imbricamento dialético importante, se dá a partir de uma brevíssima comparação intencional com a vida de Bergman.
Um outro ponto de partida importante para caracterizar a filosofia de kierkegaard, seria a referencia a obra de Hegel , cujas as idéias são vistas como opostas as suas. Há referencias a obra de Kierkegaard como sendo uma grande reação ao hegelianismo. Percebemos que inicialmente empolgado, como a maioria dos seus contemporâneos, pelas idéias de Hegel. O pensador dinamarquês logo depois se oporia energicamente ao intento hegeliano de condensar a realidade num sistema. Mediante o sistema, pretende-se explicar o todo, de modo a estabelecer uma visão total da realidade, em seus mínimos aspectos, a partir de determinados princípios que se interligam ordenadamente. A ambição de Hegel, segundo Kierkegaard, foi a de integrar, no que denominou de “idéia absoluta”, toda a realidade do mundo, apreendendo-o no conceito (palavra-chave no vocabulário filosófico hegeliano). O problema central para o filósofo da Dinamarca é que esse processo conduz a um esquecimento do individuo, a ponto de torna-lo desnecessário na “odisséia do Espírito hegeliano”. O individuo seria apenas uma das fases do sistema hegeliano e só. Para Kierkegaard, o individuo não pode ser apenas uma mera manifestação da idéia. O erro de Hegel, sentencia o dinamarquês, foi ter ignorado a existência concreta do individuo. Percebe-se que é daí que nasce uma certa aversão de Kierkegaard ao “espírito de sistema” na sua vontade de explicar a existência (tema central na cinematografia de Dreyer e Bergman). A existência humana, na leitura do pensador dinamarquês, não pode ser explicada através de conceitos frios, de esquemas abstratos. Um sistema promete tudo, mas não pode oferecer absolutamente nada, pois é incapaz de dar conta da realidade, sobretudo a realidade humana. O sistema é abstrato completamente, a realidade é absolutamente concreta. Aqui podemos perceber como Bergman se insere perfeitamente nessa perspectiva filosófica de Kierkegaard. No filme “Luz de inverno” (um dos filmes da trilogia do silêncio) o sacerdote luterano sofre amargamente a incapacidade dos conceitos racionais da sua religião em tentar explicar os fenômenos que lhe afoga a alma e as inquietações dos seus fiéis.
O sistema é racional e só pode ser assim. A realidade é tudo, menos sistema. Eis a base de Kierkegaard, Dreyer e Bergman. No “Diário de um sedutor”, ele escreve que diante de uma situação concreta que enseja solução, mesmo um filósofo tenta resolve-la fora do sistema que se filia. As soluções preconizadas pelos sistemas não são seguidas por seus criadores quando se encontram em apuros. Na vida cotidiana, os criadores de sistema se valem de alternativas diferentes daquelas que recomendam para os outros. Por que esse procedimento? Porque a realidade da qual os indivíduos têm maior conhecimento é sua própria realidade, a única que interessa de fato. Só a realidade singular, concreta interessa, e apenas esta o individuo pode conhecer. Só podemos nos apropriar da realidade subjetivamente. O universal não passa de mera abstração do singular, eis uma marca fundamental da filosofia de Kierkegaard e do cinema de Dreyer e Bergman. O pensamento abstrato só compreende o concreto abstratamente, enquanto que o pensamento centrado no individuo busca compreender concretamente o abstrato, aprende-lo em sua singularidade, capta-lo em sua manifestação subjetiva. O individuo, por isso mesmo, jamais pode ser dissolvido no anonimato, no impessoal. Todo conhecimento deve ligar-se inapelavelmente à existência, à subjetividade, nunca ao abstrato, ao racional, pois se assim proceder fracassará no intento de penetrar no sentido profundo das coisas, logo, de atingir a verdade. Singular é o homem. Contrariamente ao que ocorre entre os animais, o homem singular vale mais que a espécie. Apenas ele tem consciência de sua singularidade. Portanto, o homem é categoria central da existência. A existência individual, assim a concebe Kierkegaard, é para ser vivida, dispensando ter como explicação última algo de racional. Diferente da concepção hegeliana de homem, o dinamarquês exalta o concreto, o singular, o homem enquanto subjetividade. Kierkegaard atribui a si mesmo a missão de defender o singular contra o geral, tarefa que, no “Diário de um sedutor”, compara a Leônidas, herói das Termópilas, a quem coube resistir às investidas do inimigo Persa. No caso de filósofo da Dinamarca, não há dúvida, o inimigo é toda forma de sistema.
Se os temas da existência e da singularidade são temas que em muito aproxima Kierkegaard de Bergman, o tema da fé e todas as conseqüências existenciais de um enfrentamento com o tema, leva tal relação a uma situação de influência direta . Para Kierkegaard, a “verdadeira fé” não está ligada à instituição da igreja ou das igrejas, quanto a um estado de crise existencial constante. Não se trata, como comenta Charles Le Blanc, tanto de ter fé ou de conservá-la, quanto de vivê-la (LE BLANC, 2003). Ser religioso de nascença ou pela educação não nos faz cristãos. Longe de nos contentarmos com uma etiqueta de cristãos porque fomos batizados ou porque somos fiéis, temos que nos perguntar perpetuamente em como se tornar existencialmente cristão (tema central no filme “Luz de inverno” de Bergman, em que um sacerdote protestante vive as voltas com o drama de ser religioso e ter que ter fé e não poder ser do outra maneira. A existência ou não de Deus o atormenta constantemente). O filósofo situa-se nos antípodas de um povo que se satisfaz com um estatuto cristão, e que Kierkegaard qualifica de “pagão batizado”.
A religiosidade da existência tal como Kierkegaard a percebe afirma-se primeiro como reação à concepção totalizante e universal na qual Hegel englobava a existência humana. Se par este último a existência não contava se não como momento de um sistema lógico universal, o pensador dinamarquês entende reafirma a primazia da subjetividade, ou seja, tudo que é próprio de cada individuo e que escapa a toda categoria. Não se pode apreender o espírito religioso que anima Kierkegaard a não ser que se preserve e espírito do domínio do conceito e da categoria, a fim de perceber com toda sua força as questões que emanam da intimidade do homem confrontado ao trágico da existência. A lógica hegeliana torna-se impotente e cai em desuso frente ao sofrimento humano, por exemplo. Pois, como o faz notar Álvaro Valls no seu livro “Entre Sócrates e Cristo”: “O que existe não é o conceito de sofrimento e sim os homens que sofrem”. O espírito religioso autêntico é, portanto aquele que experimenta a existência em seu foro íntimo e não mais através do conceito. A fé é para o pensador dinamarquês um elemento fundamental para a existência e para a filosofia. A fé não se reivindica mais, experimenta-se mergulhando-nos numa busca sem fim. Segundo Charles Le Blanc, a “fé autêntica” nos coloca confrontados a um aprendizado da vida que corresponde de algum modo a situações limites de interrogação sobre a própria existência e seus dramas cotidianos (tema explorado em vários filmes de Bergman). Kierkegaard situa a fé a partir de uma espécie de postulado existencial em três estágios: na esfera estética, o homem (a imagem de Don Juan) refugia-se no imediatismo do desejo, no instante, assim como na recusa de toda escolha. Na esfera ética, compreendemos ao cabo de um desespero sem fim, compreendemos ao cabo de um desespero sem fim, que precisamos ir ver além do imediatismo para nos tornarmos o que nos tornamos, ou seja, admitir a existência de uma alternativa no lugar da indiferença ao bem e ao mal, logo, aceder ao reconhecimento do bem e do mal (esse desespero vivido pelo individuo no estágio ético em Kierkegaard, pode ser encontrado no cinema de Dreyer e Bergman na construção de vários dos seus personagens). No cinema de Bergman este estágio ético corresponde aquilo que Susan Sontag num artigo magistral sobre Persona, afirmou: “O que é mostrado no final de Persona assemelha-se a um empate angustiante.” (SONTAG, 1987:124). O que parece irônico na lógica de Kierkegaard é que entramos na esfera religiosa pelo humor e assim libertados do cinismo autodestruidor. Aceitamos, em nome da fé, o peso de uma falta de Homem perante um Deus para com o qual temos uma divida. Sempre em busca da felicidade, e esta nos faltando sempre, temos que admitir esse fato e esperar para além de toda decepção. Marcado e preocupado em responder a questão “que devo fazer?”, Kierkegaard aprofunda, amplia essa interrogação ao extremo, e assimila a paixão à existência: o ser humano mantém-se entre a dúvida e a fé, num estágio de existência fechado que se basta a si mesmo, e no qual só sai por um “salto” (e não por graus de evolução, como pensa a filosofia hegeliana). Como afirma Charles Le Blanc: “Todo homem se encontra necessariamente em uma ou outra esfera da existência e o problema que cada um tem que resolver é determinar em estágio se encontra”.
É nesta relação entre dúvida e fé que o ponto de encontro entre Kierkegaard e Bergman se torna mais intenso e nítido. Para exemplificar tal afirmação, basta-nos reportar ao belíssimo filme “O sétimo selo” ou, ainda a “Luz de inverno”. Tanto para o cineasta, como para o pensador dinamarquês a relação torturante e angustiante entre dúvida e fé é o essencial da existência, por ser tão irredutível e inevitável. É em face de Deus que o homem experimenta o paradoxo inerente a existência... Aqui estamos no ponto mais alto da relação de influencia de Kierkegaard sobre Bergman. O paradoxo existencial que trabalha Kierkegaard intensifica-se logo que o homem se relaciona com um Deus que o transcende: sem Deus, o homem perde toda significação, e sua busca é desprovida de sentido. Ocorre que se o paradoxo é o lugar onde uma verdade se revela a nós, nossa subjetividade reside não na sua falsidade, mas na sua insuficiência em relação a esse Todo-Outro (Deus) que nós não somos. A existência é e permanecerá sempre falta, uma ascensão inacabada e inacabável. Não cessamos de aspirar uma plenitude enquanto vagamos num meio de uma incerteza infinita; é com esta própria incerteza que nos devemos contentar como verdade. É nesse sentido que Kierkegaard afirmava em “Temor e Tremor” que “Deus está justamente presente logo que a incerteza de tudo é pensada como infinita”. E jamais experimentamos tanto erro da subjetividade quanto logo que nos encontramos remetidos a nós mesmos, numa solidão radical. “O homem Kierkegaardiano, esceve Charles Le Blanc, é antes de tudo aquele que busca um ponto onde jogar a âncora, pois, se se limitar a si mesmo, mostra-se injustificável, sem mensagem, e o mundo em que mora lhe dá náusea” (LE BLANC, 2003:51). Neste ponto é possível perceber, como as imagens existenciais criadas pelo filósofo dinamarquês são muito utilizadas no cinema de Bergman. A filosofia existencial de Kierkegaard é a base para o cinema também existencial de Carl Dreyer e Ingmar Bergman. Como afirma Luiz Gustavo Onisto de Freitas em um artigo dedicado as relações entre Kierkegaard e Bergman: “Da mesma maneira que Bergman prioriza a individualidade de seus personagens no cinema, Kierkegaard concede um papel fundamental ao indivíduo em sua obra” (FREITAS, 2007:323).
2. NOTAS SOBRE O CINEMA DE DREYER E BERGMAN COM INTERESSE EM KIERKEGAARD
Comentar a obra de Ingmar Bergman e Carl Dreyer num espaço de escrita introdutória como esse, torna-se uma tarefa muito difícil. Cineasta de uma vastíssima obra teatral e cinematográfica que vai de 1944 a 2003, Bergman é um dos mais comentados e citados diretores do século XX. Já o diretor dinamarquês, Carl Dreyer é considerado o mais importante cineasta do mundo escandinavo e um mestre de toda uma geração, a começar por Bergman e Laars Von Trier. O nosso intuito é fazer um pequeno recorte na obra de ambos e tentar demonstrar a presença da filosofia de Kierkegaard nessas mesmas obras. Comecemos pela obra de Dreyer.
Considerado um dos maiores realizadores do cinema dinamarquês, Carl Dreyer teve uma carreira internacional. Desde O Presidente, filme de 1920 nota-se um cuidado com a imagem e com um rigor de pensamento, que marcará sua obra posterior e demonstrará sua fonte filosófica na obra de Kierkegaard. O que no filme A Palavra um personagem chamará de “efeito Kierkegaard”. É como se Dreyer se encontrasse inteiro nesse trabalho. Seu segundo filme permite que se acrescente a esse retrato duas pinceladas: o gosto pelo fantástico e uma preocupação por temas religiosos, marcante em sua carreira até o fim da vida. Página do livro de satã inspira-se em Intolerância do americano Griffith. Suas outras obras serão filmadas na Suécia e na Alemanha. Dreyer produziu pelo menos, três grandes obras primas do cinema mundial: O martírio de Joana D´arc (1928); Dias de ira (1943) e A palavra (1955). Para o nosso breve comentário, interessanos as obras de 1928 e 1955, respectivamente. Extraído, em principio de um roteiro, o filme sobre Joana D`arc foi inspirado nas minutas do processo em um arquivo em Paris onde temos os detalhes das acusações e das palavras de defesa utilizada pela virgem de San Remy, mas a ação destacada pelo cinema de Dreyer condensa num único dia segundo um imperativo trágico que de forma alguma falseia . A Joana D`arc do cineasta dinamarquês permanece memorável nos anais do cinema pela audácia fotográfica. Com exceção de algumas imagens, o filme é inteiramente composto de closes, principalmente rostos. Essa técnica atendia a dois propósitos aparentemente contraditórios, mas, na verdade, intimamente complementares: mística e realismo. Marca importante da filosofia de Kierkegaard no cinema de Dreyer. A história de Joana, tal como nos é contada/mostrada por Dreyer, apresenta-se despojada de qualquer incidência anedótica; é o puro combate das almas, mas essa tragédia exclusivamente espiritual, onde todo o movimento é interior, expressa-se cabalmente por intermédio dessa parte privilegiada do corpo e do rosto. Importa precisá-lo mais uma vez. O ator emprega seu rosto para expressar sentimentos, porém Dreyer exigiu de seus interpretes outra coisa a mais que a interpretação. Vista de tão perto em grande close, a máscara da interpretação cai. Como escreve Robert Bresson, discípulo francês de Dreyer: “A câmara penetra todas as camadas da fisionomia. Além do rosto que se faz, ela descobre o rosto que se tem, visto de tão perto, o rosto humano torna-se documento”. O paradoxo fecundo, o ensinamento inesgotável desse filme é que, nele, a extrema purificação espiritual se entrega ao realismo mais escrupuloso sob o microscópio da câmara e revela a presença determinante da concepção de existência elaborada por Kierkegaard. Dreyer proibiu qualquer maquiagem, os crânios dos monges são efetivamente raspados e foi diante de toda equipe em lágrimas que o carrasco cortou realmente os cabelos de Falconetti (a Joana D´arc de Dreyer) antes de conduzi-la à fogueira. Não se tratava, em absoluto, de uma tirania. Devemos-lhe esse sentimento irrecusável de tradução direta da alma. A verruga, as sardas e as rugas dos acusadores de Joana são consubstanciais às suas almas e significam mais que suas interpretações. A grandeza desse filme kierkegaardiano pode ser resumido numa frase de Charles Le Blanc ao comentar o sentido da fé na obra do pensador dinamarquês: “Ter fé é assumir os riscos que derivam das possibilidades da existência”. Frase que bem define a fisionomia e a decisão firme da Joana D`arc de Carl Dreyer.
A Palavra (1955) é um filme arrebatador em todos os sentidos. As marcas da filosofia de Kierkegaard estão por todos os lados. No tema religioso e angustiante; na crítica de uma certa prática de cristianismo; na fotografia de uma brancura existencial e num acontecimento raro no cinema de Carl Dreyer: é o seu único filme em que há uma citação do nome de Kierkegaard ligado a um acontecimento que marcou a vida de um dos filhos de um velho patriarca camponês da Dinamarca (ambiente da película). Só por essas referências rápidas daria para perceber a influencia determinante da filosofia da existência de Kierkegaard no cinema de Carl Dreyer. Mas percebemos que a influencia vai além de algumas citações ou semelhanças temáticas. Esta na própria estrutura formal do estilo de Dreyer. Ele incorpora Kierkegarrd e faz da sua obra argumento de roteiro no intuito de melhor trabalhar um determinado tema.
A Palavra é uma adaptação de uma peça de Kaj Munk, um pastor-dramaturgo bem conhecido nos paises escandinavos que morreu em 1944, assassinado pelos nazistas. A Palavra foi criada em 1932 e seguramente, o argumento dramático esta ligado aos costumes religiosos escandinavos, bem temperado com referencias filosóficas e teológicas retiradas da obra de Kierkegaard. Tentemos resumir essa ação dramática em que a “banalidade cotidiana” se acha estranhamente desnaturada pela presença ambígua do sobrenatural. Ela parece passar-se numa fazenda do interior da Dinamarca. O velho fazendeiro tem três filhos, dentre os quais o mais velho, se casou com uma bela jovem que lhe deu duas filhas e que esperava um bebê. O mais jovem, que desposar a filha de um pequeno alfaiate da aldeia que dirige um grupo religioso protestante fervoroso, cuja influencia se opõe à do fazendeiro patriarca, homem piedoso, mas defende um cristianismo mais alegre e menos rigoroso. Sua rivalidade religiosa é complicada por uma certa animosidade social. Quanto ao seu segundo filho, Johannes, é o grande tormento da família. Regressando atormentado de uma experiência em um seminário luterano em que descobriu a obra de Kierkegaard onde passou a criticar violentamente a religiosidade protestante, mas sem se desligar do cristianismo, querendo apenas uma vida cristã sem as hipocrisias dos rituais sem piedade e seriedade, Johannes passa afirmar que uma das coisas mais tristes é “um cristianismo indiferente” (bem ao estilo Kierkegaard nas lentes de Dreyer). O grande tormento da família torna-se mais grave quando Johannes passa a comportar-se como se fosse a “encarnação de cristo” e começa a profetizar nos campos da redondeza. A partir daí uma desgraça abate-se sobre essa gente. A mulher do irmão mais velho, dá a luz penosamente um natimorto e em seguida também morre. O atormentado Johannes, que “profetizara” várias desgraças, foge no meio da noite. Quando, enfim, chega a hora de fechar o caixão, Johannes aparece, aparentemente curado, para repreender os homens de pouca fé por não terem pedido a Deus para devolver a vida à morta. Sua sobrinha mais nova vem pedir-lhe para fazer um milagre e, em nome da fé dessa criança, Johannes pronuncia as palavras bíblicas da ressurreição. Deixemos aos interessados o final da película e a incerteza extraordinária, prolongada por Dreyer. Limitemo-nos a dizer que ele não se presta a atenuar a estranheza da história. Certamente, se refletirmos bem, o desfecho de Joana D´arc não tampouco banal, mas tem a seu favor a força da “lenda” e o recuo da história. Quanto a Dia de ira, Dreyer não teria muita dificuldade para nos fazer admitir a realidade do além numa época em que tanto se acreditava nela. Todos esses recursos são recusados pela atualidade da peça de Kaj Munk; e, de resto, é do realismo mais direto, às vezes mais brutal, que ele pretende falar. De um certo ponto de vista, A Palavra pertence a uma estética quase naturalista. Mas essa matéria dramática realista é como que iluminada de dentro por sua realidade última. Essa imagem impõe-se por si mesma pelo uso que Dreyer faz da luz. A encenação de A Palavra é a principio uma espécie de “metafísica do branco”. Um branco que esta na base , e que é sua referencia absoluta. É o branco que constitui a cor da morte e a cor da vida. A Palavra é, de certo modo, o último filme em preto e branco, aquele que fecha todas as portas para o limite do uso do branco. Um elemento nos filmes de Dreyer e, em especial em A Palavra, nos informa de uma presença decisiva da obra de Kierkegaard no seu cinema: num universo cinematográfico atento ao mistério, o sobrenatural não surge do exterior. É pura imanência. Ele revela-se, no limite extremo, como ambigüidade da natureza, e antes de tudo, no caso di filme, como ambigüidade da morte. Nunca no cinema, nos afirma André Bazin, “a morte foi abordada de tão perto, ou seja, ao mesmo tempo em sua realidade e em seu sentido”. A Palavra é uma espécie de tragédia teológica, sem a menor concessão ao terror... Nada mais Kierkegardiano.
Passando a Bergman, podemos afirmar que o que o que de chofre nos chama a atenção é a maneira como o cineasta sueco trabalha temas delicados e de forte carga existencial, tais como: o escândalo erótico; as polaridades de violência e impotência; a razão e o absurdo; a linguagem e o silêncio; o inteligível e o ininteligível, tudo isso soa ainda hoje por demais estranho e carregado de problemas para uma compreensão linear do que foi entendido como uma narrativa clássica no cinema moderno.
Ingmar Bergman é considerado hoje o ponto mais alto do cinema sueco e o mais conhecido cineasta do mundo escandinavo juntamente com Carl Theodor Dreyer e Laars Von Ttrier (cineasta contemporâneo marcado profundamente pela filosofia de Kierkegaard). A produção cinematográfica de Bergman vai de 1946 a 2003, intercalada com uma série de trabalhos no teatro e na televisão. Nosso comentário à obra de Bergman esta baseado em dois textos muito importantes. Um trata do cinema sueco e sua base psicológica, intitulado: “O realismo psicológico: herança literária do cinema sueco” de Rude Waldekranz (crítico do instituto sueco de cinema), texto este que nos informa da influencia da filosofia de Kierkegaard no cinema sueco e de um modo geral no cinema escandinavo como um todo. Afirma o crítico: “Bergman fez da alma o centro da ação, dando assim ao filme uma nova dimensão, que até então lhe faltava: a profundidade psicológica” (WALDEKRANZ, 1969:55) e ainda numa outra frase esclarecedora: “Disseca a verdade até ai oculta, revelando o verdadeiro rosto do ser humano, que, impiedosamente, põe a descoberto” (WALDEKRANZ, 1969:56). Dessa forma, podemos afirmar que Bergman provou de maneira brilhante que a arte cinematográfica poderia se constituir num meio de expressão extremamente pessoal de trabalhar as imagens e a narrativa. Um outro texto é do próprio Bergman, intitulado Imagens (1990), espécie de diário de trabalho do cineasta sueco onde através de uma leitura crítica de seus próprios trabalhos e de suas influencias intelectuais, nos informa que a presença de Kierkegaard no cinema escandinavo (Suécia e Dinamarca) tem inicio com a obra de Carl Dreyer (que fazia filmes centrado na expressão facial e dramática dos atores e atrizes), passando por ele próprio e chegando ao (então jovem cineasta) Laars Von Trier. Nesse cinema visto pelas palavras de Bergman é possível perceber um elemento importante da filosofia de Kierkegaard, a saber, que o individuo na sua singular existencia deve fazer uma opção decisiva, pró ou contra a uma “forma existencial”. Este cinema nos mostra que não há neutralidade no ato de existir. Na dramática expressão facial da Joana D´arc de Dreyer diante dos seus algozes; nas dúvidas e angústias dos personagens da trilogia do silêncio de Bergman ou na pureza irônica dos personagens principais de Os idiotas ou de Dançando no escuro de Laars Von Trier, existir já é posicionar-se.
A titulo de conclusão, destaquemos na chamada “Trilogia do silêncio” de Bergman, dois filmes que podem nos servir como uma espécie de lugar privilegiado de onde podemos observar com mais nitidez a influencia do pensador dinamarquês. A trilogia foi elaborada por Bergman entre 1960 a 1962 e é composta pelo filmes: “Através de um espelho”; “Luz de inverno” e “O Silêncio”. Um tema fundamental que une a trilogia é a situação de personagens problemáticos, vivendo situações de dilaceramento. É a loucura da protagonista de “Através de um espelho”; a falta de fé e a rotina angustiante de um pastor em “Luz de inverno” ou a incapacidade de comunicação de duas irmãs em “O silêncio”.
Comecemos pela película “Através de um espelho”. Segundo Susan Sontag, a dificuldade desse filme deriva do fato de Bergman não oferecer nenhum tipo de sinalização nítida para separar fantasia de realidade, como por exemplo, o faz L. Bunuel em “A bela da tarde. O cineasta espanhol coloca as pistas, quer que o espectador seja capaz de decifrar o filme. A insuficiência das pistas oferecidas pelo diretor sueco pode ser tomada como indicio de que ele pretende que o filme permaneça parcialmente codificado. O espectador pode apenas aproximar-se, mas nunca atingir a certeza sobre a ação. Entretanto, esta distinção entre fantasia e realidade tem pouca utilidade para a compreensão de “Através de um espelho” e para o tipo de cinema de Bergman. Dos quatro personagens da película de 1960, é Karin o centro da narrativa. Bergman a apresenta como uma pessoa atormentada pela loucura que lhe tira a completa lucidez. É com essa personagem que a distinção entre fantasia e realidade perde sua importância. Por exemplo, Karin confessa ver e acreditar num “Deus-aranha”, que com suas teias vai lhe puxando pouco a pouco para si, sem se importar se as outras pessoas (pai, irmão e marido) acreditam ou não no “deus-araquinídeo”. Aqui a divida de Bergman para com Kierkegaard se mostra pelo uso da “comunicação indireta”. Na personagem Karin esta uma metáfora da idéia de que um ser humano viu o que significa existir. Na sua personagem, Bergman se realiza como num pseudônimo ao afirmar o caráter indeterminado das suas interrogações importantes a respeito do individuo, pois, tanto revela quanto esconde os diversos momentos dessa existência louca e lúcida da personagem Karin. Em “Através de um espelho”, Bergman nos põe a pensar à semelhança dos personagens-pseudônimos de Kierkegaard.
Já em “O silêncio”, o diretor sueco chega ao ponto mais alto da trilogia, ao trazer uma carga de agonia pessoal quase profana na luta na luta vivenciada pelas duas personagens irmãs, Ester e Ana. Quase profana, porque Bergman nunca se separa completamente do Sagrado (a semelhança de Dreyer). A viagem das duas irmãs a uma cidade desconhecida de nome inventado chamada “Timoka”, é na verdade à imagem e o conflito existencial entre duas pessoas unidas para sempre pelo sangue, mas desunidas completamente na relação de cada uma com o mundo que as circunda. Ester é a escritora e tradutora de grande força intelectual, mas desamparada emocionalmente. A razão não lhe salva e a coloca cada vez mais longe do que ama (no filme, Bergman deixa entrever uma relação erótica entre as irmãs, que vai do desejo ao desespero). Ana é a revoltada e fútil, que radicaliza sua relação com o mundo, numa espécie de “imediatismo da natureza” (nas palavras de Sontag), muito próximo ao “estádio estético” definido por Kierkegaard. Num desfecho extraordinário, Bergman nos deixa a sua mensagem kierkegardiana: depois de romper com o mundo sufocante, o ser humano de fé (a presença constante da música de Bach não é gratuita e sim uma metáfora dessa fé) volta para o mundo, recebe-o de novo, mas com a diferença de estar plenamente consciente de que há uma outra realidade que pede sua opção existencial. Sabe, agora, a personagem Ana que, para alcançar uma existência sem truques, é necessário conciliar o incondicionado e o relativo. Eis a divida fundamental que Bergman paga ao pensador dinamarquês.
BIBLIOGRAFIA
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WALDEKRANZ, Rune. O realismo psicológico: herança literária do cinema sueco. In: Cinema sueco. Cadernos de cinema. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1969.
Entre a filosofia existencial de Soren Kierkeggard e o cinema de Ingmar Bergman e Carl Th. Dreyer existe uma “afinidade eletiva” que acontece na forma de tratar a trama humana do existir e na estrutura formal de incorporar alguns elementos da filosofia do pensador dinamarquês nas películas. Na abordagem de um grupo específico de temáticas, fica claro as relações entre o filósofo e os cineastas escandinavos: a existência ou não de Deus; a morte; a culpa; a experiência da crise; a escolha; a angustia; a fina ironia... Seguindo uma preciosa observação do pensador canadense Charles Le Blanc, de que existem verdades nas quais temos de comprometer a nós mesmos e tão essenciais que a existência é incompreensível sem elas, podemos situar as obras de Bergman/Dreyer e Kierkegaard num paralelo constante.
O nosso trabalho está dividido em duas partes: na primeira, apresentamos uma breve leitura de algumas categorias da filosofia de Kierkegaard que terão relevância na compreensão do cinema de Bergman. Na segunda, destacamos da obra do cineasta sueco a chamada “trilogia do silêncio” (O silêncio; Através de um espelho; Luz de inverno) e dois filmes do dinamarquês Carl Dreyer (O martírio de Joana D´arc e A palavra). Nessas obras dos cineastas escandinavos procuramos trabalhar uma perspectiva de filosofia da existência de forte influencia do pensador dinamarquês.
1.NOTAS SOBRE A FILOSOFIA DE KIERKEGAARD COM INTERESSE EM BERGMAN E DREYER
Lendo as obras de Kierkegaard, uma situação nos chama de imediato à atenção: o entrelaçamento radical entre vida e obra do filósofo. Situação esta comprovada pelos seus comentadores, tais como: Álvaro Valls; Ernane Reichmann; Charles Le Blanc; Márcio Gimenes; Deyve Redyson e outros. E isto é de muita relevância para uma primeira aproximação entre o filósofo e os cineastas. As raízes luteranas de Carl Dreyer e Ingmar Bergman são as mesmas de Kierkegaard. Uma comprovação de tais raízes em bergman esta no seu filme “Fanny e Alexander” de 1982, uma película marcadamente autobiográfica em que o cineasta sueco se volta para uma infância (na verdade, a sua própria) e a partir do olhar de uma criança ele narra os dramas das relações com um religioso autoritário. Já em A Palavra, filme de 1955, Dreyer chega colocar na boca de um personagem um tal “efeito Kierkegaard” que teria acontecido com o irmão diante de um comportamento estranho vivido pelo mesmo, sendo na verdade, o filme todo uma “espécie de citação” da filosofia da existência do pensador dinamarquês. Afirmação sustentada por uma referência de André Bazin num texto em que comenta a obra de Dreyer . O teatro, as relações familiares difíceis, os medos de um Deus tirânico; as hipocrisias são captadas pelas lentes de Bergman e Dreyer, que em muito se aproximam de imagens presentes nas obras de Kierkegaard, bastando pensar em “Temor e Tremor” de 1843.
O pensador dinamarquês, criado dentro dos rígidos princípios da religião luterana, que proclama a natureza pecaminosa do homem e sua irrevogável tendência a se corromper, viveu obcecado pelo sentimento de pecado. Isso não o impediu, durante certa fase da sua vida, de entregar-se a prazeres desregrados, onde o consumo do álcool e a exibição de roupas vistosas e pomposas ocupassem o centro de seus interesses imediatos. Aqui temos mais uma aproximação entre o cineasta e o filósofo, bastando ler as dez entrevistas feitas por três cineastas suecos com Bergman ainda na década de 60 e publicadas no Brasil pela editora paz e terra em 1978. Ainda podemos citar dois acontecimentos bem conhecidos dos leitores de Kierkegaard, a saber, a maldição que supostamente estariam sobre a família devido ao fato do pai ter blasfemado contra Deus nos campos gélidos da Dinamarca devido a uma aflição muito grande. Episódio jamais esquecido pelo filósofo e citado na obra “Diário de um sedutor”. Um segundo acontecimento esta ligado ao rompimento com a noiva e sua estranha explicação para tal fato. À medida que amadurecia suas idéias descobrindo sua vocação para o isolamento, percebeu ser incapaz de adaptar-se à convivência matrimonial, o que o levou a desmanchar o compromisso e viver atormentado com tal rompimento a vida toda, transformando-se numa situação existencial para várias meditações do filósofo. Mas as desventuras de Kierkegaard não se limitaram ao circulo familiar. Embora se mantendo fiel à confissão religiosa na qual foi educado, suas desavenças com a igreja luterana oficial, acusada por ele de ter-se burocratizado, distanciando-se da “religiosidade interior”, fundamental a todo verdadeiro cristão, impeliram-no a entrar em choque com a hierarquia eclesiástica.
Os pastores luteranos, protestava, haviam se tornado oficiais dos reis, por conseguinte, totalmente desligados de alguma verdades básicas e históricas do cristianismo. Segundo os comentadores citados, impossível dissociar a filosofia de Kierkegaard das vicissitudes pelas quais passou. Mas, também afirmam os mesmos comentadores, não é menos verdadeiro, também, angústias e inquietações latentes em sua época, que só muito mais tarde se manifestariam de maneira dramática. O pensador dinamarquês pertence ao conturbado e crítico século XIX e de certa forma, sua obra tem as marcas dessa época. Mas é importante fazer jus a uma observação de Álvaro Valls e seus seguidores de que não podemos reduzir a “obra agônica” de Kierkegaard aos acontecimentos pungentes de sua existência. Por isso seria bom evitar conferir um caráter absoluto à crônica biográfica de Kierkegaard, como se fosse uma única leitura possível da sua obra e fazer com isto uma espécie de “método” de leitura de outros filósofos. Ao longo da história do pensamento Ocidental, muitos filósofos padeceram inúmeros infortúnios pessoais, e nem por isso é licito afirmar que suas doutrinas são simples ilustração desses fatos. O nosso destaque na vida e obra de Kierkegaard, num imbricamento dialético importante, se dá a partir de uma brevíssima comparação intencional com a vida de Bergman.
Um outro ponto de partida importante para caracterizar a filosofia de kierkegaard, seria a referencia a obra de Hegel , cujas as idéias são vistas como opostas as suas. Há referencias a obra de Kierkegaard como sendo uma grande reação ao hegelianismo. Percebemos que inicialmente empolgado, como a maioria dos seus contemporâneos, pelas idéias de Hegel. O pensador dinamarquês logo depois se oporia energicamente ao intento hegeliano de condensar a realidade num sistema. Mediante o sistema, pretende-se explicar o todo, de modo a estabelecer uma visão total da realidade, em seus mínimos aspectos, a partir de determinados princípios que se interligam ordenadamente. A ambição de Hegel, segundo Kierkegaard, foi a de integrar, no que denominou de “idéia absoluta”, toda a realidade do mundo, apreendendo-o no conceito (palavra-chave no vocabulário filosófico hegeliano). O problema central para o filósofo da Dinamarca é que esse processo conduz a um esquecimento do individuo, a ponto de torna-lo desnecessário na “odisséia do Espírito hegeliano”. O individuo seria apenas uma das fases do sistema hegeliano e só. Para Kierkegaard, o individuo não pode ser apenas uma mera manifestação da idéia. O erro de Hegel, sentencia o dinamarquês, foi ter ignorado a existência concreta do individuo. Percebe-se que é daí que nasce uma certa aversão de Kierkegaard ao “espírito de sistema” na sua vontade de explicar a existência (tema central na cinematografia de Dreyer e Bergman). A existência humana, na leitura do pensador dinamarquês, não pode ser explicada através de conceitos frios, de esquemas abstratos. Um sistema promete tudo, mas não pode oferecer absolutamente nada, pois é incapaz de dar conta da realidade, sobretudo a realidade humana. O sistema é abstrato completamente, a realidade é absolutamente concreta. Aqui podemos perceber como Bergman se insere perfeitamente nessa perspectiva filosófica de Kierkegaard. No filme “Luz de inverno” (um dos filmes da trilogia do silêncio) o sacerdote luterano sofre amargamente a incapacidade dos conceitos racionais da sua religião em tentar explicar os fenômenos que lhe afoga a alma e as inquietações dos seus fiéis.
O sistema é racional e só pode ser assim. A realidade é tudo, menos sistema. Eis a base de Kierkegaard, Dreyer e Bergman. No “Diário de um sedutor”, ele escreve que diante de uma situação concreta que enseja solução, mesmo um filósofo tenta resolve-la fora do sistema que se filia. As soluções preconizadas pelos sistemas não são seguidas por seus criadores quando se encontram em apuros. Na vida cotidiana, os criadores de sistema se valem de alternativas diferentes daquelas que recomendam para os outros. Por que esse procedimento? Porque a realidade da qual os indivíduos têm maior conhecimento é sua própria realidade, a única que interessa de fato. Só a realidade singular, concreta interessa, e apenas esta o individuo pode conhecer. Só podemos nos apropriar da realidade subjetivamente. O universal não passa de mera abstração do singular, eis uma marca fundamental da filosofia de Kierkegaard e do cinema de Dreyer e Bergman. O pensamento abstrato só compreende o concreto abstratamente, enquanto que o pensamento centrado no individuo busca compreender concretamente o abstrato, aprende-lo em sua singularidade, capta-lo em sua manifestação subjetiva. O individuo, por isso mesmo, jamais pode ser dissolvido no anonimato, no impessoal. Todo conhecimento deve ligar-se inapelavelmente à existência, à subjetividade, nunca ao abstrato, ao racional, pois se assim proceder fracassará no intento de penetrar no sentido profundo das coisas, logo, de atingir a verdade. Singular é o homem. Contrariamente ao que ocorre entre os animais, o homem singular vale mais que a espécie. Apenas ele tem consciência de sua singularidade. Portanto, o homem é categoria central da existência. A existência individual, assim a concebe Kierkegaard, é para ser vivida, dispensando ter como explicação última algo de racional. Diferente da concepção hegeliana de homem, o dinamarquês exalta o concreto, o singular, o homem enquanto subjetividade. Kierkegaard atribui a si mesmo a missão de defender o singular contra o geral, tarefa que, no “Diário de um sedutor”, compara a Leônidas, herói das Termópilas, a quem coube resistir às investidas do inimigo Persa. No caso de filósofo da Dinamarca, não há dúvida, o inimigo é toda forma de sistema.
Se os temas da existência e da singularidade são temas que em muito aproxima Kierkegaard de Bergman, o tema da fé e todas as conseqüências existenciais de um enfrentamento com o tema, leva tal relação a uma situação de influência direta . Para Kierkegaard, a “verdadeira fé” não está ligada à instituição da igreja ou das igrejas, quanto a um estado de crise existencial constante. Não se trata, como comenta Charles Le Blanc, tanto de ter fé ou de conservá-la, quanto de vivê-la (LE BLANC, 2003). Ser religioso de nascença ou pela educação não nos faz cristãos. Longe de nos contentarmos com uma etiqueta de cristãos porque fomos batizados ou porque somos fiéis, temos que nos perguntar perpetuamente em como se tornar existencialmente cristão (tema central no filme “Luz de inverno” de Bergman, em que um sacerdote protestante vive as voltas com o drama de ser religioso e ter que ter fé e não poder ser do outra maneira. A existência ou não de Deus o atormenta constantemente). O filósofo situa-se nos antípodas de um povo que se satisfaz com um estatuto cristão, e que Kierkegaard qualifica de “pagão batizado”.
A religiosidade da existência tal como Kierkegaard a percebe afirma-se primeiro como reação à concepção totalizante e universal na qual Hegel englobava a existência humana. Se par este último a existência não contava se não como momento de um sistema lógico universal, o pensador dinamarquês entende reafirma a primazia da subjetividade, ou seja, tudo que é próprio de cada individuo e que escapa a toda categoria. Não se pode apreender o espírito religioso que anima Kierkegaard a não ser que se preserve e espírito do domínio do conceito e da categoria, a fim de perceber com toda sua força as questões que emanam da intimidade do homem confrontado ao trágico da existência. A lógica hegeliana torna-se impotente e cai em desuso frente ao sofrimento humano, por exemplo. Pois, como o faz notar Álvaro Valls no seu livro “Entre Sócrates e Cristo”: “O que existe não é o conceito de sofrimento e sim os homens que sofrem”. O espírito religioso autêntico é, portanto aquele que experimenta a existência em seu foro íntimo e não mais através do conceito. A fé é para o pensador dinamarquês um elemento fundamental para a existência e para a filosofia. A fé não se reivindica mais, experimenta-se mergulhando-nos numa busca sem fim. Segundo Charles Le Blanc, a “fé autêntica” nos coloca confrontados a um aprendizado da vida que corresponde de algum modo a situações limites de interrogação sobre a própria existência e seus dramas cotidianos (tema explorado em vários filmes de Bergman). Kierkegaard situa a fé a partir de uma espécie de postulado existencial em três estágios: na esfera estética, o homem (a imagem de Don Juan) refugia-se no imediatismo do desejo, no instante, assim como na recusa de toda escolha. Na esfera ética, compreendemos ao cabo de um desespero sem fim, compreendemos ao cabo de um desespero sem fim, que precisamos ir ver além do imediatismo para nos tornarmos o que nos tornamos, ou seja, admitir a existência de uma alternativa no lugar da indiferença ao bem e ao mal, logo, aceder ao reconhecimento do bem e do mal (esse desespero vivido pelo individuo no estágio ético em Kierkegaard, pode ser encontrado no cinema de Dreyer e Bergman na construção de vários dos seus personagens). No cinema de Bergman este estágio ético corresponde aquilo que Susan Sontag num artigo magistral sobre Persona, afirmou: “O que é mostrado no final de Persona assemelha-se a um empate angustiante.” (SONTAG, 1987:124). O que parece irônico na lógica de Kierkegaard é que entramos na esfera religiosa pelo humor e assim libertados do cinismo autodestruidor. Aceitamos, em nome da fé, o peso de uma falta de Homem perante um Deus para com o qual temos uma divida. Sempre em busca da felicidade, e esta nos faltando sempre, temos que admitir esse fato e esperar para além de toda decepção. Marcado e preocupado em responder a questão “que devo fazer?”, Kierkegaard aprofunda, amplia essa interrogação ao extremo, e assimila a paixão à existência: o ser humano mantém-se entre a dúvida e a fé, num estágio de existência fechado que se basta a si mesmo, e no qual só sai por um “salto” (e não por graus de evolução, como pensa a filosofia hegeliana). Como afirma Charles Le Blanc: “Todo homem se encontra necessariamente em uma ou outra esfera da existência e o problema que cada um tem que resolver é determinar em estágio se encontra”.
É nesta relação entre dúvida e fé que o ponto de encontro entre Kierkegaard e Bergman se torna mais intenso e nítido. Para exemplificar tal afirmação, basta-nos reportar ao belíssimo filme “O sétimo selo” ou, ainda a “Luz de inverno”. Tanto para o cineasta, como para o pensador dinamarquês a relação torturante e angustiante entre dúvida e fé é o essencial da existência, por ser tão irredutível e inevitável. É em face de Deus que o homem experimenta o paradoxo inerente a existência... Aqui estamos no ponto mais alto da relação de influencia de Kierkegaard sobre Bergman. O paradoxo existencial que trabalha Kierkegaard intensifica-se logo que o homem se relaciona com um Deus que o transcende: sem Deus, o homem perde toda significação, e sua busca é desprovida de sentido. Ocorre que se o paradoxo é o lugar onde uma verdade se revela a nós, nossa subjetividade reside não na sua falsidade, mas na sua insuficiência em relação a esse Todo-Outro (Deus) que nós não somos. A existência é e permanecerá sempre falta, uma ascensão inacabada e inacabável. Não cessamos de aspirar uma plenitude enquanto vagamos num meio de uma incerteza infinita; é com esta própria incerteza que nos devemos contentar como verdade. É nesse sentido que Kierkegaard afirmava em “Temor e Tremor” que “Deus está justamente presente logo que a incerteza de tudo é pensada como infinita”. E jamais experimentamos tanto erro da subjetividade quanto logo que nos encontramos remetidos a nós mesmos, numa solidão radical. “O homem Kierkegaardiano, esceve Charles Le Blanc, é antes de tudo aquele que busca um ponto onde jogar a âncora, pois, se se limitar a si mesmo, mostra-se injustificável, sem mensagem, e o mundo em que mora lhe dá náusea” (LE BLANC, 2003:51). Neste ponto é possível perceber, como as imagens existenciais criadas pelo filósofo dinamarquês são muito utilizadas no cinema de Bergman. A filosofia existencial de Kierkegaard é a base para o cinema também existencial de Carl Dreyer e Ingmar Bergman. Como afirma Luiz Gustavo Onisto de Freitas em um artigo dedicado as relações entre Kierkegaard e Bergman: “Da mesma maneira que Bergman prioriza a individualidade de seus personagens no cinema, Kierkegaard concede um papel fundamental ao indivíduo em sua obra” (FREITAS, 2007:323).
2. NOTAS SOBRE O CINEMA DE DREYER E BERGMAN COM INTERESSE EM KIERKEGAARD
Comentar a obra de Ingmar Bergman e Carl Dreyer num espaço de escrita introdutória como esse, torna-se uma tarefa muito difícil. Cineasta de uma vastíssima obra teatral e cinematográfica que vai de 1944 a 2003, Bergman é um dos mais comentados e citados diretores do século XX. Já o diretor dinamarquês, Carl Dreyer é considerado o mais importante cineasta do mundo escandinavo e um mestre de toda uma geração, a começar por Bergman e Laars Von Trier. O nosso intuito é fazer um pequeno recorte na obra de ambos e tentar demonstrar a presença da filosofia de Kierkegaard nessas mesmas obras. Comecemos pela obra de Dreyer.
Considerado um dos maiores realizadores do cinema dinamarquês, Carl Dreyer teve uma carreira internacional. Desde O Presidente, filme de 1920 nota-se um cuidado com a imagem e com um rigor de pensamento, que marcará sua obra posterior e demonstrará sua fonte filosófica na obra de Kierkegaard. O que no filme A Palavra um personagem chamará de “efeito Kierkegaard”. É como se Dreyer se encontrasse inteiro nesse trabalho. Seu segundo filme permite que se acrescente a esse retrato duas pinceladas: o gosto pelo fantástico e uma preocupação por temas religiosos, marcante em sua carreira até o fim da vida. Página do livro de satã inspira-se em Intolerância do americano Griffith. Suas outras obras serão filmadas na Suécia e na Alemanha. Dreyer produziu pelo menos, três grandes obras primas do cinema mundial: O martírio de Joana D´arc (1928); Dias de ira (1943) e A palavra (1955). Para o nosso breve comentário, interessanos as obras de 1928 e 1955, respectivamente. Extraído, em principio de um roteiro, o filme sobre Joana D`arc foi inspirado nas minutas do processo em um arquivo em Paris onde temos os detalhes das acusações e das palavras de defesa utilizada pela virgem de San Remy, mas a ação destacada pelo cinema de Dreyer condensa num único dia segundo um imperativo trágico que de forma alguma falseia . A Joana D`arc do cineasta dinamarquês permanece memorável nos anais do cinema pela audácia fotográfica. Com exceção de algumas imagens, o filme é inteiramente composto de closes, principalmente rostos. Essa técnica atendia a dois propósitos aparentemente contraditórios, mas, na verdade, intimamente complementares: mística e realismo. Marca importante da filosofia de Kierkegaard no cinema de Dreyer. A história de Joana, tal como nos é contada/mostrada por Dreyer, apresenta-se despojada de qualquer incidência anedótica; é o puro combate das almas, mas essa tragédia exclusivamente espiritual, onde todo o movimento é interior, expressa-se cabalmente por intermédio dessa parte privilegiada do corpo e do rosto. Importa precisá-lo mais uma vez. O ator emprega seu rosto para expressar sentimentos, porém Dreyer exigiu de seus interpretes outra coisa a mais que a interpretação. Vista de tão perto em grande close, a máscara da interpretação cai. Como escreve Robert Bresson, discípulo francês de Dreyer: “A câmara penetra todas as camadas da fisionomia. Além do rosto que se faz, ela descobre o rosto que se tem, visto de tão perto, o rosto humano torna-se documento”. O paradoxo fecundo, o ensinamento inesgotável desse filme é que, nele, a extrema purificação espiritual se entrega ao realismo mais escrupuloso sob o microscópio da câmara e revela a presença determinante da concepção de existência elaborada por Kierkegaard. Dreyer proibiu qualquer maquiagem, os crânios dos monges são efetivamente raspados e foi diante de toda equipe em lágrimas que o carrasco cortou realmente os cabelos de Falconetti (a Joana D´arc de Dreyer) antes de conduzi-la à fogueira. Não se tratava, em absoluto, de uma tirania. Devemos-lhe esse sentimento irrecusável de tradução direta da alma. A verruga, as sardas e as rugas dos acusadores de Joana são consubstanciais às suas almas e significam mais que suas interpretações. A grandeza desse filme kierkegaardiano pode ser resumido numa frase de Charles Le Blanc ao comentar o sentido da fé na obra do pensador dinamarquês: “Ter fé é assumir os riscos que derivam das possibilidades da existência”. Frase que bem define a fisionomia e a decisão firme da Joana D`arc de Carl Dreyer.
A Palavra (1955) é um filme arrebatador em todos os sentidos. As marcas da filosofia de Kierkegaard estão por todos os lados. No tema religioso e angustiante; na crítica de uma certa prática de cristianismo; na fotografia de uma brancura existencial e num acontecimento raro no cinema de Carl Dreyer: é o seu único filme em que há uma citação do nome de Kierkegaard ligado a um acontecimento que marcou a vida de um dos filhos de um velho patriarca camponês da Dinamarca (ambiente da película). Só por essas referências rápidas daria para perceber a influencia determinante da filosofia da existência de Kierkegaard no cinema de Carl Dreyer. Mas percebemos que a influencia vai além de algumas citações ou semelhanças temáticas. Esta na própria estrutura formal do estilo de Dreyer. Ele incorpora Kierkegarrd e faz da sua obra argumento de roteiro no intuito de melhor trabalhar um determinado tema.
A Palavra é uma adaptação de uma peça de Kaj Munk, um pastor-dramaturgo bem conhecido nos paises escandinavos que morreu em 1944, assassinado pelos nazistas. A Palavra foi criada em 1932 e seguramente, o argumento dramático esta ligado aos costumes religiosos escandinavos, bem temperado com referencias filosóficas e teológicas retiradas da obra de Kierkegaard. Tentemos resumir essa ação dramática em que a “banalidade cotidiana” se acha estranhamente desnaturada pela presença ambígua do sobrenatural. Ela parece passar-se numa fazenda do interior da Dinamarca. O velho fazendeiro tem três filhos, dentre os quais o mais velho, se casou com uma bela jovem que lhe deu duas filhas e que esperava um bebê. O mais jovem, que desposar a filha de um pequeno alfaiate da aldeia que dirige um grupo religioso protestante fervoroso, cuja influencia se opõe à do fazendeiro patriarca, homem piedoso, mas defende um cristianismo mais alegre e menos rigoroso. Sua rivalidade religiosa é complicada por uma certa animosidade social. Quanto ao seu segundo filho, Johannes, é o grande tormento da família. Regressando atormentado de uma experiência em um seminário luterano em que descobriu a obra de Kierkegaard onde passou a criticar violentamente a religiosidade protestante, mas sem se desligar do cristianismo, querendo apenas uma vida cristã sem as hipocrisias dos rituais sem piedade e seriedade, Johannes passa afirmar que uma das coisas mais tristes é “um cristianismo indiferente” (bem ao estilo Kierkegaard nas lentes de Dreyer). O grande tormento da família torna-se mais grave quando Johannes passa a comportar-se como se fosse a “encarnação de cristo” e começa a profetizar nos campos da redondeza. A partir daí uma desgraça abate-se sobre essa gente. A mulher do irmão mais velho, dá a luz penosamente um natimorto e em seguida também morre. O atormentado Johannes, que “profetizara” várias desgraças, foge no meio da noite. Quando, enfim, chega a hora de fechar o caixão, Johannes aparece, aparentemente curado, para repreender os homens de pouca fé por não terem pedido a Deus para devolver a vida à morta. Sua sobrinha mais nova vem pedir-lhe para fazer um milagre e, em nome da fé dessa criança, Johannes pronuncia as palavras bíblicas da ressurreição. Deixemos aos interessados o final da película e a incerteza extraordinária, prolongada por Dreyer. Limitemo-nos a dizer que ele não se presta a atenuar a estranheza da história. Certamente, se refletirmos bem, o desfecho de Joana D´arc não tampouco banal, mas tem a seu favor a força da “lenda” e o recuo da história. Quanto a Dia de ira, Dreyer não teria muita dificuldade para nos fazer admitir a realidade do além numa época em que tanto se acreditava nela. Todos esses recursos são recusados pela atualidade da peça de Kaj Munk; e, de resto, é do realismo mais direto, às vezes mais brutal, que ele pretende falar. De um certo ponto de vista, A Palavra pertence a uma estética quase naturalista. Mas essa matéria dramática realista é como que iluminada de dentro por sua realidade última. Essa imagem impõe-se por si mesma pelo uso que Dreyer faz da luz. A encenação de A Palavra é a principio uma espécie de “metafísica do branco”. Um branco que esta na base , e que é sua referencia absoluta. É o branco que constitui a cor da morte e a cor da vida. A Palavra é, de certo modo, o último filme em preto e branco, aquele que fecha todas as portas para o limite do uso do branco. Um elemento nos filmes de Dreyer e, em especial em A Palavra, nos informa de uma presença decisiva da obra de Kierkegaard no seu cinema: num universo cinematográfico atento ao mistério, o sobrenatural não surge do exterior. É pura imanência. Ele revela-se, no limite extremo, como ambigüidade da natureza, e antes de tudo, no caso di filme, como ambigüidade da morte. Nunca no cinema, nos afirma André Bazin, “a morte foi abordada de tão perto, ou seja, ao mesmo tempo em sua realidade e em seu sentido”. A Palavra é uma espécie de tragédia teológica, sem a menor concessão ao terror... Nada mais Kierkegardiano.
Passando a Bergman, podemos afirmar que o que o que de chofre nos chama a atenção é a maneira como o cineasta sueco trabalha temas delicados e de forte carga existencial, tais como: o escândalo erótico; as polaridades de violência e impotência; a razão e o absurdo; a linguagem e o silêncio; o inteligível e o ininteligível, tudo isso soa ainda hoje por demais estranho e carregado de problemas para uma compreensão linear do que foi entendido como uma narrativa clássica no cinema moderno.
Ingmar Bergman é considerado hoje o ponto mais alto do cinema sueco e o mais conhecido cineasta do mundo escandinavo juntamente com Carl Theodor Dreyer e Laars Von Ttrier (cineasta contemporâneo marcado profundamente pela filosofia de Kierkegaard). A produção cinematográfica de Bergman vai de 1946 a 2003, intercalada com uma série de trabalhos no teatro e na televisão. Nosso comentário à obra de Bergman esta baseado em dois textos muito importantes. Um trata do cinema sueco e sua base psicológica, intitulado: “O realismo psicológico: herança literária do cinema sueco” de Rude Waldekranz (crítico do instituto sueco de cinema), texto este que nos informa da influencia da filosofia de Kierkegaard no cinema sueco e de um modo geral no cinema escandinavo como um todo. Afirma o crítico: “Bergman fez da alma o centro da ação, dando assim ao filme uma nova dimensão, que até então lhe faltava: a profundidade psicológica” (WALDEKRANZ, 1969:55) e ainda numa outra frase esclarecedora: “Disseca a verdade até ai oculta, revelando o verdadeiro rosto do ser humano, que, impiedosamente, põe a descoberto” (WALDEKRANZ, 1969:56). Dessa forma, podemos afirmar que Bergman provou de maneira brilhante que a arte cinematográfica poderia se constituir num meio de expressão extremamente pessoal de trabalhar as imagens e a narrativa. Um outro texto é do próprio Bergman, intitulado Imagens (1990), espécie de diário de trabalho do cineasta sueco onde através de uma leitura crítica de seus próprios trabalhos e de suas influencias intelectuais, nos informa que a presença de Kierkegaard no cinema escandinavo (Suécia e Dinamarca) tem inicio com a obra de Carl Dreyer (que fazia filmes centrado na expressão facial e dramática dos atores e atrizes), passando por ele próprio e chegando ao (então jovem cineasta) Laars Von Trier. Nesse cinema visto pelas palavras de Bergman é possível perceber um elemento importante da filosofia de Kierkegaard, a saber, que o individuo na sua singular existencia deve fazer uma opção decisiva, pró ou contra a uma “forma existencial”. Este cinema nos mostra que não há neutralidade no ato de existir. Na dramática expressão facial da Joana D´arc de Dreyer diante dos seus algozes; nas dúvidas e angústias dos personagens da trilogia do silêncio de Bergman ou na pureza irônica dos personagens principais de Os idiotas ou de Dançando no escuro de Laars Von Trier, existir já é posicionar-se.
A titulo de conclusão, destaquemos na chamada “Trilogia do silêncio” de Bergman, dois filmes que podem nos servir como uma espécie de lugar privilegiado de onde podemos observar com mais nitidez a influencia do pensador dinamarquês. A trilogia foi elaborada por Bergman entre 1960 a 1962 e é composta pelo filmes: “Através de um espelho”; “Luz de inverno” e “O Silêncio”. Um tema fundamental que une a trilogia é a situação de personagens problemáticos, vivendo situações de dilaceramento. É a loucura da protagonista de “Através de um espelho”; a falta de fé e a rotina angustiante de um pastor em “Luz de inverno” ou a incapacidade de comunicação de duas irmãs em “O silêncio”.
Comecemos pela película “Através de um espelho”. Segundo Susan Sontag, a dificuldade desse filme deriva do fato de Bergman não oferecer nenhum tipo de sinalização nítida para separar fantasia de realidade, como por exemplo, o faz L. Bunuel em “A bela da tarde. O cineasta espanhol coloca as pistas, quer que o espectador seja capaz de decifrar o filme. A insuficiência das pistas oferecidas pelo diretor sueco pode ser tomada como indicio de que ele pretende que o filme permaneça parcialmente codificado. O espectador pode apenas aproximar-se, mas nunca atingir a certeza sobre a ação. Entretanto, esta distinção entre fantasia e realidade tem pouca utilidade para a compreensão de “Através de um espelho” e para o tipo de cinema de Bergman. Dos quatro personagens da película de 1960, é Karin o centro da narrativa. Bergman a apresenta como uma pessoa atormentada pela loucura que lhe tira a completa lucidez. É com essa personagem que a distinção entre fantasia e realidade perde sua importância. Por exemplo, Karin confessa ver e acreditar num “Deus-aranha”, que com suas teias vai lhe puxando pouco a pouco para si, sem se importar se as outras pessoas (pai, irmão e marido) acreditam ou não no “deus-araquinídeo”. Aqui a divida de Bergman para com Kierkegaard se mostra pelo uso da “comunicação indireta”. Na personagem Karin esta uma metáfora da idéia de que um ser humano viu o que significa existir. Na sua personagem, Bergman se realiza como num pseudônimo ao afirmar o caráter indeterminado das suas interrogações importantes a respeito do individuo, pois, tanto revela quanto esconde os diversos momentos dessa existência louca e lúcida da personagem Karin. Em “Através de um espelho”, Bergman nos põe a pensar à semelhança dos personagens-pseudônimos de Kierkegaard.
Já em “O silêncio”, o diretor sueco chega ao ponto mais alto da trilogia, ao trazer uma carga de agonia pessoal quase profana na luta na luta vivenciada pelas duas personagens irmãs, Ester e Ana. Quase profana, porque Bergman nunca se separa completamente do Sagrado (a semelhança de Dreyer). A viagem das duas irmãs a uma cidade desconhecida de nome inventado chamada “Timoka”, é na verdade à imagem e o conflito existencial entre duas pessoas unidas para sempre pelo sangue, mas desunidas completamente na relação de cada uma com o mundo que as circunda. Ester é a escritora e tradutora de grande força intelectual, mas desamparada emocionalmente. A razão não lhe salva e a coloca cada vez mais longe do que ama (no filme, Bergman deixa entrever uma relação erótica entre as irmãs, que vai do desejo ao desespero). Ana é a revoltada e fútil, que radicaliza sua relação com o mundo, numa espécie de “imediatismo da natureza” (nas palavras de Sontag), muito próximo ao “estádio estético” definido por Kierkegaard. Num desfecho extraordinário, Bergman nos deixa a sua mensagem kierkegardiana: depois de romper com o mundo sufocante, o ser humano de fé (a presença constante da música de Bach não é gratuita e sim uma metáfora dessa fé) volta para o mundo, recebe-o de novo, mas com a diferença de estar plenamente consciente de que há uma outra realidade que pede sua opção existencial. Sabe, agora, a personagem Ana que, para alcançar uma existência sem truques, é necessário conciliar o incondicionado e o relativo. Eis a divida fundamental que Bergman paga ao pensador dinamarquês.
BIBLIOGRAFIA
ABBAGNANO, Nicola. Introdução ao existencialismo. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
BERGMAN, Ingmar. Imagens. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
BRESSON, Robert. Notas sobre o cinematógrafo. São Paulo: Iluminuras, 2005.
BAZIN, André. O cinema da crueldade. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
BEAUFRET, Jean. Introduction aux philosophies de l´existence. Paris: Éditions Denoël, 1971.
BJÖRKMAN, Stig (org.). O cinema Segundo Bergman. São Paulo: Paz e Terra, 1977.
FREITAS, Luiz Gustavo Onisto de. Kierkegaard e Bergman: autores éticos. In: Soren Kierkegaard no Brasil (orgs. Deyve Redson, Jorge Miranda e Marcio Gimenes). João Pessoa: Editora Idéia, 2007.
LE BLANC, Charles. Kierkegaard. São Paulo: Estação Liberdade, 2003.
MICHELET, Julles. Joana D´Arc. São Paulo: Editora Hedra, 2007.
SONTAG, Susan. A vontade radical. Estilos. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
KIERKEGAARD, Soren. Temor e tremor. São Paulo: Abril Cultural, 1979. COL. OS PENSADORES.
WALDEKRANZ, Rune. O realismo psicológico: herança literária do cinema sueco. In: Cinema sueco. Cadernos de cinema. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1969.
Dom Fragoso: "Crimes de tortura não podem nunca prescrever", por Ayrton Maciel
Entrevista publicada no Jornal Do Commercio em 27-10-2003
Dom Antônio Fragoso deu muito trabalho aos militares. Esse paraibano de Teixeira, compulsoriamente aposentado em João Pessoa, aos 83 anos, foi um dos expoentes da ala radical-progressista da Igreja Católica. Um ardoroso pregador da Teologia da Libertação, que infernizou a vida dos militares latino-americanos nos anos de chumbo das décadas 60, 70 e 80. A visão sobre o Golpe de 64 mudou na ótica, mas não na oposição intransigente: o que era uma quebra de fidelidade à Constituição e ao presidente João Goulart, na visão de hoje foi um Golpe Militar, inspirado pela bipolaridade no mundo: o capitalismo americano e o comunismo soviético.
“As elites conservadoras tinham medo do acesso de lideranças populares ao Poder, e não do risco do comunismo no Brasil, mas se utilizaram desse instrumento para liquidar o projeto de governo popular”, interpreta o religioso, que por 34 anos comandou a diocese de Crateús, no sertão do Ceará. Dom Fragoso diz que duas décadas de ditadura deixatram uma herança de alienação política para as gerações de jovens até hoje. “Os jovens daquele tempo pagaram um alto preço, tão grande que silenciou a paixão política nos jovens de hoje”, disse o bispo a universitários da Universidade Rural de Pernambuco, em palestra sobre 1964, semana passada.
Quase 40 anos depois de Golpe de 64, dom Fragoso mantém-se indignado e irredutível em suas posições, que levaram os militares a lhe ficharem como socialista agitador. Organizador de pobres e desassistidos camponeses em sindicatos e cooperativas, dom Fragoso enfrentou a ira, a provocação e a campanha de oposição dos latifundiários do Crateús.
Defensor da idéia de que o Governo Lula esclareça os crimes, aponte e puna os autores de torturas e mortes, durante o regime militar, dom Fragoso argumenta que “crimes contra a dignidade humana não podem prescrever”.
JORNAL DO COMMERCIO - 31 de março de 1964. Passados quase 40 anos, como pode ser analisado o Golpe de 64? Mudou a sua visão em relação à que tinha naquela época e ao longo do regime militar?
DOM ANTÔNIO FRAGOSO - Em 1964, apesar da confusão para a análise dos acontecimentos, eu via a chamada “Revolução” como um desrespeito dos militares ao juramento de fidelidade à Constituição e ao presidente da República, como um sinal de medo das Forças Armadas (e das lideranças conservadoras) diante dos “movimentos populares”, da possibilidade de acesso ao poder de lideranças dos meios populares, de ameaça ao Capitalismo. O combate ao Comunismo não era o móvel principal da “Revolução”, mas um instrumento fácil de manejar para cativar as lideranças conservadoras e as massas populares ainda não articuladas. Hoje, 40 anos depois, estou vendo a “Revolução de 1964” como um “Golpe Militar”, inspirado na bipolaridade: a civilização capitalista e cristã, sob a hegemonia dos Estados Unidos, versus a civilização materialista e atéia, sob a hegemonia da então União Soviética.
JC – O que o leva a esta conclusão?
DOM FRAGOSO – Na Escola Superior de Guerra foram preparados, em nível de pós-graduação, os quadros que conduziram o “Golpe Militar”. Eram quadros civis e militares. A chamada “Doutrina de Segurança Nacional”, talvez subproduto do “War College”, dizia que a nação não era o povo, mas a elite no Poder. Evidentemente, a elite militar, pois as Forças Armadas não tinham confiança nos políticos civis. Recuando 40 anos, confirma-se em mim a certeza de que as elites conservadoras tinham medo, não do Comunismo, mas dos meios populares.
JC – Quais as repercussões de 64 sobre os dias de hoje? Ficaram herança, influência ou reflexos
daqueles 20 anos?
DOM FRAGOSO – As repercussões de 64 sobre os dias de hoje me aparecem como um preço muito alto que a nação está pagando. O “anticomunismo” negativo, que não tinha nenhum projeto de um Brasil de todos, foi utilizado como arma de justificação da repressão. Mas, pareciam tão evidentes as distorções, que o povo perdeu a confiança em políticas públicas conduzidas pelos militares. O Golpe foi sepultado! Quase ninguém mais festeja 64. Porém, a experiência coletiva suscitou novas expectativas, que se articulam e buscam expressão política em movimentos sociais.
JC – Em recente palestra para estudantes da UFRPE, o senhor destacou que os jovens daquele tempo “pagaram um alto preço (pela liberdade e por seu idealismo)”. Um preço tão grande que “silenciou a paixão política nos jovens de hoje”? Por essa interpretação, podemos dizer que a alienação política de hoje é, em parte, conseqüência de 64?
DOM FRAGOSO – No contexto de 64, as lideranças estudantis eram criativas e acreditavam em utopias mobilizadoras. Ao nível da universidade, sobretudo pela mediação da UNE, as lideranças dos jovens eram projetistas. Os “fóruns de estudantes” eram mais cheios de sonhos e de ideais do que os ”fóruns de reitores“ e que os quadros de direção e de magistério. A UNE é fechada, e a presença das forças de investigação e segurança denunciavam, reprimiam. Nas duas décadas, cerca de dez mil presos políticos ocuparam nossas prisões. Destes, mais de 60% eram jovens. A vigilância nas universidades, a repressão das manifestações estudantis e as torturas quase estancaram a participação aberta nas lutas políticas. A clandestinidade pagou um preço alto. As grandes paixões políticas, as grandes causas de transformação da sociedade, as grandes utopias sociais não são mais a tônica da juventude. As duas décadas de ditadura produziram uma “alienação” que marcou gerações nesses 40 anos.
JC – Em 1964, onde o senhor estava?
DOM FRAGOSO – De julho de 1957 a julho de 1963, fui o bispo auxiliar do arcebispo dom José de Medeiros Delgado, na Arquidiocese de São Luís do Maranhão. Em julho de 1963, fui eleito vigário capitular da Arquidiocese de São Luís, com a missão de administrá-la até à chegada do novo Arcebispo. Em 31 de Março de 1963, eu estava no Arcebispado. As notícias eram confusas. Sabendo que iam ser detidas pessoas que trabalhavam comigo no Movimento de Educação de Base (MEB), na organização dos sindicatos rurais, coloquei-as no Arcebispado e, depois, tiveram que fugir. Pouco tempo depois, uma delas, Regina, que era formada em filosofia, carioca, foi surpreendida pelo DOPS no Rio e sumariamente assassinada sob tortura. Sendo informado de que o presidente do Sindicato Rural de Pindaré-Mirim estava sendo procurado para ser preso, coloquei-o no Arcebispado. Sentindo a sua insegurança, ele foi para o interior, passando “piedosamente” pelo posto da Polícia entre duas irmãs Vicentinas do Chapéu Grande, que usavam o hábito de religiosas.
JC – Como foram os dias seguintes, imediatos após o Golpe?
DOM FRAGOSO – Nos dias seguintes, eu soube que seriam detidas pessoas que trabalhavam no MEB. Fui ao quartel do Exército para dizer que eram de nossa inteira confiança. Então, fui interrogado por um capitão, que era aluno da Faculdade de Filosofia, que integrava a Universidade Católica do Maranhão, da qual eu era o reitor. O capitão era filho de um general reformado, que dom Delgado, meu arcebispo – que já havia sido transferido para a Arquidiocese de Fortaleza –, nomeara diretor do Banco Popular da Arquidiocese de São Luís. O Banco Popular foi organizado por dom Delgado para financiar as cooperativas dos agricultores pobres, que não tinham condições de ser acolhidos pelas instituições oficiais de crédito. A minha “ficha”, organizada por indicação do general, pai do capitão, me catalogava como “socialista agitador”. Em julho de 1964, fui nomeado como bispo diocesano de Crateús. Aí, fiquei na qualidade de seu primeiro bispo diocesano de agosto de 1964 a maio de 1988.
JC – Os déficits sociais de hoje são os mesmos de 1964: reforma agrária, má distribuição de renda, má assistência à saúde, baixos níveis de educação, desrespeitos aos direitos humanos e impunidade nas classes abastadas. Quarenta anos depois, o Brasil mudou em que?
DOM FRAGOSO – O Brasil mudou muito. A distribuição injusta das riquezas nacionais é mais visível e ampla. Mas, vejo uma crescente insatisfação das maiorias populares que se revela em momentos nacionais de crise, uma ascensão dos movimentos populares, uma sensibilidade crescente aos clamores das crianças, dos jovens pobres, das mulheres, idosos, dos “sem terra” e dos “sem teto”. Nunca vi tanta insatisfação gritada em voz alta como nesses últimos anos. Dizia-se, “grite!. Não morra calado como o sapo debaixo da pata do boi”.
JC – Centenas de pessoas sofreram torturas, algumas dezenas desapareceram ou morreram sob tortura e outras foram perseguidas por longo tempo. O Brasil, hoje, paga indenizações a sobreviventes e a parentes de desaparecidos e mortos. O senhor acha que o Governo deveria esclarecer os crimes e identificar os autores ou acredita que é revirar o passado e deve-se impedir revides?
DOM FRAGOSO – Sei que se trata de uma área de sensibilidade e turbulência. Lembro-me de que o Prêmio Nobel da Paz, o argentino Adolfo Perez Esquivel, veio ao Brasil e disse que, para todas as nações do mundo, também para o Brasil, é necessário identificar com seriedade os crimes de tortura e repressão e puní-los com firmeza e segundo as exigências da Justiça. Foi detido, interrogado e teve de voltar ao seu país, uma vez que a anistia era ampla, inclusive aos repressores. Mas, eu penso que Perez Esquivel tinha razão. Julgo necessário que o Governo esclareça os crimes, aponte e puna os autores. Crimes contra a dignidade humana não podem prescrever.
JC – O Brasil vive, hoje, um governo de esquerda, num quadro de carência social imensa. Há semelhanças entre as épocas e os Governos Jango e Lula?
DOM FRAGOSO – Penso que não há semelhança entre o projeto político de Jango e o de Lula. E Jango tinha projeto político? Ele me deixava a impressão de ser um “aventureiro” sem utopias mobilizadoras. Lula é um nordestino que experimentou na carne a dor do povo sofrido, lutou nas áreas mais duras do combate sindical, guardou uma fidelidade às aspirações populares e buscou com humilde tenacidade e ousadia a chegada ao Governo. Ele tem uma proposta popular inédita na história política do Brasil. O projeto de Lula não foi improvisado por “intelectuais”, em gabinetes, mas emergiu de longas escutas e debates em todos os segmentos do povo brasileiro, sobretudo os trabalhadores.
JC – O senhor define o papel das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) como “o esforço mais importante da Igreja popular, no Brasil, para tentar fazer com que desse certo o método Paulo Freire de alfabetização”. Qual a função das CEB’s no enfrentamento à ditadura de 64?
DOM FRAGOSO – As Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), nascidas na América Latina após o Concílio Vaticano II e a Conferência do Episcopado da América Latina, em Medellin , Colômbia (1968), tentam pôr em prática, com a limitação que todas as práticas humanas têm, o Modelo de Igreja Popular ou Igreja dos Pobres. O método Paulo Freire, a sua filosofia e o seu método específico de pedagogia, teve forte influência na caminhada das CEBs, principalmente no Brasil. As CEBs não tinham como missão “enfrentar” a ditadura militar. A proposta eclesial das CEBs era, em si mesma, incompatível com a doutrina de Segurança Nacional que inspirou a chamada ditadura. Na prática das CEBs, o conflito era inevitável.
JC – Qual a avaliação que o senhor faz desses dez meses do Governo Lula? Está decepcionado ou acredita que ele conseguirá mudar o País?
DOM FRAGOSO – Distingo o projeto popular, que Lula ajudou a construir, e as práticas políticas que tentam realizá-lo. O projeto popular representou para mim a mais profunda esperança. Propor a cidadania para todos, privilegiar e priorizar as multidões “escanteadas”, matar a fome, suscitar um mutirão de parcerias, incluir todos, de todos os horizontes, que sintonizam com um Brasil mais humano e mais justo, não é tudo isto uma tentativa de expressar politicamente O Reino de Deus, que é de Justiça e de Paz? Eu nunca havia visto as multidões desencantadas e sem esperança saírem às ruas, um coração só, um grito só, renascerem na esperança de um Brasil diferente, com cara de povo. É cedo para qualquer avaliação de conjunto.
Dom Antônio Fragoso deu muito trabalho aos militares. Esse paraibano de Teixeira, compulsoriamente aposentado em João Pessoa, aos 83 anos, foi um dos expoentes da ala radical-progressista da Igreja Católica. Um ardoroso pregador da Teologia da Libertação, que infernizou a vida dos militares latino-americanos nos anos de chumbo das décadas 60, 70 e 80. A visão sobre o Golpe de 64 mudou na ótica, mas não na oposição intransigente: o que era uma quebra de fidelidade à Constituição e ao presidente João Goulart, na visão de hoje foi um Golpe Militar, inspirado pela bipolaridade no mundo: o capitalismo americano e o comunismo soviético.
“As elites conservadoras tinham medo do acesso de lideranças populares ao Poder, e não do risco do comunismo no Brasil, mas se utilizaram desse instrumento para liquidar o projeto de governo popular”, interpreta o religioso, que por 34 anos comandou a diocese de Crateús, no sertão do Ceará. Dom Fragoso diz que duas décadas de ditadura deixatram uma herança de alienação política para as gerações de jovens até hoje. “Os jovens daquele tempo pagaram um alto preço, tão grande que silenciou a paixão política nos jovens de hoje”, disse o bispo a universitários da Universidade Rural de Pernambuco, em palestra sobre 1964, semana passada.
Quase 40 anos depois de Golpe de 64, dom Fragoso mantém-se indignado e irredutível em suas posições, que levaram os militares a lhe ficharem como socialista agitador. Organizador de pobres e desassistidos camponeses em sindicatos e cooperativas, dom Fragoso enfrentou a ira, a provocação e a campanha de oposição dos latifundiários do Crateús.
Defensor da idéia de que o Governo Lula esclareça os crimes, aponte e puna os autores de torturas e mortes, durante o regime militar, dom Fragoso argumenta que “crimes contra a dignidade humana não podem prescrever”.
JORNAL DO COMMERCIO - 31 de março de 1964. Passados quase 40 anos, como pode ser analisado o Golpe de 64? Mudou a sua visão em relação à que tinha naquela época e ao longo do regime militar?
DOM ANTÔNIO FRAGOSO - Em 1964, apesar da confusão para a análise dos acontecimentos, eu via a chamada “Revolução” como um desrespeito dos militares ao juramento de fidelidade à Constituição e ao presidente da República, como um sinal de medo das Forças Armadas (e das lideranças conservadoras) diante dos “movimentos populares”, da possibilidade de acesso ao poder de lideranças dos meios populares, de ameaça ao Capitalismo. O combate ao Comunismo não era o móvel principal da “Revolução”, mas um instrumento fácil de manejar para cativar as lideranças conservadoras e as massas populares ainda não articuladas. Hoje, 40 anos depois, estou vendo a “Revolução de 1964” como um “Golpe Militar”, inspirado na bipolaridade: a civilização capitalista e cristã, sob a hegemonia dos Estados Unidos, versus a civilização materialista e atéia, sob a hegemonia da então União Soviética.
JC – O que o leva a esta conclusão?
DOM FRAGOSO – Na Escola Superior de Guerra foram preparados, em nível de pós-graduação, os quadros que conduziram o “Golpe Militar”. Eram quadros civis e militares. A chamada “Doutrina de Segurança Nacional”, talvez subproduto do “War College”, dizia que a nação não era o povo, mas a elite no Poder. Evidentemente, a elite militar, pois as Forças Armadas não tinham confiança nos políticos civis. Recuando 40 anos, confirma-se em mim a certeza de que as elites conservadoras tinham medo, não do Comunismo, mas dos meios populares.
JC – Quais as repercussões de 64 sobre os dias de hoje? Ficaram herança, influência ou reflexos
daqueles 20 anos?
DOM FRAGOSO – As repercussões de 64 sobre os dias de hoje me aparecem como um preço muito alto que a nação está pagando. O “anticomunismo” negativo, que não tinha nenhum projeto de um Brasil de todos, foi utilizado como arma de justificação da repressão. Mas, pareciam tão evidentes as distorções, que o povo perdeu a confiança em políticas públicas conduzidas pelos militares. O Golpe foi sepultado! Quase ninguém mais festeja 64. Porém, a experiência coletiva suscitou novas expectativas, que se articulam e buscam expressão política em movimentos sociais.
JC – Em recente palestra para estudantes da UFRPE, o senhor destacou que os jovens daquele tempo “pagaram um alto preço (pela liberdade e por seu idealismo)”. Um preço tão grande que “silenciou a paixão política nos jovens de hoje”? Por essa interpretação, podemos dizer que a alienação política de hoje é, em parte, conseqüência de 64?
DOM FRAGOSO – No contexto de 64, as lideranças estudantis eram criativas e acreditavam em utopias mobilizadoras. Ao nível da universidade, sobretudo pela mediação da UNE, as lideranças dos jovens eram projetistas. Os “fóruns de estudantes” eram mais cheios de sonhos e de ideais do que os ”fóruns de reitores“ e que os quadros de direção e de magistério. A UNE é fechada, e a presença das forças de investigação e segurança denunciavam, reprimiam. Nas duas décadas, cerca de dez mil presos políticos ocuparam nossas prisões. Destes, mais de 60% eram jovens. A vigilância nas universidades, a repressão das manifestações estudantis e as torturas quase estancaram a participação aberta nas lutas políticas. A clandestinidade pagou um preço alto. As grandes paixões políticas, as grandes causas de transformação da sociedade, as grandes utopias sociais não são mais a tônica da juventude. As duas décadas de ditadura produziram uma “alienação” que marcou gerações nesses 40 anos.
JC – Em 1964, onde o senhor estava?
DOM FRAGOSO – De julho de 1957 a julho de 1963, fui o bispo auxiliar do arcebispo dom José de Medeiros Delgado, na Arquidiocese de São Luís do Maranhão. Em julho de 1963, fui eleito vigário capitular da Arquidiocese de São Luís, com a missão de administrá-la até à chegada do novo Arcebispo. Em 31 de Março de 1963, eu estava no Arcebispado. As notícias eram confusas. Sabendo que iam ser detidas pessoas que trabalhavam comigo no Movimento de Educação de Base (MEB), na organização dos sindicatos rurais, coloquei-as no Arcebispado e, depois, tiveram que fugir. Pouco tempo depois, uma delas, Regina, que era formada em filosofia, carioca, foi surpreendida pelo DOPS no Rio e sumariamente assassinada sob tortura. Sendo informado de que o presidente do Sindicato Rural de Pindaré-Mirim estava sendo procurado para ser preso, coloquei-o no Arcebispado. Sentindo a sua insegurança, ele foi para o interior, passando “piedosamente” pelo posto da Polícia entre duas irmãs Vicentinas do Chapéu Grande, que usavam o hábito de religiosas.
JC – Como foram os dias seguintes, imediatos após o Golpe?
DOM FRAGOSO – Nos dias seguintes, eu soube que seriam detidas pessoas que trabalhavam no MEB. Fui ao quartel do Exército para dizer que eram de nossa inteira confiança. Então, fui interrogado por um capitão, que era aluno da Faculdade de Filosofia, que integrava a Universidade Católica do Maranhão, da qual eu era o reitor. O capitão era filho de um general reformado, que dom Delgado, meu arcebispo – que já havia sido transferido para a Arquidiocese de Fortaleza –, nomeara diretor do Banco Popular da Arquidiocese de São Luís. O Banco Popular foi organizado por dom Delgado para financiar as cooperativas dos agricultores pobres, que não tinham condições de ser acolhidos pelas instituições oficiais de crédito. A minha “ficha”, organizada por indicação do general, pai do capitão, me catalogava como “socialista agitador”. Em julho de 1964, fui nomeado como bispo diocesano de Crateús. Aí, fiquei na qualidade de seu primeiro bispo diocesano de agosto de 1964 a maio de 1988.
JC – Os déficits sociais de hoje são os mesmos de 1964: reforma agrária, má distribuição de renda, má assistência à saúde, baixos níveis de educação, desrespeitos aos direitos humanos e impunidade nas classes abastadas. Quarenta anos depois, o Brasil mudou em que?
DOM FRAGOSO – O Brasil mudou muito. A distribuição injusta das riquezas nacionais é mais visível e ampla. Mas, vejo uma crescente insatisfação das maiorias populares que se revela em momentos nacionais de crise, uma ascensão dos movimentos populares, uma sensibilidade crescente aos clamores das crianças, dos jovens pobres, das mulheres, idosos, dos “sem terra” e dos “sem teto”. Nunca vi tanta insatisfação gritada em voz alta como nesses últimos anos. Dizia-se, “grite!. Não morra calado como o sapo debaixo da pata do boi”.
JC – Centenas de pessoas sofreram torturas, algumas dezenas desapareceram ou morreram sob tortura e outras foram perseguidas por longo tempo. O Brasil, hoje, paga indenizações a sobreviventes e a parentes de desaparecidos e mortos. O senhor acha que o Governo deveria esclarecer os crimes e identificar os autores ou acredita que é revirar o passado e deve-se impedir revides?
DOM FRAGOSO – Sei que se trata de uma área de sensibilidade e turbulência. Lembro-me de que o Prêmio Nobel da Paz, o argentino Adolfo Perez Esquivel, veio ao Brasil e disse que, para todas as nações do mundo, também para o Brasil, é necessário identificar com seriedade os crimes de tortura e repressão e puní-los com firmeza e segundo as exigências da Justiça. Foi detido, interrogado e teve de voltar ao seu país, uma vez que a anistia era ampla, inclusive aos repressores. Mas, eu penso que Perez Esquivel tinha razão. Julgo necessário que o Governo esclareça os crimes, aponte e puna os autores. Crimes contra a dignidade humana não podem prescrever.
JC – O Brasil vive, hoje, um governo de esquerda, num quadro de carência social imensa. Há semelhanças entre as épocas e os Governos Jango e Lula?
DOM FRAGOSO – Penso que não há semelhança entre o projeto político de Jango e o de Lula. E Jango tinha projeto político? Ele me deixava a impressão de ser um “aventureiro” sem utopias mobilizadoras. Lula é um nordestino que experimentou na carne a dor do povo sofrido, lutou nas áreas mais duras do combate sindical, guardou uma fidelidade às aspirações populares e buscou com humilde tenacidade e ousadia a chegada ao Governo. Ele tem uma proposta popular inédita na história política do Brasil. O projeto de Lula não foi improvisado por “intelectuais”, em gabinetes, mas emergiu de longas escutas e debates em todos os segmentos do povo brasileiro, sobretudo os trabalhadores.
JC – O senhor define o papel das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) como “o esforço mais importante da Igreja popular, no Brasil, para tentar fazer com que desse certo o método Paulo Freire de alfabetização”. Qual a função das CEB’s no enfrentamento à ditadura de 64?
DOM FRAGOSO – As Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), nascidas na América Latina após o Concílio Vaticano II e a Conferência do Episcopado da América Latina, em Medellin , Colômbia (1968), tentam pôr em prática, com a limitação que todas as práticas humanas têm, o Modelo de Igreja Popular ou Igreja dos Pobres. O método Paulo Freire, a sua filosofia e o seu método específico de pedagogia, teve forte influência na caminhada das CEBs, principalmente no Brasil. As CEBs não tinham como missão “enfrentar” a ditadura militar. A proposta eclesial das CEBs era, em si mesma, incompatível com a doutrina de Segurança Nacional que inspirou a chamada ditadura. Na prática das CEBs, o conflito era inevitável.
JC – Qual a avaliação que o senhor faz desses dez meses do Governo Lula? Está decepcionado ou acredita que ele conseguirá mudar o País?
DOM FRAGOSO – Distingo o projeto popular, que Lula ajudou a construir, e as práticas políticas que tentam realizá-lo. O projeto popular representou para mim a mais profunda esperança. Propor a cidadania para todos, privilegiar e priorizar as multidões “escanteadas”, matar a fome, suscitar um mutirão de parcerias, incluir todos, de todos os horizontes, que sintonizam com um Brasil mais humano e mais justo, não é tudo isto uma tentativa de expressar politicamente O Reino de Deus, que é de Justiça e de Paz? Eu nunca havia visto as multidões desencantadas e sem esperança saírem às ruas, um coração só, um grito só, renascerem na esperança de um Brasil diferente, com cara de povo. É cedo para qualquer avaliação de conjunto.
O cisma da hierarquia católica - por Ivone Gebara
Os últimos acontecimentos envolvendo a interrupção da gravidez da menina de nove anos em Pernambuco evidenciaram um fato que já estava presente desde muito tempo na vida da Igreja Católica Romana. Os bispos perderam o senso de governarem unidos aos desafios da história e à fé da comunidade e julgam-se mais fiéis ao Evangelho de Jesus do que a própria comunidade. Por manterem uma compreensão centralizadora e anacrônica de sua função e da teologia que lhe corresponde desviaram-se de muitos sofrimentos e dores concretas das pessoas, sobretudo das mulheres. Passaram a ser defensores de princípios abstratos, de incertas hipóteses futuríveis e pretenderam até ser advogados de Deus. A este acontecimento de distanciamento chamo de cisma. Os bispos tanto a nível nacional quanto internacional e aqui incluo também o Papa, como bispo de Roma, tornaram-se cismáticos em relação à comunidade de cristãos católicos, isto é, romperam com grande parte dela em várias situações. O incidente em relação a proibição da interrupção da gravidez da menina do qual Dom José Cardoso Sobrinho, arcebispo de Olinda e Recife foi um dos protagonistas é um exemplo irrefutável. Sem dúvida há muitas pessoas e grupos que pensam como eles e que reforçam seu cisma. Faz parte do pluralismo no qual sempre vivemos.
A hierarquia da Igreja, servidora da comunidade dos fiéis não pode em certas questões separar-se do sentido comum e plural da vivência da fé. Não pode igualmente para certos assuntos de foro pessoal e mesmo grupal substituir-se à consciência, às decisões e ao dever das pessoas. Pode emitir sua opinião, mas não impô-la como verdade de fé. Pode expressar-se, mas não forçar pessoas a assumir suas posições. Nesse sentido, não pode instaurar uma guerra santa em nome de Deus para salvaguardar coisas que julga serem vontade e prerrogativa de Deus. A tradição teológica na linha mais profética e sapiencial nunca permitiu que nenhum fiel mesmo bispo falasse em nome de Deus. E isto porque o deus do qual falamos fala em nosso nome e tem a nossa imagem e semelhança. O Sagrado Mistério que atravessa tudo o que existe é inacessível aos nossos julgamentos e interpretações. O Mistério que em tudo habita não precisa de representantes dogmáticos para defender seus direitos. Nossa palavra é nada mais e nada menos do que um balbuciar de aproximações e de idéias mutáveis e frágeis, inclusive sobre o inefável mistério. É nessa perspectiva que também não se pode obrigar que a Igreja hierárquica torne, por exemplo, a legalização do aborto sua bandeira, mas simplesmente que não impeça que uma sociedade pluralista se organize conforme as necessidades de suas cidadãs e cidadãos e que estes tenham o direito de decidir sobre suas escolhas.
As comunidades cristãs assim como as pessoas são plurais. Num mundo tão diverso e complexo como o nosso não podemos admitir que apenas a opinião de um grupo de bispos, homens celibatários e com uma formação limitada ao registro religioso, seja a expressão do seguimento da tradição do Movimento de Jesus. A comunidade cristã é mais do que a igreja hierárquica. E, a comunidade cristã é na realidade múltiplas comunidades cristãs e estas são igualmente muitas pessoas cada uma com sua história, suas escolhas e decisões próprias diante da vida.
Impressiona-me o anacronismo das posturas filosóficas e éticas episcopais começando pelos bispos brasileiros e continuando nas instâncias romanas como se pode ler na entrevista que o cardeal Giovanni Batista Re, presidente da Congregação para os bispos, deu a revista italiana Stampa concordando com a postura dos bispos brasileiros. Os tempos mudaram. Urge pois, que a teologia dos bispos saia de uma concepção hierárquica e dualista do Cristianismo e perceba que é na vulnerabilidade às múltiplas dores humanas que poderemos estar mais próximos das ações de justiça e amor. É claro que sempre poderemos errar inclusive querendo acertar. Esta é a frágil condição humana.
Creio que nossas entranhas sentem em primeiro lugar as dores imediatas, as injustiças contra corpos visíveis e é a eles que temos o primeiro dever de assistir. A consternação e a comoção em relação ao sofrimento da menina de nove anos foram grandes. E isto porque é a esta vida presente e atuante, a esta vida de menina feita mulher violada e violentada em nosso meio que devemos o respeito e o cuidado primeiros. Por isso como membro da comunidade cristã, louvo a atitude do Dr. Rivaldo Mendes de Albuquerque do Instituto Maternal Infantil de Recife assim como a mãe da menina e todas as organizações e pessoas que acudiram a ela neste momento de sofrimento que certamente deixará marcas indeléveis em sua vida.
Dirão alguns leitores que minha postura não é a postura oficial da Igreja Católica Romana. Entretanto, o que significa hoje a palavra oficial? O que é mesmo Igreja oficial? A instituição que se arvora como representante de seu deus e ousa condenar a vida ameaçada de uma menina? A instituição que se considera talvez a melhor seguidora do Evangelho de Jesus?
Não identifico a Igreja à hierarquia católica. A hierarquia é apenas uma parte ínfima da Igreja.
A Igreja é a comunidade de mulheres e homens espalhada pelo mundo, comunidade dos que estão atentos aos caídos nas estradas da vida, aos portadores de dores concretas, aos clamores de povos e pessoas em busca de justiça e alívio de suas dores hoje. A Igreja é a humanidade que se ajuda a suportar dores, a aliviar sofrimentos e a celebrar esperanças.
Continuar com excomunhões, inclusões ou exclusões parece cada vez mais incentivar o crescimento de relações autoritárias desrespeitosas da dignidade humana, sobretudo, quando surgem de instituições que pretendem ensinar o amor ao próximo como a lei maior. De quem Dom José Cardoso e alguns bispos se fizeram próximos nesse caso? Dos fetos inocentes, dirão eles, aqueles que precisam ser protegidos contra o “Holocausto silencioso” cometido por algumas mulheres e seus aliados.
Na realidade, fizeram-se próximos do princípio que defendem e se distanciaram da menina agredida e violentada tantas vezes. Condenaram quem levantou a menina caída na estrada da vida e salvaguardaram a pureza de suas leis e a vontade de seu deus. Acreditam que a interrupção da gravidez da menina seria uma lesão ao senhorio de Deus. Mas as guerras, a crescente violência social, a destruição do meio ambiente não seriam igualmente lesões que mereceriam denúncia e condenação maior? Perdoem-me se, sem querer acabo julgando pessoas, mas diante da inconsistência de certos argumentos e da insensibilidade aos problemas vividos pela menina de nove anos uma espécie de ira solidária me assola as entranhas.
De fato um cisma histórico está se construindo e tem crescido cada vez mais em diferentes países. A distancia entre os fiéis e uma certa hierarquia católica é marcante. O incidente em relação a interrupção da gravidez da menina pernambucana é apenas um entre os tantos atos de autoritarismo e desconhecimento da complexidade da história atual que a hierarquia tem cometido.
Na medida em que os que se julgam responsáveis pela Igreja se distanciam da alma do povo, de seu sofrimento real estarão sendo os construtores de um novo cisma que acentuará ainda mais o abismo entre as instituições da religião e a simples vida cotidiana com sua complexidade, desafios, dores e pequenas alegrias. As conseqüências de um cisma são imprevisíveis. Basta aprendermos as lições da história passada.
Termino este breve texto lembrando do que está escrito no Evangelho de Jesus de diferentes maneiras. Estamos aqui para viver a misericórdia entre nós. E todos nós necessitamos dessa misericórdia, único sentimento que nos permite não ignorar a dor alheia e nos ajudarmos a carregar os pesados fardos uns dos outros.
Ivone Gebara é Teóloga e Filósofa - (8 de Março de 2009)
A hierarquia da Igreja, servidora da comunidade dos fiéis não pode em certas questões separar-se do sentido comum e plural da vivência da fé. Não pode igualmente para certos assuntos de foro pessoal e mesmo grupal substituir-se à consciência, às decisões e ao dever das pessoas. Pode emitir sua opinião, mas não impô-la como verdade de fé. Pode expressar-se, mas não forçar pessoas a assumir suas posições. Nesse sentido, não pode instaurar uma guerra santa em nome de Deus para salvaguardar coisas que julga serem vontade e prerrogativa de Deus. A tradição teológica na linha mais profética e sapiencial nunca permitiu que nenhum fiel mesmo bispo falasse em nome de Deus. E isto porque o deus do qual falamos fala em nosso nome e tem a nossa imagem e semelhança. O Sagrado Mistério que atravessa tudo o que existe é inacessível aos nossos julgamentos e interpretações. O Mistério que em tudo habita não precisa de representantes dogmáticos para defender seus direitos. Nossa palavra é nada mais e nada menos do que um balbuciar de aproximações e de idéias mutáveis e frágeis, inclusive sobre o inefável mistério. É nessa perspectiva que também não se pode obrigar que a Igreja hierárquica torne, por exemplo, a legalização do aborto sua bandeira, mas simplesmente que não impeça que uma sociedade pluralista se organize conforme as necessidades de suas cidadãs e cidadãos e que estes tenham o direito de decidir sobre suas escolhas.
As comunidades cristãs assim como as pessoas são plurais. Num mundo tão diverso e complexo como o nosso não podemos admitir que apenas a opinião de um grupo de bispos, homens celibatários e com uma formação limitada ao registro religioso, seja a expressão do seguimento da tradição do Movimento de Jesus. A comunidade cristã é mais do que a igreja hierárquica. E, a comunidade cristã é na realidade múltiplas comunidades cristãs e estas são igualmente muitas pessoas cada uma com sua história, suas escolhas e decisões próprias diante da vida.
Impressiona-me o anacronismo das posturas filosóficas e éticas episcopais começando pelos bispos brasileiros e continuando nas instâncias romanas como se pode ler na entrevista que o cardeal Giovanni Batista Re, presidente da Congregação para os bispos, deu a revista italiana Stampa concordando com a postura dos bispos brasileiros. Os tempos mudaram. Urge pois, que a teologia dos bispos saia de uma concepção hierárquica e dualista do Cristianismo e perceba que é na vulnerabilidade às múltiplas dores humanas que poderemos estar mais próximos das ações de justiça e amor. É claro que sempre poderemos errar inclusive querendo acertar. Esta é a frágil condição humana.
Creio que nossas entranhas sentem em primeiro lugar as dores imediatas, as injustiças contra corpos visíveis e é a eles que temos o primeiro dever de assistir. A consternação e a comoção em relação ao sofrimento da menina de nove anos foram grandes. E isto porque é a esta vida presente e atuante, a esta vida de menina feita mulher violada e violentada em nosso meio que devemos o respeito e o cuidado primeiros. Por isso como membro da comunidade cristã, louvo a atitude do Dr. Rivaldo Mendes de Albuquerque do Instituto Maternal Infantil de Recife assim como a mãe da menina e todas as organizações e pessoas que acudiram a ela neste momento de sofrimento que certamente deixará marcas indeléveis em sua vida.
Dirão alguns leitores que minha postura não é a postura oficial da Igreja Católica Romana. Entretanto, o que significa hoje a palavra oficial? O que é mesmo Igreja oficial? A instituição que se arvora como representante de seu deus e ousa condenar a vida ameaçada de uma menina? A instituição que se considera talvez a melhor seguidora do Evangelho de Jesus?
Não identifico a Igreja à hierarquia católica. A hierarquia é apenas uma parte ínfima da Igreja.
A Igreja é a comunidade de mulheres e homens espalhada pelo mundo, comunidade dos que estão atentos aos caídos nas estradas da vida, aos portadores de dores concretas, aos clamores de povos e pessoas em busca de justiça e alívio de suas dores hoje. A Igreja é a humanidade que se ajuda a suportar dores, a aliviar sofrimentos e a celebrar esperanças.
Continuar com excomunhões, inclusões ou exclusões parece cada vez mais incentivar o crescimento de relações autoritárias desrespeitosas da dignidade humana, sobretudo, quando surgem de instituições que pretendem ensinar o amor ao próximo como a lei maior. De quem Dom José Cardoso e alguns bispos se fizeram próximos nesse caso? Dos fetos inocentes, dirão eles, aqueles que precisam ser protegidos contra o “Holocausto silencioso” cometido por algumas mulheres e seus aliados.
Na realidade, fizeram-se próximos do princípio que defendem e se distanciaram da menina agredida e violentada tantas vezes. Condenaram quem levantou a menina caída na estrada da vida e salvaguardaram a pureza de suas leis e a vontade de seu deus. Acreditam que a interrupção da gravidez da menina seria uma lesão ao senhorio de Deus. Mas as guerras, a crescente violência social, a destruição do meio ambiente não seriam igualmente lesões que mereceriam denúncia e condenação maior? Perdoem-me se, sem querer acabo julgando pessoas, mas diante da inconsistência de certos argumentos e da insensibilidade aos problemas vividos pela menina de nove anos uma espécie de ira solidária me assola as entranhas.
De fato um cisma histórico está se construindo e tem crescido cada vez mais em diferentes países. A distancia entre os fiéis e uma certa hierarquia católica é marcante. O incidente em relação a interrupção da gravidez da menina pernambucana é apenas um entre os tantos atos de autoritarismo e desconhecimento da complexidade da história atual que a hierarquia tem cometido.
Na medida em que os que se julgam responsáveis pela Igreja se distanciam da alma do povo, de seu sofrimento real estarão sendo os construtores de um novo cisma que acentuará ainda mais o abismo entre as instituições da religião e a simples vida cotidiana com sua complexidade, desafios, dores e pequenas alegrias. As conseqüências de um cisma são imprevisíveis. Basta aprendermos as lições da história passada.
Termino este breve texto lembrando do que está escrito no Evangelho de Jesus de diferentes maneiras. Estamos aqui para viver a misericórdia entre nós. E todos nós necessitamos dessa misericórdia, único sentimento que nos permite não ignorar a dor alheia e nos ajudarmos a carregar os pesados fardos uns dos outros.
Ivone Gebara é Teóloga e Filósofa - (8 de Março de 2009)
RASTREANDO FONTES DA UTOPIA FREIREANA: marcas cristãs e marxianas do legado de Paulo Freire, por Alder Júlio Ferreira Calado
Em lúcido e erudito ensaio, o educador popular e doutor em sociologia Alder Calado, recupera, desde o ponto de vista da teologia da libertação e do pensamento de Karl Marx, as principais fontes do pensamento de Paulo Freire.
“Eu sou um intelectual que não tem medo de dizer que eu amo as gentes e amo o mundo. E é porque amo as pessoas e amo o mundo, que eu brigo para que a justiça social se implante antes da caridade.” (Paulo Freire)
Um dos maiores pensadores contemporâneos, de reconhecida projeção nacional e internacional, Paulo Freire continua a exercer considerável influência na atualidade. Por diferentes motivações e por trilhas diversas, o já amplo reconhecimento de sua densa trajetória existencial e de seu legado biobibliográfico pode ser atestado por significativas categorias ou elementos conceituais por ele cunhados ou criativamente ressignificados/reelaborados, sem, porém, lesar suas respectivas fontes inspiradoras.
A despeito da variação semântica com que são por tantos e tantas utilizados, de autoria de Paulo Freire ou resultantes de efetiva incorporação, emergem de seus escritos categorias, expressões ou conceitos que passaram a ser tratados como traços bem característicos de seu legado. Trata-se de categorias, expressões ou conceitos tais como: círculo de cultura, diálogo, conscientização, educação libertadora, pedagogia do oprimido, educador-educando, educando-educador, palavras geradoras, universo vocabular, mundo da natureza, mundo da cultura, leitura de classe, ser inconcluso, ser para si, ser relacional, ser que se vai tornando, vocação ontológica de sujeito, ser de esperança, inédito viável, práxis pedagógica, entre outros. Conceitos que, por certo, dão respaldo a títulos que lhe são atribuídos, a exemplo de Andarilho da Utopia , Andarilho da Esperança ou, como também o chamo, Tecelão da Utopia , entre outros.
Com efeito, resulta difícil (re)visitar o legado biobibliográfico de Paulo Freire, sem que isso reacenda, sob múltiplos aspectos e circunstâncias, sua condição de trabalhador cultural, de “plantador de idéias” , de agente de uma Utopia libertadora, a tecer, por onde andasse, fios grávidos de Utopia, mantendo acesos os mais generosos sonhos de uma sociedade alternativa, construída na justiça e na solidariedade, o que sempre o motivou a brigar “para que a justiça social se implante antes da caridade.”, conforme depoimento seu, recolhido no CD “O Andarilho da Utopia”, produzido pela Rádio Nederland, em parceria com instituições brasileiras.
Por outro lado, por força inclusive do caráter ético-político de sua proposta pedagógica - e aqui distinguindo-se, não raro, da praxe da Academia -, as categorias centrais por ele trabalhadas não se esgotam no plano estritamente acadêmico. Rompem seus muros, desbordam da Academia, ganham a rua, alcançam a casa, impregnam as relações do Cotidiano.
A propósito da dimensão ética que atravessa o percurso existencial e o legado bibliográfico de Paulo Freire, importa ter presente o juízo avaliativo que Enrique Dussel expressa acerca de Paulo Freire, ao contrapor o “exercício da razão ético-crítica” freireana – relevante fundamento da Ética da Libertação - à mera elucubração discursiva da ética de mercado, que se contenta com recursos cognitivos como solução para os embates éticos. (cf. DUSSEL, 2000).
Um percurso pelas principais produções de Paulo Freire permite-nos perceber, a partir mesmo das citações nelas encontradas, a variedade de autores e mesmo de correntes de pensamento com que ele estabeleceu diálogo. Como assinalou Paulo Rosas, a justo título, contemplando especialmente sua atuação intelectual correspondente ao “período do Recife”: “À medida que Freire aprofundava e, de uma certa maneira, diversificava suas reflexões, ele diversificava também suas fontes” (ROSAS, 2004, p. 25).
Aí também reside sua marca de homem do Diálogo. Não costumava limitar seu exercício de interlocução a um círculo restrito de autores, ou a uma única corrente de pensamento. Preferia, também nisso, portar-se como andarilho dialogante que, partindo de seu quadro próprio de referência, não hesitava em estender sua tenda dialogante a distintas grades de formulação teórica.
Sempre, porém, o fazia, a partir de situações concretas. Diferentemente de uma posição academicista, cujos representantes costumam superestimar infindáveis exercícios de elucubração, tomados pela sede de “conhecer por conhecer”, a perspectiva freireana sempre recorre à teoria, a partir das indagações e desafios suscitados pelo chão do cotidiano, em busca de pistas ou elementos de respostas em relação aos desafios colocados pelas situações concretas.
É bem assim que vai, por exemplo, a Hegel como mediação para um entendimento mais consistente a respeito de consciência independente/consciência dependente (cf. FREIRE, 1973:46), quanto aos desafios do efervescente contexto histórico de mobilização característico daquele período, inclusive por parte dos estudantes. Impelido, igualmente, pela indignação contra a avareza dos privilegiados, que têm olhos exclusivamente para os próprios interesses, Freire recorre a Erich Fromm, em busca de entendimento dessa postura “necrófila” dos opressores, para quem “la persona humana son apenas ellos. Los otros son ´objeto, cosas´” (...) “La humanización les pertenece. La de los otros, aquella de sus contrarios aparece como subversión.” (ib., p. 58/59)
Simone de Beauvoir e Jean Paul Sartre constituem outros interlocutores de Freire, graças à sua contribuição ao esforço de desvelamento da consciência de opressores e oprimidos. Em relação aos primeiros, Freire cita uma afirmação percuciente de Simone de Beauvoir, ao sustentar que o que pretendem os opressores “es transformar la mentalidad de los oprimidos y no la situación que los oprime.” (ib., p. 79), enquanto em Sartre busca inspiração para a formulação do seu conhecido conceito de consciência bancária, que, em Sartre, corresponde à “concepción ´digestiva` o ´alimenticia` del saber” (FREIRE, 1973:83).
Como se percebe, a rememoração de fontes do pensamento freireano bem como o exercício de interlocução com pensadores de ontem e de hoje já foram, direta ou indiretamente, tomados como objeto de estudo por vários autores, entre os quais aqui destacamos Beisiegel (1992) e Rosas (2004). Diferentes correntes e autores são, com efeito, apontados por estes e por outros como interlocutores de Paulo Freire.
A exemplo desses, recorre a tantas e tantos autores – Karl Jaspers, Karl Mannheim, Reinhold Niebuhr, Zevedei Barbu, C. Wright Mills, Oliveira Viana, Teilhard de Chardin, Tristão de Athaíde, Simone Weil, Emmanuel Mounier, Gilberto Freyre, Caio Prado Júnior, Anísio Teixeira, Fernando de Azevedo, Pierre Furter, Frantz Fanon, Albert Memmi, Hans Freyer, Álvaro Vieira Pinto, Celso Furtado, Karel Kosik, Gunard Myrdal, Maria Edy Ferreira, Lucien Goldman, Jomard Muniz de Brito, Jarbas Maciel, Celso de Rui Beisiegel, Francisco Weffort, Fernando García (“hondureño, alumno nuestro”), entre outros e outras mais freqüentes em suas primeiras obras.
E, a justo título ou não, não falta quem, sobretudo nas últimas décadas, nele reconheça afinidades relevantes com figuras dos mais distintos (ou distantes?) perfis político-filosóficos.
A respeito desse registro, muita coisa pode ser dita. De minha parte, entendo que, no percurso de uma vasta produção bibliográfica, dificilmente não se identifique, aqui, ali, algum traço de afinidade pontual, inclusive entre autores e autoras globalmente dissidentes, nas teses essenciais. O que parece preocupante é o esforço por vezes constatado de se tentar converter traços pontuais de afinidade efetivamente observáveis em elementos suficientes de uma afinidade filosófico-política substantiva. Sobre isso, tomando inclusive Freire como alvo de analogia com outros autores (tanto de modo convincente quanto de modo duvidoso), vários autores se têm pronunciado com argumentos, ao meu ver, consistentes. (cf., por ex., DUSSEL, 2000; ANDREOLA, 2007; ARAÚJO FREIRE, 2007; PITANO, 2007).
Dussel, por exemplo, elenca uma lista de autores cuja abordagem entende pouco afinada com sua concepção de Ética, enquanto avalia como próxima da sua a concepção de Ética trabalhada por Paulo Freire. Com relação aos que considera distanciados de sua concepção de Ética, reputa-os portadores de uma postura ora cognitivista, ora consciencialistas, ora individualistas, ora ingênuos. Nesse elenco inclui nomes como os de Habermas e Piaget, entre outros. (cf. DUSSEL, 2000, pp. 428-435).
Tomando como referências fundamentais a Casalli e a Dussel, Ana Maria Araújo Freire, por sua vez, segue a mesma linha de argumentação do segundo, ao afirmar que:
a natureza ético-humanista de Paulo responde por um peculiar modo do seu pensar sistematizado, infelizmente tão negado quanto repudiado pelos academicistas e pelos adeptos da ética do discurso e a ética do mercado (ARAÚJO FREIRE, 2007, p.178)
Com comprovada experiência de atenta observação a distintos exercícios de analogia, empreendidos por diferentes pesquisadores, em suas teses e dissertações (de algumas das quais tendo sido Examinador), confrontando Freire a diversos outros autores (Kant, Hegel, Malinowski, Peaget, Mounier, Foucault, Morin, Habermas...), Balduíno Andreola, em instigante entrevista a esse respeito, e tomando quatro critérios de classificação que denominou jocosamente de “aproximações antibióticas” (mera contraposição entre atualizados X ultrapassados); “aproximações biotônicas” (pretendendo consolidar a imagem freireana, tomando de empréstimo reforço em autores considerados de maior aceitação acadêmica); “aproximações simbiótico-idealistas” (vêem-se apenas afinidades); e “aproximações simbiótico-dialéticas” (reconhecem-se afinidades e distanciamentos). No caso das aproximações ou distanciamentos entre Freire e Habermas, eis o que ele afirma:
as aproximações simbiótico-dialéticas, como a que opera Jaime Zitkoski[22], em sua tese de doutorado, são as que consideram que existem, sim, afinidades, convergências e complementariedades, entre Freire e Harbemas, mas analisam também as diferenças, algumas pequenas, outras maiores, e, finalmente, as profundas e inconciliáveis, entre uma obra individual de um autor, Habermas, construída a partir de uma visão eurocêntrica, e a de Freire, que elabora a Pedagogia do oprimido, no diálogo com os sujeitos históricos, os oprimidos ou “condenados da Terra”, segundo Fanon[23], da América Latina e do mundo, no contexto de um processo continental de libertação, violentamente reprimido e sufocado pelos regimes militares, e que tem suas expressões teóricas numa Filosofia da Libertação, na Teologia da Libertação[24], numa Pedagogia da Libertação, na Psicoterapia do Oprimido de Alfredo Moffat[25], no Teatro do Oprimido de Augusto Boal[26], e numa gama imensa de obras que teorizam a práxis histórica da Educação Popular e dos movimentos populares, entre os quais se distingue o MST. (cf. Entrevista concedida por Balduíno Andreola, in http://amaivos.uol.com.br/templates/amaivos/amaivos07/noticia/noticia.asp?cod_noticia=8773&cod_canal=41 ).
Ainda consoante à mesma linha de interpretação, Sandro de Castro Pitano, ao destacar três diferenças relevantes entre Freire e Habermas (uma de natureza contextual, outra de caráter teórico e uma terceira de corte metodológico), assinala:
A ação comunicativa pressupondo materializar-se entre sujeitos competentes do ponto de vista moral, cognitivo e lingüístico, revela um formalismo inócuo diante das contradições sociais do nosso contexto. A proposta habermasiana concebe, não o sujeito da Educação Popular, como em Freire, mas um ser humano genérico (...)
E conclui, na mesma página: “Talvez as novas leituras exijam bem mais um retorno aos referenciais teóricos tradicionais, resgatando conceitos, do que a assunção de novos modelos ou teorias” (PITANO, 2008, p. 133).
Como se percebe, é amplo o leque de autores e correntes tomados, a justo título ou não, como interlocutores ou como referências fontais do pensamento de Freire, aqui nos propomos acentuar apenas duas referências fontais, sem deixarmos de reconhecer a incidência em Paulo Freire de outras correntes de pensamento e respectivos representantes.
Entendendo que essas duas correntes correspondem, de modo mais representativo, a suas referências axiais: iniciamos por uma breve incursão pela corrente do Cristianismo, o Cristianismo Social, tal como assumido pela Teologia da Libertação. Em seguida, empreendemos um breve percurso analógico pelo legado marxiano, lido sob um ângulo humanista.
1. Incidência do pensamento social cristão nos escritos freireanos
Com relação à incidência em Paulo Freire de relevantes traços do Cristianismo, sob a ótica da Teologia da Libertação, vale ressaltar que se trata provavelmente da corrente mais enraizada, não apenas em seu legado bibliográfico, mas em todo o seu percurso existencial.
Não é por acaso que reconhecidas figuras da Teologia da Libertação não hesitam em associá-lo aos teólogos da libertação. A despeito de não ter sido esta a área a que tenha consagrado o melhor de seus escritos, Paulo Freire contribui com a formulação da Teologia da Libertação, por meio de sua proposta ético-filosófica e política.
Como se sabe, a Teologia da Libertação, seguindo o famoso “Método Ver-Julgar-Agir do Movimento da Ação Católica, inclusive em sua versão especializada (JAC, JEC, JIC, JOC, JUC, ACO), arranca da análise da realidade social (o “Ver” ou “mediação sócio-analítica”) para partir, em seguida, para o exame especificamente teológico, feito à luz dos textos fundantes do Cristianismo (o “Julgar”), do que resultam pistas práticas de caráter político-pastoral (“Agir”). O aporte freireano incide principalmente no exercício da “mediação sócio-analítica”.
Eis por que teólogos como Clodovis Boff, um dos principais teóricos da Teologia da Libertação, num dos seus escritos relevantes, no qual também propõe uma apresentação da Teologia da Libertação e de seus principais representantes, nos distintos continentes, não hesita em incluir na lista dos principais representantes desta mesma corrente no Brasil, ao lado de Rubem Alves, Leonardo Boff, Eduardo Hoornaert e J. B. Libânio, “P. Freire, pedagogo, agora em Genebra - simpatizante da TdL”. (cf. BOFF, 1978, p. 187).
Aliás, quanto a isso, Clodovis Boff não terá sido o único, nem o primeiro. É acompanhado ou seguido por outros pensadores, de diferentes áreas, inclusive da Filosofia, como é o caso de Roger Garaudy que, em artigo datado de 1978, a partir do próprio título (“A pedagogia de Paulo Freire e os teólogos da libertação”), já acenava também para tal relação. Relação igualmente atestada pelos laços que ligavam Paulo Freire a figuras como James Cone, um dos representantes mais respeitados da Teologia Negra da Libertação, de quem Paulo Freire chegou a prefaciar, ainda nos inícios dos anos 70, a edição argentina do seu famoso livro A Black Theology of Liberation, ocasião em que Paulo Freire justifica seu entusiasmo com a obra recém-lançada:
É que a “black theology”, de que Cone é uma das melhores expressões nos Estados Unidos, se identifica, indiscutivelmente, com a “teologia da libertação” que hoje floresce na América Latina. O profetismo de ambas não significa somente um falar em nome dos que se encontram proibidos de fazê-lo, mas, sobretudo, em lutar lado a lado com eles para que, transformando revolucionariamente a sociedade que os reduz ao silêncio, possam dizer, efetivamente, sua palavra. (FREIRE, 1984, p. 129).
Sem abrir mão do reforço desses testemunhos, o propósito axial deste item é o de, mediante uma breve incursão por seus principais textos, assinalar efetivas afinidades – umas mais, outras menos explícitas - entre elementos de textos fundantes do Cristianismo e o sentir-decidir-agir de Paulo Freire. Então, vejamos alguns casos.
- A Liberdade como vocação ontológica do Ser Humano – A esse respeito Paulo Freire reúne um amplo leque de afirmações, em seus distintos livros. Preocupado com o drama da opressão como realidade presente, não perdia o horizonte fundamental do Ser Humano, o de incessante busca de Liberdade, convencido que estava de que “Humanización o deshumanización, dentro de la Historia, en un contexto real, concreto, son posibilidades de los hombres como seres inconclusos y concientes de su inconclusión. Sin embargo si ambas son posibilidades, nos parece que solo la primera responde a lo que denominamos vocaación de los hombres.” (FREIRE, PO, 1971, p. 38).
Isto porque para Freire: “Existir ultrapassa viver porque é mais do que estar no mundo. É estar nele e com ele.” (FREIRE, EPL, 1971, p. 40, Nota 2). Uma plantinha, por exemplo, tem assegurada na Terra sua forma de vida, que é distinta da do Ser Humano. Para este não interessa qualquer forma de vida. Viver não é simplesmente vegetar. Como consciência do Universo, o Ser Humano, para se realizar, vai além de uma forma de vida vegetativa. A vocação do Ser Humano é para a Liberdade, que coincide com vida plena.
Precisamente aqui tem lugar na bibliografia freireana a inspiração cristã. O Reino que Jesus veio anunciar, e do qual Ele dá testemunho, é um Reino de Liberdade: “Para a Liberdade é que vocês foram chamados, irmãos”, afirma o apóstolo Paulo às comunidades da região da Galácia, na Ásia Menor (Gl 5, 13). Um Reino onde reina a Paz como obra da Justiça, e por isso, onde há vida plena: “Eu vim para que todos tenham vida e vida em abundância.” (Jo 10, 10). Ainda a propósito da centralidade que a Liberdade ocupa na experiência do Seguimento de Jesus, Comblin sustenta, a justo título, que “A vocação para a liberdade é o núcleo central do evangelho e o ponto de partida da nova humanidade.” (COMBLIN, 1998:12).
O ser humano como um ser inconcluso que vai se fazendo – Eis outro elemento recorrente nos escritos freireanos. Dos primeiros aos últimos. Se, por exemplo, em meados dos anos 60, ele sustentava que “Só na convicção do inacabado pode encontrar o homem e as sociedades o sentido da esperança. Quem se julga acabado está morto.” (FREIRE, EPL, 1971, p. 53), afirmação semelhante Paulo Freire vai reiterar, num dos seus últimos escritos, nos seguintes termos: “Onde há vida há inacabamento. (...) “entre homens e mulheres o inacabamento tornou-se consciente” (FREIRE, 1977, p. 55). Sinaliza a condição histórica, e portanto mutável, do Ser Humano, no que se aproxima de figuras como Simone de Beauvoir, ao sustentar a dimensão perfectível de mulheres e homens, que vão se tornando no processo histórico. Daí o sentido da esperança acima mencionado por Freire.
Também aí se observa uma herança cristã, cujos textos - do Antigo e do Novo Testamento - alertam ao Ser Humano de sua natureza finita, limitada, perfectível. Muito conhecido é o alerta pronunciado nas cerimônias da Quarta-Feira de Cinzas, na liturgia católica: “Lembra-te que és pó e em pó hás de tornar-te”, numa referência explícita ao livro do Gênesis (Gn 3, 19).
É a consciência de seus limites que permite ao Ser Humano apostar, com humildade, em suas potencialidades, nos dons que lhe foram confiados. É, com efeito, fundamental, no espírito da Bíblia, o exercício da consciência dos próprios limites, como condição para avançar a águas mais profundas, pois “o que é fraco no mundo Deus escolheu para confundir o que é forte”, afirma Paulo aos cristãos de Corinto (1 Cor 1, 27).
No Seguimento de Jesus, as grandes coisas vêm das pequenas: “[O Reino de Deus] é como um grão de mostarda: quando é semeado na terra, é a menor de todas as sementes; mas, depois de semeada, cresce e torna-se a maior de todas as hortaliças”. (Mc 4, 31-32).
Ter consciência dos próprios limites é condição para o exercício da auto-avaliação que passa, entre outros requisitos, pelo reconhecimento dos próprios descaminhos, a exemplo da lição que Jesus dá aos que se insurgiam contra a mulher flagrada em adultério: “Quem não tiver pecado, atire a primeira pedra.” (Jo 8, 7). Condição para o exercício de auto-crítica: “Hipócrita, tira primeiro a trave do teu olho, e então enxergarás direito para tirar o cisco do olho do teu irmão.” (Mt 7, 5).
O ser humano como expressão de uma experiência dialógica em movimento - A dimensão relacional é muito forte na experiência humana. E manifesta-se mais eficazmente por meio da ação dialógica, uma das categorias centrais do legado freireano. Na Pedagogia de Paulo Freire, ninguém se educa isoladamente, até porque a ação educativa, sendo um processo social, revela-se necessariamente coletiva, comunitária, sem que isso implique prescindir-se da individualidade, da dimensão pessoal dos protagonistas. A fecunda experiência dos círculos de cultura é também emblemática, a esse respeito.
São vastas e recorrentes, a esse propósito, as referências diretas e indiretas, na obra de Paulo Freire. Nele, o exercício dialógico é condição de afirmação da ação intercultural, mais do que da mera multiculturalidade, como costuma lembrar João Francisco de Souza. (cf., por ex., SOUZA, 2004).
Essa posição freireana também encontra lastro de afinidade na experiência cristã, na ótica da Teologia da Libertação. O Deus de Jesus de Nazaré revela-se pela Aliança feita com o seu Povo. Aliança pela qual esse Povo é chamado a ser um povo de irmãos, de diferentes tribos e nações, tendo-O como único Deus. Este quer reunir os dispersos, e o mecanismo do qual lança mão é o chamamento ao diálogo, ao entendimento, ao respeito, à partilha, ao serviço, à reciprocidade, à solidariedade, à construção da unidade na diversidade. Ação dialógica que vai além do discurso, funda-se na prática entre iguais: “Sabeis que aqueles que vemos governar as nações as dominam e os seus grandes as tiranizam. Entre vós, não deverá ser assim: ao contrário, aquele que dentre vós quiser ser grande, seja o vosso servidor” (Mc 10, 42-43). Assim se tornaram conhecidas e apreciadas as antigas comunidades cristãs, tal como descritas no livro dos Atos dos Apóstolos: “Eles se mostravam assíduos ao ensinamento dos apóstolos e à comunhão fraterna, à partilha do pão e às orações. (...) Ninguém considerava seu o que possuía, mas tudo lhes era comum.” (At 2, 42; 4, 32).
Em Freire, a ação dialógica não correspondia a uma panacéia ou a um recurso incondicional. O diálogo se dá entre iguais e entre diferentes, tornando-se inviável entre antagônicos. Também em sua concepção de diálogo, ressoava o entendimento de que, por vezes, o diálogo fica obstaculizado, porque “Ninguém pode servir a dois senhores (...) Não podeis servir a Deus e ao dinheiro” (Mt 6, 24).
- A perspectiva dos condenados da Terra – Um dos fios condutores que perpassam toda a obra de Paulo Freire é sua intransigente defesa da causa dos deserdados, como protagonistas do processo de sua libertação. Para ele, com efeito,
No existe otro camino si no el de la práctica de una pedagogía liberadora, en que el liderazgo revolucionario, en vez de sobreponerse a los oprimidos y continuar manteniéndolos en el estado de “cosas”, establece con ellos una relación permanentemente dialógica. (FREIRE, 1973, p. 71).
Perspectiva que encontra forte respaldo de inspiração cristã, fartamente fundamentada na Bíblia, seja pela palavra dos profetas do Antigo Testamento, seja pelo claro compromisso de Jesus e de seus seguidores com a causa do oprimido, a exemplo do que se percebe numa passagem em que é próprio Jesus, ressoando a boa tradição profética de, por exemplo, Isaías 61, 1-9, quem explicita o essencial do seu Programa: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque Ele me ungiu para evangelizar os pobres, enviou-me para anunciar a libertação aos cativos, aos cegos a recuperação da vista, para restituir a liberdade aos oprimidos, para proclamar um ano de graça da parte do Senhor.” (Lc 4, 17-19).
Tal é a natureza desse compromisso do Cristianismo com a causa dos pobres, que um conhecido teólogo não hesita em afirmar:
A questão dos pobres não é apenas uma entre outras questões, não é apenas uma parte do problema da evangelização ao lado de muitas outras. É o único desafio único diante do qual todos os demais empalidecem.” (COMBLIN, 2002, p. 11).
Essas são algumas das marcas observáveis, de passagem, no que tange à incidência das fontes cristãs sobre o legado de Paulo Freire. Outras várias poderiam, igualmente, ser enfatizadas, tais como a sede de justiça de que os profetas são contundentes (Isaías, Jeremias, Amós, Oséias, Miquéias, entre outros), e de que estão repletas as páginas dos Evangelhos, a exemplo do famoso Sermão da Montanha, no início do capítulo 5 de Mateus.
A curiosidade epistemológica também tem inspiração bíblica, em vários textos. Basta lembrar a freqüência com que Jesus chama a atenção dos seus discípulos e discípulas para estarem atentos aos sinais dos tempos, buscando exercitar continuamente sua capacidade perceptiva (“Quem tiver ouvidos, ouça”(Mt 13, 9; Mc 4, 23).
Uma outra passagem emblemática nesse apelo bíblico ao exercício do discernimento encontra-se, por exemplo, no chamamento Paulino: “Examinai todas as coisas e retende o que é bom” (1 Ts 5, 21). Ainda é pertinente lembrar aqui o lugar que o discernimento, a sabedoria tem na cultura do Povo de Deus. É conhecida, a esse propósito, a aprovação de Deus à prece de Salomão por sabedoria: “já que não pediste nem riqueza, nem tesouro, nem glória, nem a vida dos teus inimigos, já que nem mesmo pediste vida longa, mas sabedoria e inteligência para julgar o meu povo sobre o qual te constituí rei, a sabedoria e a inteligência te são concedidas.” (2 Cr 1, 11-12).
Outros valores bíblicos também influenciaram, direta ou indiretamente, o legado freireano, tais como o compromisso ético, a dimensão docente e discente do ser humano, o chamamento a uma ação instituinte, na perspectiva da construção de uma nova sociedade, destacando-se aqui a relevância do protagonismo do conjunto dos membros da nova sociedade (em linguagem bíblica: do Povo de Deus).
2. Rastros marxianos na produção bibliográfica de Paulo Freire
Ora de modo mais explícito, ora em tom menos enfático, a presença de Marx também se faz presente na obra de Paulo de Paulo Freire. A seguir, buscamos rastrear tal incidência, que reputo mais forte em sua formação ético-política, depois da influência da fonte do Cristianismo, na ótica da Teologia da Libertação, reiterando o reconhecimento da incidência significativa em sua obra de outras correntes de pensamento.
Ainda que tal incidência se dê, por vezes, em relação a outros autores marxistas (aqui citaria um Antonio Gramsci, um Ernesto Che Guevara, por exemplo), nosso intento se restringe sobremaneira à influência ou à associação de traços do legado de Karl Marx na obra de Paulo Freire.
Os tópicos a seguir sublinhados acerca de tal incidência constituem apenas alguns exemplos. Outros ocorrem de modo implícito. Ainda assim, nem tanto, quando se trata de acentuar, em ambos, o caráter social da condição humana. Em Marx, isso é uma constante, ao longo de suas obras. A própria individualidade humana está fortemente condicionada à vida comunitária, que, aliás, lhe dá sentido e sustentação:
Uso da Dialética na análise das relações macro-sociais - Iniciamos pela influência da Dialética em seu legado, seja pela via hegeliana, seja principalmente pela influência marxiana, à medida que Freire, ao recorrer à Dialética, não o faz por simples exercício lógico ou como mero instrumental analítico, se bem que este expediente não estava descartado em sua apaixonada arte de redação. Também nisso reside um ponto comum entre Marx e Freire. Áquele não agradava o mero exercício do pensar pelo pensar, da lógica pela lógica. Se da Dialética se serviu, o fez como meio de encontrar pistas de transformação social.
É conhecida sua Tese 11, dedicada à fundamentação de sua oposição ao exercício filosófico proposto por Feuerbach e pela filosofia alemã da época: “Até hoje, outra coisa não fizeram os filósofos do que interpretar o mundo de diversas maneiras. Importa mesmo é transformá-lo.” Em incessante estado de busca de transformação da sociedade e dos valores então hegemônicos, tratou de recorrer à Dialética, como instrumento de reinvenção do mundo.
Eis por que um ponto axial da elaboração teórica de Marx reside no recurso à Dialética como instrumento a partir do qual seus argumentos encontravam ressonância no chão das relações sociais. Nesse sentido, velhos princípios remontando ao pré-socrático Heráclito, de que “Tudo está ligado a tudo” ou de que “Tudo muda” encontram em Marx (e em outros discípulos seus) um genial reelaborador, cuja grande contribuição não se restringia a ensaiar jogos de raciocínios teórico-abstratos, mas, antes, arrancava de sua ousadia de apreender e compreender movimentos concretos e complexos inscritos na tessitura das macro-relações sociais.
Sob vários aspectos, Freire percorre trilhas semelhantes. Disso dá testemunho, por exemplo, a forma como concebeu e implementou um dos seus trabalhos principais, Pedagogia do Oprimido. Escritas em Santiago, e datadas do outono de 1969, na condição de exilado fazia três anos, suas “Primeiras Palavras” que servem de introdução ao livro, oferecem elementos significativos. Um deles refere-se aos procedimentos metodológicos dos quais se valeu. Tem a ver com uma confluência de circunstâncias – antes do, e durante o exílio -, que ele observou criteriosamente, buscando identificar seus traços de ligação, bem como suas diferenças. Como se tornaria uma marca do seu procedimento de pesquisador, partiu de experiências concretas por ele vivenciadas, no Brasil e no exílio chileno.
Se se toma, igualmente, como outro exemplo emblemático, o roteiro que propõe já no primeiro capítulo desse mesmo livro, pode-se observar a clara incidência do instrumental dialético de análise, numa perspectiva de superação concreta das relações em jogo. Com efeito, após justificar a adoção da categoria “Pedagogia do Oprimido”, passa a analisar “a contradição opressores-oprimidos e sua superação”, partindo da “situação concreta” seja dos opressores, seja dos oprimidos, do que vai resultar uma de suas conclusões: “Ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho. Os homens se libertam em comunhão.”
Aqui se trata da construção da unidade dos oprimidos em luta contra os opressores, não em vista de uma mera inversão de posições (do tipo: quem era oprimido vira opressor, quem era opressor passa à condição de oprimido), mas para subverter a própria natureza da relação: trata-se de extinguir definitivamente a velha ordem, fazendo emergir uma nova sociabilidade, em que já não tenha lugar nem opressor nem oprimido, razão pela qual o objetivo consiste na superação da própria natureza da relação.
Esse procedimento de Freire não se limita a esse escrito. Ao longo de sua produção bibliográfica, observa-se que ele reedita tal prática analítica.
Adoção da prática como critério da verdade – Importa atentar, aqui, para uma feliz confluência das duas fontes de inspiração em tela. Tanto o Cristianismo como o Marxismo (ou, mais precisamente, a figura de Marx) assumem a comprovação da prática como critério da verdade. Por um lado, no caso do Cristianismo, são freqüentes as passagens do Novo Testamento denunciando como hipócritas as palavras destituídas de comprovação pela via da prática, dos gestos: “Nem todo aquele que diz: `Senhor, Senhor` entrará no Reino dos céus, mas sim, aquele que faz a vontade do meu Pai que está nos céus.” (Mt 7, 21).
Ainda nesse mesmo capítulo, há outras referências semelhantes, como a da admiração que o povo dos pobres nutria por Jesus de Nazaré, por conta de sua coerência entre discurso e prática. Poderíamos, ainda, citar a Carta de Tiago, que insiste em que “a fé sem obras é morta” (Tg 2, 17).
Por outro lado, no caso de Marx, desponta como uma das afirmações mais representativas o teor da Tese 2 contraposta ao pensamento de Feuerbach: “A questão de se atribuir ao pensamento humano uma verdade objetiva não é uma questão de teoria, mas uma questão prática. É na prática que o homem comprova a verdade.” (MARX-ENGELS, 1976, p. 1).
Ao longo dos escritos de Paulo Freire, mas igualmente no percurso de sua existência, são notórios os gestos e palavras, quanto ao peso extraordinário desse princípio práxico, representado pela coerência entre a fala e o gesto, bem expresso, por exemplo, nessa passagem de Pedagogia do Oprimido, após apontar o testemunho como constitutivo da ação revolucionária, em qualquer período histórico:
Entre los elementos constitutivos del testimonio, los cuales no varian históricamente, se cuenta la coherencia entre la palabra y el acto de quien testimonia, la osadía que lo lleva a enfrentar la existencia como un riesgo permanente, la radicalizaciónm y nunca la sectarización, de la opción realizada que conduce a la acción no sólo a quien testimonia sino a aquellos a quien da su testimonio... La valentía de amar que, creemos quedó claro, no significa la acomodación a un mundo injusto sino la transformación de este mundo para una creciente liberación de los hombres. (FREIRE, 1973, p. 232).
Essa é uma marca bem freireana – a coerência. Não pelo fato de que, ser inconcluso, não tenha agido eventualmente de modo incoerente, mas pelo cuidado e pela autovigilância que exercia, de modo a cultivar um discurso que correspondesse ao seu agir:
Até hoje, sem exceção, nenhum dos poucos livros que escrevi deixou de ser uma espécie de relatório, não burocrático, é certo, de experiências realizadas ou em realizando-se em momentos distintos da atividade político-pedagógica em que me acho engajado desde o começo de minha juventude.”), ousadia, radicalidade, valentia de amar, crença no povo. (CGB, p. 173).
Em Freire, o cultivo da coerência estava impregnado e era continuamente alimentado por uma dimensão ética tão densa, que, ao articular-se à dimensão política, a esta, em última instância, se sobrepunha:
Em lugar de converter-me ao centro e eventualmente ganhar o poder, como progressista prefiro abraçar a pedagogia democrática e, sem saber quando, com as classes populares alcançar o poder para reinventá-lo. (AsdM, p. 38).
Quem educa o educador? - Um dos muitos cuidados característicos de Paulo Freire como Pedagogo era o de situar toda ação educativa no contexto das relações sociais, como um processo social. Poucos, como ele, fizeram isso de forma tão explícita e recorrente: a compreensão da educação como um sub-sistema do sistema social.
Por sua vez, a ação educativa, compreendida como uma relação social, tinha lugar nos distintos espaços e tempos vivenciados pelos sujeitos (individuais e coletivos), não se restringindo ao espaço-tempo escolar, mas fazendo-se presente nos mais variados espaços vitais, e ainda com mais força nos processos educativos não-formais. A Educação Popular, lida na perspectiva freireana, aponta bem nessa direção.
Dentre vários pontos de sua contribuição específica a essa formulação, um diz respeito aos protagonistas desse processo. Aqui, se faz “dodiscência”, processo em virtude do qual docentes aprendem, enquanto ensinam; e discentes ensinam, enquanto aprendem. Nele, o aprender erige-se em experiência fundante do processo educacional, até porque
foi aprendendo socialmente que, historicamente, mulheres e homens descobriram que era possível ensinar. Foi assim, socialmente aprendendo, que ao longo dos tempos mulheres e homens perceberam que era possível – depois, preciso – trabalhar maneiras, caminhos, métodos de ensinar. Aprender precedeu ensinar ou, em outras palavras, ensinar se diluía na experiência realmente fundante de aprender. (cf. PA, p. 26).
Observa-se algum tipo de relação entre essa tese tão marcante do legado de Freire e a conhecida formulação de Marx, correspondente à Tese 3, contraposta a Feuerbach, de que, em matéria de educação, de aprendizado, ninguém – nem mesmo (ou principalmente?) quem se pretenda educador tarimbado – está suficientemente pronto para reverter as circunstâncias adversas:
A doutrina materialista da transformação das circunstâncias e da educação esquece que o homem é necessário para transformar as circunstâncias e que o próprio educador precisa ser educado. (MARX-ENGELS, 1976, p. 2).
Vários outros pontos da Pedagogia freireana encontram suporte ou inspiração, expressamente ou não, em formulações de Marx, a começar pela forte sensibilidade da ação histórica sobre as relações educacionais e outras atinentes ao processo de humanização. Nos diversos textos de Paulo Freire, a começar dos primeiros, seu senso de historicidade aflora à primeira vista.
Como não reconhecer, com efeito, alguma semelhança entre, de um lado, a atenção sistemática que Freire cultivava em relação ao contexto, à situação histórica concreta, e, por outro, a extraordinária força da historicidade nos escritos de Marx, como, por exemplo, nessa passagem da A Ideologia Alemã (produzida em parceria com Engels):
O mesmo modo como os indivíduos manifestam sua vida, reflete exatamente o que eles são. O que eles são coincide, portanto, com a sua produção, tanto com o que produzem, quanto com a maneira como produzem. (MARX e ENGELS, 1976, p. 15).
Ou, ainda mais claramente, nessa passagem de O Dezoito Brumário de Luiz Bonaparte, em que afirma:
Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem segundo a sua livre vontade, não a fazem sob circunstâncias de sua escolha, mas sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. (MARX, 1987, p. 15).
Contextualizar os fatos, as situações, as lutas e os desafios – eis o primeiro cuidado que também Freire costumava tomar. Basta, para tanto, conferir os roteiros de seus principais textos. Observe-se que, assim agindo, acena para a dupla influência aqui considerada: a de caráter cristão e a de perfil marxiano. Com relação à influência cristã, pelo menos sob a ótica da leitura da Teologia da Libertação, vale notar em seus escritos elementos da presença do famoso Método da Ação Católica especializada – o “Ver-Julgar-Agir” -, claro que com reelaboração ou outra roupagem adaptada ao campo de análise próprio das ciências sociais, especialmente o da Educação. Outro traço forte comum incidente em Marx e retomado por Freire, tem a ver com um processo humanizador do qual sejam sujeitos os próprios interessados: os oprimidos.
O protagonismo dos “de baixo” – De fato, tanto em um como no outro, este se apresenta como um elemento-chave de sua concepção de homem e de sociedade. Em Marx, isso aparece seguidamente, em algumas de suas obras. É o núcleo mais enfático de sua aposta na condição humana: seu caráter protagonista, de sujeito de sua história, de sujeito de sua emancipação, como vem bem sublinhado em tantas passagens, como
Um ser só se considera autônomo, quando é senhor de si mesmo, e só é senhor de si, quando deve a si mesmo seu próprio modo de existência. Um homem que vive graças a outro, se considera a si mesmo um ser dependente. (MARX, 1974, p. 20).
Eis por que, também do ponto de vista sociológico, tal autonomia tem que ter expressão social, ou seja, deve comportar um processo em incessante construção, ou, nos termos do preâmbulo dos Estatutos da I Associação Internacional dos Trabalhadores, “A emancipação dos trabalhadores é obra dos próprios trabalhadores.”
De modo semelhante, Paulo Freire, em vários de seus escritos, traz à tona sua incessante defesa da condição de protagonistas das classes populares. É o que sucede, por exemplo, desde Educação como prática da Liberdade, em que, ao considerar a passagem de uma “sociedade fechada” a uma sociedade radicalmente democrática, Paulo Freire entende que, enquanto na primeira, a condição do povo restringe-se a uma “imersão”, um estado de apatia, de passividade, característica de meros espectadores, outra é a característica de uma sociedade alternativa, na medida em que
Se na imersão [o povo] era puramente espectador do processo, na emersão descruza os braços e renuncia à expectação, exige a ingerência. Já não se satisfaz em assistir. Quer participar. (FREIRE, 1971, p. 55).
Não menos enfático, a esse mesmo propósito, Freire se pronuncia, em outra sua obra capital:
Dado que en la síntesis cultural no existen los invasores, ni tampoco existen los modelos impuestos, los actores faciendo de la realidad el objeto de su análisis crítico al que no dicotomizan de la acción, se van insertando como sujetos en el proceso histórico. (FREIRE, 1973, pp. 239-240)
Tanto do ponto de vista filosófico quanto do ponto de vista sociológico, Freire tratou de explicitar bem essa condição de protagonismo da transformação social, a que são historicamente chamados os que se sentem comprometidos com a transformação social, ou seja, os deserdados e seus aliados:
Do ponto de vista filosófico, um ser que é ontologicamente “para si” se “transforma” em ser “para outro” quando, perdendo o direito de decidir, não opta e segue as prescrições de outro ser. Suas relações com este outro são as relações que Hegel chama “consciência servil para a consciência senhorial”. A sociedade cujo centro de decisão não se encontra em seu ser, mas no ser de outra, se comporta em relação a esta como um “ser para outro”. (FREIRE, EM, 1999, p. 55).
Por outro lado, para Freire, sendo o homem um “ser do trabalho e da transformação do mundo”, sua condição característica há de ser a de “um agente social”, um sujeito dessa transformação, que, no entanto, não é obra de alguns iluminados, mas do conjunto dos e das que, livre e conscientemente, se fazem sujeitos dessa mudança:
A mudança não é trabalho exclusivo de alguns homens, mas dos homens que a escolhem. O trabalhador social tem que lembrar a estes homens que são tão sujeitos como ele do processo da transformação. E se nas circunstâncias – determinadas – já mencionadas neste estudo, em que a estrutura social vem dificultando a transformação dos homens em sujeitos, seu papel não é o de reforçar o estado de objeto em que se encontram, achando que podem assim ser sujeitos, mas problematizar-lhes este estado. (FREIRE, 1999, p. 52).
Omnilateralidade ou perpectiva da totalidade –
Eis um outro aspecto de confluência observável entre a proposta marxiana e a formulação de Paulo Freire, tanto no que diz respeito ao caráter da transformação social almejada, como no que concerne ao tipo de formação requerido.
Em Marx, essa inquietação aparece, desde suas obras de juventude, como nos Manuscritos Econômico-Filosóficos:
O homem – por mais que seja um indivíduo particular, e justamente é sua particularidade que faz dele um indivíduo e um ser social individual efetivo – é, na mesma medida, a totalidade, a totalidade ideal, o modo de existência subjetivo da sociedade pensada e sentida para si, do mesmo modo que também na efetividade ele existe tanto como intuição e gozo efetivo do modo de existência social, tanto como uma totalidade de exteriorização da vida humana. (MARX, 1976, p. 16).
Nele, o ser humano é entendido como uma unidade que comporta dimensões distintas e organicamente relacionadas, unidade gestada no útero da sociedade, da qual é expressão e sujeito, razão pela qual sua dimensão coletiva não apaga, antes completa, sua singularidade. Característica que implica o entendimento do ser humano como um ser complexo, como uma malha de relações, cuja formação integral está condicionada pelo tipo de sociabilidade de que seja protagonista ou objeto.
Na sociedade capitalista, ou em qualquer sociedade de classes, o ser humano se vê impedido de realizar-se em todas as suas dimensões, na medida em que “O homem necessitado, carregado de preocupações, não tem senso para o mais belo espetáculo.” Situação compreensível, posto que “O sentido prisioneiro da grosseira necessidade prática, tem apenas um sentido limitado. O homem que morre de fome não existe a forma humana da comida”. Para Marx, com efeito,
É somente graças à riqueza objetivamente desenvolvida da essência humana que a riqueza da sensibilidade humana subjetiva é em parte cultivada, e é em parte criada que o ouvido torna-se musical, que o olho percebe a beleza da forma, em resumo, que os sentidos tornam-se capazes do gozo humano, tornam-se sentidos que se confirmam como forças essenciais humanas. Pois não só os cinco sentidos, como também os sentidos chamados espirituais, os sentidos práticos (vontade, amor, etc.), em uma palavra, o sentido humano, a humanidade dos sentidos, constituem-se unicamente mediante o modo de existência de seu objeto, mediante a natureza humanizada. A formação dos cinco sentidos é um trabalho de toda a história universal até nossos dias. (MARX, 1976, p. 18).
Paulo Freire, por sua vez, aborda essa questão – tanto direta quanto indiretamente – sob diferentes aspectos. Aqui destaco dois: um que se remete mais expressamente ao modo de construir essa nova sociedade, e outro atinente ao perfil dos protagonistas dessa sociabilidade alternativa.
No primeiro caso, é freqüente a discussão sobre se se trataria de uma construção feita em etapas, ou se, antes, de um processo de mudança estrutural, a ser perseguido em sua inteireza, não comportando uma lógica etapista. Nesse sentido, ao abordar a condição e as tarefas do trabalhador social, como um dos agentes de transformação social, Freire assim se pronuncia:
Outro aspecto fundamental que não pode passar despercebido do trabalhador social é que a estrutura social, que deve ser mudada, é uma totalidade. O objetivo da ação da mudança é a superação de uma totalidade por outra, onde a nova não continue apresentando a contradição estabilidade-mudança que, como dissemos, constitui a “duração” da estrutura social, e também o histórico-social. (FREIRE, EM, 1999, p. 52).
O segundo ponto a destacar diz respeito ao perfil de protagonista desse processo, a propósito do que ele se estende em algumas de suas obras, a exemplo do que afirma em Educação e Mudança:
O papel do trabalhador social que opta pela mudança, num momento histórico como este, não é propriamente o de criar mitos contraditórios, mas o de problematizar a realidade aos homens, proporcionar a desmitificação da realidade mitificada. Aos mitos, que são os elementos básicos da ação manipuladora dos indivíduos, deve responder, não com a manipulação da manipulação que realizam os que estão contra a mudança. Isto não é possível pela simples razão de que a manipulação é instrumento da desumanização – consciente ou não, pouco importa -, enquanto a tarefa de mudar, de quem está com a mudança, só se justifica em sua finalidade humanista. É impossível servir a esta finalidade, com instrumentos e meios que servem à outra. (FREIRE, 1999, p. 54).
Proposta revolucionária – Também aqui se observa um ponto de confluência entre Karl Marx e Paulo Freire, ou mais precisamente: a influência do primeiro sobre o segundo. Com efeito, sob vários aspectos, é possível observar-se a incidência em Paulo Freire de elementos significativos da proposta de transformação social à qual Marx dedicou o melhor de sua existência.
Proposta que aparece distintamente nomeada em ambos. Em Marx, cai melhor o conceito de “Revolução” ou transformação revolucionária, nova sociedade, ou até simplesmente “Verändern” (mudar, transformar), como aparece nos termos da Tese 11, contrapondo-se a uma tendência meramente interpretativa que apontava na proposta filosófica de Feuerbach.
Embora sob a forma de retificações ou ajustes, que aparecem com o nome de “Crítica ao Programa de Gotha”, Marx enfatiza bem o horizonte e os caminhos desse horizonte.
De modo semelhante, os termos podem variar nas obras de Freire – e variam -, mas permanecem claros os aspectos nucleares desse horizonte: em ambos se trata de uma nova sociedade contraposta, no conteúdo e na forma, ao Capitalismo. Proposta que cuida de destronar esse modelo, sem dar trégua ao esforço de perseguir e cultivar valores característicos dessa nova sociedade, tais como a erradicação da dominação de classe, bem como dos mecanismos que lhe dão sustentação, ao mesmo tempo em que se trata de tecer novas relações humanas e sociais, alternativas ao modelo até então vigente, em favor de valores tais como a emancipação, a solidariedade, a partilha, o respeito à autodeterminação dos povos, a cooperação entre os povos, enfim, a garantia das condições sócio-históricas favoráveis ao ininterrupto processo o de humanização que permita a todos os Humanos o desenvolvimento de suas mais diferentes potencialidades.
A questão de fundo, pois, não está em apenas substituir um velho programa adequado ao interesse do colonizador por um novo, mas em estabelecer a coerência entre a sociedade reconstruindo-se revolucionariamente e a educação como um todo que a ela deve servir. E a teoria do conhecimento que esta deve pôr em prática implica num método de conhecimento antagônico ao da educação colonial. (FREIRE, CGB, 1978, p. 123).
Percebe-se entre ambos uma significativa afinidade quanto ao horizonte, ao rumo do processo de humanização, que em ambos se apresenta marcado pela esperança ou pela confiança de um destino generoso para o Gênero Humano.
No caso de Marx, sua aposta numa sociedade alternativa estava lastreada em toda uma vida de buscas incessantes, feitas em circunstâncias permeadas de penúria econômica (dele e de sua família) e de enormes sacrifícios e perseguições (foi expulso de mais de um país...). Toda uma vida a serviço da causa da Classe Trabalhadora, orientada, de um lado, a um combate sem trégua aos fundamentos da sociedade capitalista, seja do ponto de vista intelectual (haja vista o significado de sua obra da qual é emblemático, por exemplo, O Capital), seja do ponto de vista de sua práxis (sua efetiva e relevante participação e acompanhamento frutuoso das grandes iniciativas internacionalistas de combate à burguesia e de emancipação da Classe Trabalhadora (cf. o Manifesto do Partido Comunista, sua participação relevante na fundação da Associação Internacional dos Trabalhadores, entre outros exemplos).
Semelhante horizonte também se propunha Paulo Freire, ao seu estilo, atribuindo a sua proposta nomes diversos – inclusive o de “síntese cultural” (cf. Pedagogia do Oprimido), ao apostar profundamente no processo de libertação dos seres humanos – tanto dos oprimidos como dos opressores -, cabendo aos primeiros a iniciativa de, ao se libertarem, libertarem também seus opressores de sua desumanização: “Aí reside a grande tarefa humanística e histórica dos oprimidos: libertar-se a si mesmos e libertar os opressores.” (ib., p. 39).
Desafio enorme, por certo, cujo exitoso enfrentamento demanda o cotidiano aprendizado de ser Sujeito, de passar progressivamente da mera condição de espectador ou de simples tarefeiro à condição de protagonista, até porque
Na medida em que o homem perde a capacidade de optar e vai sendo submetido a opções alheias que o minimizam e as suas decisões, porque resultadas de comandos estranhos, já não se integra. Acomoda-se. Ajusta-se. O homem integrado é o homem Sujeito. (EPL, 1989:42).
Tarefa fundamental posta aos seres humanos como garantia de uma existência digna para todos, pois não lhes interessa um tipo de vida qualquer, já que “Existir ultrapassa viver porque é mais do que estar no mundo. É estar nele e como ele. (...) Transcender, discernir,dialogar (comunicar e participar) são exclusividades do existir.” (EPL, 1989:40-41).
Num como no outro, há diferenças, sim, há distintos acentos, não apenas por conta de seus respectivos contextos histórico-culturais. Também por conta de sua formação e de suas opções filosóficas. No essencial, porém, prevalecem as afinidades.
No caso de Freire, por exemplo, até por conta do seu contexto sócio-histórico, aparecem mais enfáticos certos pontos. A exemplo, no caso de Freire, de sua consciência cósmica, o ser humano tendo lugar distinto no mundo. Distinto, por exemplo, de uma plantinha, que se satisfaz com terra, água, calor... O que implica reforçar o entendimento seu, acima assinalado, de que qualquer tipo de vida não basta aos seres humanos, enquanto seres vocacionados a uma vida em plenitude, chamados a um desenvolvimento omnilateral de suas potencialidades, vocacionados para a Liberdade.
E quem se aventura pelos caminhos da Liberdade, mantendo sólidos os princípios e a coerência, não foge às situações embaraçosas, encara os conflitos do cotidiano, como aconteceu tantas vezes a Paulo Freire. Ainda há pouco tempo atrás, vivia-se na América Latina e no Brasil, enfrentava-se uma forte pressão imperialista para que se aceitasse a ALCA, creio valer a pena rememorar a posição de Paulo Freire, por exemplo, num episódio similar, também carregado de tensão e de conflitos, que ele nos conta a propósito das pressões do Governo dos Estados Unidos sobre o Governo brasileiro, para que este “engolisse” de qualquer jeito o “pacote” da USAID, voltado para o ensino superior. O então ministro da educação, Darcy Ribeiro, o havia convidado a representar o Governo brasileiro, junto à SUDENE, em companhia de Nailton Santos (irmão de Milton Santos), nas negociações sobre o projeto norte-americano da USAID para o Nordeste, lembrando que tal incumbência “não rendia dinheiro algum, mas que era politicamente muito importante”:
“Numa dessas reuniões, disse ao representante americano que aquilo não era uma doação, mas sim um empréstimo, e que, se o dinheiro fosse dado, ainda poderia entender que se fizessem exigências, mas que elas eram inconcebíveis num empréstimo. E completei que, de qualquer forma, como doação ou empréstimo, as exigências eram inaceitáveis; que o Brasil tinha que ter autonomia para decidir, por exemplo, onde os seus professores iriam estudar e que móveis construir.” (FREIRE, APPH, I, 1987: 23).
Aprender com o povo simples, o que implica não se distanciar do seu dia-a-dia
- A fidelidade à causa de libertação dos trabalhadores e dos deserdados da Terra constitui um outro elemento a merecer destaque na vida e na obra de Marx, de que também Paulo Freire dá testemunho, com motivações possivelmente diferenciadas, sob um ou outro aspecto, mas ambos demonstrando coerência para além de seus discursos.
Dificilmente ambos teriam amargado reiteradas expulsões e exílios (expulso da França, da Bélgica, Marx teve que curtir duro exílio na Inglaterra... Freire, por sua vez, teve que se refugiar na Bolívia, no Chile, e viver longo tempo como exilado na Suíça), caso tivessem se restringido a meras palavras. Ontem como hoje, as tiranias de qualquer tipo não se espantam tanto com ameaças verbais (desde que não as percebam acompanhadas de gestos). Por várias vezes, discursos até inflamados de mera verborragia ou “palavras de ordem” vazias foram assimiladas, tão logo essas forças se certificavam de sua fragilidade, manifesta por arrependidas retratações ou delações colhidas sem maior constrangimento. O que, porém, não “engolem” é alguém cujo discurso venha carregado de força práxica. Marx e Freire aqui incidem efetivamente.
Na “Crítica ao Programa de Gotha”, por exemplo, pode-se perceber o empenho de Marx pela coerência e pela efetiva defesa dos interesses da Classe Trabalhadora. A esse propósito, um dos elementos a merecer destaque pode-se observar em sua “Carta de Acompanhamento a W. Bracke”, datada de 5 de maio de 1875 (já não se tratando, portanto, de uma peça correspondente às suas obras de juventude – “Frühschriften”), na qual, a despeito de toda a carga de trabalho, combinada com extrema precariedade de sua saúde , criticava, com argumentos convincentes, diversos aspectos de fundo e de natureza tática inscritos no “Programa de Gotha”, que seria proposto e debatido, por ocasião de importante Assembléia dos militantes do Partido Operário Alemão. Por uma ótica pragmática, além das limitações graves que o cercavam, naquela ocasião, Marx poderia simplesmente ter preferido contemporizar, a ninguém desagradando, e contentar-se com a imagem do seu passado...
Atitude também observável em Freire, em diferentes momentos de seu percurso existencial, do qual podemos destacar várias situações e exemplos emblemáticos, a partir mesmo do que Freire entendia como qualidades revolucionárias: “a coerência entre a palavra e o ato” (FREIRE, 1971 p. 232), “a palavra é também para ser ´vista´, envolvida no gesto necessário” (FREIRE, 1978, p. 63), de modo a refletir-se concretamente em seu com-viver, como um “relatório” de suas experiências concretamente vivenciadas, relatadas em seus seus livros (cf. FREIRE, 1978, p. 173). Noutra circunstância, essa prática revolucionária assume o nome de compromisso solidariedade com os deserdados:“O verdadeiro compromisso é a solidariedade, e não a solidariedade com os que negam o compromisso solidário, mas com aqueles que, na situação concreta, se encontram convertidos em ´coisas´ ”. (FREIRE, 1999, p. 19).
Tendo em vista que as mudanças efetivas pelas quais Marx e, também sob sua influência, Freire sempre se bateram, são obra coletiva, na qual as camadas populares são chamadas a exercer seu insubstituível protagonismo, eles nunca aceitaram abrir mão de suas convicções. Freire, por exemplo, afirmava que “só nas bases populares e com elas, poderíamos realizar algo de sério e autêntico para elas.” (FREIRE, ACL, 1989, p. 102).
Isso demandava e demanda presença lá onde o povo está, lá “onde se encontram os homens concretos” (EM, 1999:19). Por isso, sempre lemos em seus textos reiterados exemplos de seu relacionamento com as gentes, seja no campo, seja na cidade, pois ele entendia que “O compromisso, próprio da existência humana, só existe no engajamento com a realidade, de cujas ´águas´ os homens verdadeiramente comprometidos ficam ´molhados´, ensopados.” (FREIRE, EM, 1989:19).
Recorrentes são as passagens e episódios por ele narrados atestando a freqüência com que se fazia presente no meio das gentes, nas favelas, nos assentamentos, nas escolas públicas, nos mais diferentes espaços populares, no Brasil, na América do Sul, na América Central, na África...
Ao contrário dos proclamados “representantes” do povo (não apenas no legislativo e no executivo!), que vivem uma vida distante, a anos-luz, das condições do cotidiano do povo, Paulo Freire, desde suas frutuosas atividades em Recife, fazia questão de freqüentar o povo. Até em seus poemas, tais reminiscências lhe eram constantes, a exemplo do que se observa numa carta-poema dedicada a Recife, a qual, graças à sua modesta auto-avaliação como poeta, por muito tempo foi mantida inédita. Poema que resultou das reminiscências de sua terra, quando, no exílio, recebe uma revista sobre capitais brasileiras. Ele passa a ler pacientemente sobre distintas capitais,
(...) Até que cheguei ao Recife. E fiquei parado. Obviamente aí as lembranças e as saudades eram muito maiores. Me revi dando aulas numa favela, nas esquinas, revi meus namoros de infância e adolescência, o começo de minha vida com a Elza, os filhos nascendo. Revi tudo isso durante a tarde toda.. (FREIRE, APPH, I, 1987:124).
Reminiscências que inspiraram a construção do poema “Recife Sempre”, que ele hesitava em publicar por injustificados receios de sua rigorosa auto-avaliação. Nesse belo poema, Paulo Freire se sente tocado pela figura do vendedor de “doce de banana e goiaba”, a quem Paulo Freire também chama de “homem-brinquedo”::
Foi preciso que o tempo passasse
que muitas chuvas chovessem
que muito sol se pusesse
que muitas marés subissem e baixassem
que muitos meninos nascessem
que muitos homens morressem
que muitas madrugadas viessem
que muitas árvores florescessem
que muitas Marias amassem
que muitos campos secassem
que muita dor existisse
que muitos olhos tristonhos eu visse
para que entendesse
que aquele homem-brinquedo
era o irmão esmagado
era o irmão explorado
era o irmão ofendido
o irmão oprimido
proibido de ser.” (FREIRE, APPH, I, 1987:155).
Em recente artigo, inventivamente elaborado em forma de uma carta-resposta às indagações do seu amigo Sírio Velasco, acerca de uma eventual dimensão ecológica em Paulo Freire, o Prof. Balduíno Andreola recupera essa também relevante faceta de Paulo Freire. Rastreando seu percurso bibliográfico, ele recolhe passagens tocantes, de profundo encantamento com as árvores, com os rios e outros elementos da Mãe-Natureza, além de suas vivas inquietações com as formas de poluição do nosso Planeta. E Andreola o fez, recorrendo, não apenas a vários dos livros de Paulo Freire, nas também a outros escritos seus, a exemplo do trecho que extrai de uma entrevista de Paulo Freire, em 1978, concedida a O Pasquim (n. 462), em que Paulo Freire declara:
O que eu quero dizer é que sou, existencialmente, um bicho universal. Mas só sou porque sou profundamente recifense, profundamente brasileiro. E por isso comecei a ser profundamente latino-americano e depois mundial. Eu sou capaz de querer bem, enormemente, qualquer povo. (FREIRE, apud ANDREOLA, 2007, p. 37).
Considerações sinópticas
Identificar raízes do sentir-decidir-agir freireano tem sido uma empreitada cada vez mais presente na literatura corrente acerca de Paulo Freire, sob os mais distintos ângulos, inclusive aqueles por vezes avaliados como pouco impróprios.
Partindo do reconhecimento da multiplicidade de sujeitos – individuais e coletivos – com quem, direta ou expressamente Paulo Freire exercitou diálogo, ou de quem resultou algum tipo de influência, tratamos, de nossa parte, de centrar a atenção na incidência na obra e no agir de Paulo Freire de significativos elementos do legado de Karl Marx.
Nesse exercício de rastreamento, confluências relevantes foram apontadas, das quais podem ser sublinhados elementos tais como a natureza relacional dos Humanos, seu relevante condicionamento sócio-histórico, que acompanha todo o processo de humanização. Processo que se revela condicionado a contextos e estruturas que se apresentam ora como óbices, ora como favoráveis ao processo de emancipação de homens, mulheres e povos.
Afinidades também observáveis do ponto de vista de sua visão de sociedade, na medida em que tanto para Marx quanto para Freire, o modo de produção capitalista – bem assim toda sociedade de classes – revela-se radicalmente incompatível com a realização dos sonhos mais generosos da condição humana, razão por que impõe-se transformá-la desde a raiz.
Não se trata apenas de, primeiro, destruir as estruturas de organização social, para, somente após, cuidar-se de construir a nova sociedade. Importa, desde já, emitir sinais convincentes de alternatividade, nas macro e nas micro-relações do dia-a-dia, ao modo do “Mostra-me o caráter do teu dia-a-dia, e dir-te-ei com que tipo de sociabilidade estás comprometido.”
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Postado Por Rolando Lazarte
“Eu sou um intelectual que não tem medo de dizer que eu amo as gentes e amo o mundo. E é porque amo as pessoas e amo o mundo, que eu brigo para que a justiça social se implante antes da caridade.” (Paulo Freire)
Um dos maiores pensadores contemporâneos, de reconhecida projeção nacional e internacional, Paulo Freire continua a exercer considerável influência na atualidade. Por diferentes motivações e por trilhas diversas, o já amplo reconhecimento de sua densa trajetória existencial e de seu legado biobibliográfico pode ser atestado por significativas categorias ou elementos conceituais por ele cunhados ou criativamente ressignificados/reelaborados, sem, porém, lesar suas respectivas fontes inspiradoras.
A despeito da variação semântica com que são por tantos e tantas utilizados, de autoria de Paulo Freire ou resultantes de efetiva incorporação, emergem de seus escritos categorias, expressões ou conceitos que passaram a ser tratados como traços bem característicos de seu legado. Trata-se de categorias, expressões ou conceitos tais como: círculo de cultura, diálogo, conscientização, educação libertadora, pedagogia do oprimido, educador-educando, educando-educador, palavras geradoras, universo vocabular, mundo da natureza, mundo da cultura, leitura de classe, ser inconcluso, ser para si, ser relacional, ser que se vai tornando, vocação ontológica de sujeito, ser de esperança, inédito viável, práxis pedagógica, entre outros. Conceitos que, por certo, dão respaldo a títulos que lhe são atribuídos, a exemplo de Andarilho da Utopia , Andarilho da Esperança ou, como também o chamo, Tecelão da Utopia , entre outros.
Com efeito, resulta difícil (re)visitar o legado biobibliográfico de Paulo Freire, sem que isso reacenda, sob múltiplos aspectos e circunstâncias, sua condição de trabalhador cultural, de “plantador de idéias” , de agente de uma Utopia libertadora, a tecer, por onde andasse, fios grávidos de Utopia, mantendo acesos os mais generosos sonhos de uma sociedade alternativa, construída na justiça e na solidariedade, o que sempre o motivou a brigar “para que a justiça social se implante antes da caridade.”, conforme depoimento seu, recolhido no CD “O Andarilho da Utopia”, produzido pela Rádio Nederland, em parceria com instituições brasileiras.
Por outro lado, por força inclusive do caráter ético-político de sua proposta pedagógica - e aqui distinguindo-se, não raro, da praxe da Academia -, as categorias centrais por ele trabalhadas não se esgotam no plano estritamente acadêmico. Rompem seus muros, desbordam da Academia, ganham a rua, alcançam a casa, impregnam as relações do Cotidiano.
A propósito da dimensão ética que atravessa o percurso existencial e o legado bibliográfico de Paulo Freire, importa ter presente o juízo avaliativo que Enrique Dussel expressa acerca de Paulo Freire, ao contrapor o “exercício da razão ético-crítica” freireana – relevante fundamento da Ética da Libertação - à mera elucubração discursiva da ética de mercado, que se contenta com recursos cognitivos como solução para os embates éticos. (cf. DUSSEL, 2000).
Um percurso pelas principais produções de Paulo Freire permite-nos perceber, a partir mesmo das citações nelas encontradas, a variedade de autores e mesmo de correntes de pensamento com que ele estabeleceu diálogo. Como assinalou Paulo Rosas, a justo título, contemplando especialmente sua atuação intelectual correspondente ao “período do Recife”: “À medida que Freire aprofundava e, de uma certa maneira, diversificava suas reflexões, ele diversificava também suas fontes” (ROSAS, 2004, p. 25).
Aí também reside sua marca de homem do Diálogo. Não costumava limitar seu exercício de interlocução a um círculo restrito de autores, ou a uma única corrente de pensamento. Preferia, também nisso, portar-se como andarilho dialogante que, partindo de seu quadro próprio de referência, não hesitava em estender sua tenda dialogante a distintas grades de formulação teórica.
Sempre, porém, o fazia, a partir de situações concretas. Diferentemente de uma posição academicista, cujos representantes costumam superestimar infindáveis exercícios de elucubração, tomados pela sede de “conhecer por conhecer”, a perspectiva freireana sempre recorre à teoria, a partir das indagações e desafios suscitados pelo chão do cotidiano, em busca de pistas ou elementos de respostas em relação aos desafios colocados pelas situações concretas.
É bem assim que vai, por exemplo, a Hegel como mediação para um entendimento mais consistente a respeito de consciência independente/consciência dependente (cf. FREIRE, 1973:46), quanto aos desafios do efervescente contexto histórico de mobilização característico daquele período, inclusive por parte dos estudantes. Impelido, igualmente, pela indignação contra a avareza dos privilegiados, que têm olhos exclusivamente para os próprios interesses, Freire recorre a Erich Fromm, em busca de entendimento dessa postura “necrófila” dos opressores, para quem “la persona humana son apenas ellos. Los otros son ´objeto, cosas´” (...) “La humanización les pertenece. La de los otros, aquella de sus contrarios aparece como subversión.” (ib., p. 58/59)
Simone de Beauvoir e Jean Paul Sartre constituem outros interlocutores de Freire, graças à sua contribuição ao esforço de desvelamento da consciência de opressores e oprimidos. Em relação aos primeiros, Freire cita uma afirmação percuciente de Simone de Beauvoir, ao sustentar que o que pretendem os opressores “es transformar la mentalidad de los oprimidos y no la situación que los oprime.” (ib., p. 79), enquanto em Sartre busca inspiração para a formulação do seu conhecido conceito de consciência bancária, que, em Sartre, corresponde à “concepción ´digestiva` o ´alimenticia` del saber” (FREIRE, 1973:83).
Como se percebe, a rememoração de fontes do pensamento freireano bem como o exercício de interlocução com pensadores de ontem e de hoje já foram, direta ou indiretamente, tomados como objeto de estudo por vários autores, entre os quais aqui destacamos Beisiegel (1992) e Rosas (2004). Diferentes correntes e autores são, com efeito, apontados por estes e por outros como interlocutores de Paulo Freire.
A exemplo desses, recorre a tantas e tantos autores – Karl Jaspers, Karl Mannheim, Reinhold Niebuhr, Zevedei Barbu, C. Wright Mills, Oliveira Viana, Teilhard de Chardin, Tristão de Athaíde, Simone Weil, Emmanuel Mounier, Gilberto Freyre, Caio Prado Júnior, Anísio Teixeira, Fernando de Azevedo, Pierre Furter, Frantz Fanon, Albert Memmi, Hans Freyer, Álvaro Vieira Pinto, Celso Furtado, Karel Kosik, Gunard Myrdal, Maria Edy Ferreira, Lucien Goldman, Jomard Muniz de Brito, Jarbas Maciel, Celso de Rui Beisiegel, Francisco Weffort, Fernando García (“hondureño, alumno nuestro”), entre outros e outras mais freqüentes em suas primeiras obras.
E, a justo título ou não, não falta quem, sobretudo nas últimas décadas, nele reconheça afinidades relevantes com figuras dos mais distintos (ou distantes?) perfis político-filosóficos.
A respeito desse registro, muita coisa pode ser dita. De minha parte, entendo que, no percurso de uma vasta produção bibliográfica, dificilmente não se identifique, aqui, ali, algum traço de afinidade pontual, inclusive entre autores e autoras globalmente dissidentes, nas teses essenciais. O que parece preocupante é o esforço por vezes constatado de se tentar converter traços pontuais de afinidade efetivamente observáveis em elementos suficientes de uma afinidade filosófico-política substantiva. Sobre isso, tomando inclusive Freire como alvo de analogia com outros autores (tanto de modo convincente quanto de modo duvidoso), vários autores se têm pronunciado com argumentos, ao meu ver, consistentes. (cf., por ex., DUSSEL, 2000; ANDREOLA, 2007; ARAÚJO FREIRE, 2007; PITANO, 2007).
Dussel, por exemplo, elenca uma lista de autores cuja abordagem entende pouco afinada com sua concepção de Ética, enquanto avalia como próxima da sua a concepção de Ética trabalhada por Paulo Freire. Com relação aos que considera distanciados de sua concepção de Ética, reputa-os portadores de uma postura ora cognitivista, ora consciencialistas, ora individualistas, ora ingênuos. Nesse elenco inclui nomes como os de Habermas e Piaget, entre outros. (cf. DUSSEL, 2000, pp. 428-435).
Tomando como referências fundamentais a Casalli e a Dussel, Ana Maria Araújo Freire, por sua vez, segue a mesma linha de argumentação do segundo, ao afirmar que:
a natureza ético-humanista de Paulo responde por um peculiar modo do seu pensar sistematizado, infelizmente tão negado quanto repudiado pelos academicistas e pelos adeptos da ética do discurso e a ética do mercado (ARAÚJO FREIRE, 2007, p.178)
Com comprovada experiência de atenta observação a distintos exercícios de analogia, empreendidos por diferentes pesquisadores, em suas teses e dissertações (de algumas das quais tendo sido Examinador), confrontando Freire a diversos outros autores (Kant, Hegel, Malinowski, Peaget, Mounier, Foucault, Morin, Habermas...), Balduíno Andreola, em instigante entrevista a esse respeito, e tomando quatro critérios de classificação que denominou jocosamente de “aproximações antibióticas” (mera contraposição entre atualizados X ultrapassados); “aproximações biotônicas” (pretendendo consolidar a imagem freireana, tomando de empréstimo reforço em autores considerados de maior aceitação acadêmica); “aproximações simbiótico-idealistas” (vêem-se apenas afinidades); e “aproximações simbiótico-dialéticas” (reconhecem-se afinidades e distanciamentos). No caso das aproximações ou distanciamentos entre Freire e Habermas, eis o que ele afirma:
as aproximações simbiótico-dialéticas, como a que opera Jaime Zitkoski[22], em sua tese de doutorado, são as que consideram que existem, sim, afinidades, convergências e complementariedades, entre Freire e Harbemas, mas analisam também as diferenças, algumas pequenas, outras maiores, e, finalmente, as profundas e inconciliáveis, entre uma obra individual de um autor, Habermas, construída a partir de uma visão eurocêntrica, e a de Freire, que elabora a Pedagogia do oprimido, no diálogo com os sujeitos históricos, os oprimidos ou “condenados da Terra”, segundo Fanon[23], da América Latina e do mundo, no contexto de um processo continental de libertação, violentamente reprimido e sufocado pelos regimes militares, e que tem suas expressões teóricas numa Filosofia da Libertação, na Teologia da Libertação[24], numa Pedagogia da Libertação, na Psicoterapia do Oprimido de Alfredo Moffat[25], no Teatro do Oprimido de Augusto Boal[26], e numa gama imensa de obras que teorizam a práxis histórica da Educação Popular e dos movimentos populares, entre os quais se distingue o MST. (cf. Entrevista concedida por Balduíno Andreola, in http://amaivos.uol.com.br/templates/amaivos/amaivos07/noticia/noticia.asp?cod_noticia=8773&cod_canal=41 ).
Ainda consoante à mesma linha de interpretação, Sandro de Castro Pitano, ao destacar três diferenças relevantes entre Freire e Habermas (uma de natureza contextual, outra de caráter teórico e uma terceira de corte metodológico), assinala:
A ação comunicativa pressupondo materializar-se entre sujeitos competentes do ponto de vista moral, cognitivo e lingüístico, revela um formalismo inócuo diante das contradições sociais do nosso contexto. A proposta habermasiana concebe, não o sujeito da Educação Popular, como em Freire, mas um ser humano genérico (...)
E conclui, na mesma página: “Talvez as novas leituras exijam bem mais um retorno aos referenciais teóricos tradicionais, resgatando conceitos, do que a assunção de novos modelos ou teorias” (PITANO, 2008, p. 133).
Como se percebe, é amplo o leque de autores e correntes tomados, a justo título ou não, como interlocutores ou como referências fontais do pensamento de Freire, aqui nos propomos acentuar apenas duas referências fontais, sem deixarmos de reconhecer a incidência em Paulo Freire de outras correntes de pensamento e respectivos representantes.
Entendendo que essas duas correntes correspondem, de modo mais representativo, a suas referências axiais: iniciamos por uma breve incursão pela corrente do Cristianismo, o Cristianismo Social, tal como assumido pela Teologia da Libertação. Em seguida, empreendemos um breve percurso analógico pelo legado marxiano, lido sob um ângulo humanista.
1. Incidência do pensamento social cristão nos escritos freireanos
Com relação à incidência em Paulo Freire de relevantes traços do Cristianismo, sob a ótica da Teologia da Libertação, vale ressaltar que se trata provavelmente da corrente mais enraizada, não apenas em seu legado bibliográfico, mas em todo o seu percurso existencial.
Não é por acaso que reconhecidas figuras da Teologia da Libertação não hesitam em associá-lo aos teólogos da libertação. A despeito de não ter sido esta a área a que tenha consagrado o melhor de seus escritos, Paulo Freire contribui com a formulação da Teologia da Libertação, por meio de sua proposta ético-filosófica e política.
Como se sabe, a Teologia da Libertação, seguindo o famoso “Método Ver-Julgar-Agir do Movimento da Ação Católica, inclusive em sua versão especializada (JAC, JEC, JIC, JOC, JUC, ACO), arranca da análise da realidade social (o “Ver” ou “mediação sócio-analítica”) para partir, em seguida, para o exame especificamente teológico, feito à luz dos textos fundantes do Cristianismo (o “Julgar”), do que resultam pistas práticas de caráter político-pastoral (“Agir”). O aporte freireano incide principalmente no exercício da “mediação sócio-analítica”.
Eis por que teólogos como Clodovis Boff, um dos principais teóricos da Teologia da Libertação, num dos seus escritos relevantes, no qual também propõe uma apresentação da Teologia da Libertação e de seus principais representantes, nos distintos continentes, não hesita em incluir na lista dos principais representantes desta mesma corrente no Brasil, ao lado de Rubem Alves, Leonardo Boff, Eduardo Hoornaert e J. B. Libânio, “P. Freire, pedagogo, agora em Genebra - simpatizante da TdL”. (cf. BOFF, 1978, p. 187).
Aliás, quanto a isso, Clodovis Boff não terá sido o único, nem o primeiro. É acompanhado ou seguido por outros pensadores, de diferentes áreas, inclusive da Filosofia, como é o caso de Roger Garaudy que, em artigo datado de 1978, a partir do próprio título (“A pedagogia de Paulo Freire e os teólogos da libertação”), já acenava também para tal relação. Relação igualmente atestada pelos laços que ligavam Paulo Freire a figuras como James Cone, um dos representantes mais respeitados da Teologia Negra da Libertação, de quem Paulo Freire chegou a prefaciar, ainda nos inícios dos anos 70, a edição argentina do seu famoso livro A Black Theology of Liberation, ocasião em que Paulo Freire justifica seu entusiasmo com a obra recém-lançada:
É que a “black theology”, de que Cone é uma das melhores expressões nos Estados Unidos, se identifica, indiscutivelmente, com a “teologia da libertação” que hoje floresce na América Latina. O profetismo de ambas não significa somente um falar em nome dos que se encontram proibidos de fazê-lo, mas, sobretudo, em lutar lado a lado com eles para que, transformando revolucionariamente a sociedade que os reduz ao silêncio, possam dizer, efetivamente, sua palavra. (FREIRE, 1984, p. 129).
Sem abrir mão do reforço desses testemunhos, o propósito axial deste item é o de, mediante uma breve incursão por seus principais textos, assinalar efetivas afinidades – umas mais, outras menos explícitas - entre elementos de textos fundantes do Cristianismo e o sentir-decidir-agir de Paulo Freire. Então, vejamos alguns casos.
- A Liberdade como vocação ontológica do Ser Humano – A esse respeito Paulo Freire reúne um amplo leque de afirmações, em seus distintos livros. Preocupado com o drama da opressão como realidade presente, não perdia o horizonte fundamental do Ser Humano, o de incessante busca de Liberdade, convencido que estava de que “Humanización o deshumanización, dentro de la Historia, en un contexto real, concreto, son posibilidades de los hombres como seres inconclusos y concientes de su inconclusión. Sin embargo si ambas son posibilidades, nos parece que solo la primera responde a lo que denominamos vocaación de los hombres.” (FREIRE, PO, 1971, p. 38).
Isto porque para Freire: “Existir ultrapassa viver porque é mais do que estar no mundo. É estar nele e com ele.” (FREIRE, EPL, 1971, p. 40, Nota 2). Uma plantinha, por exemplo, tem assegurada na Terra sua forma de vida, que é distinta da do Ser Humano. Para este não interessa qualquer forma de vida. Viver não é simplesmente vegetar. Como consciência do Universo, o Ser Humano, para se realizar, vai além de uma forma de vida vegetativa. A vocação do Ser Humano é para a Liberdade, que coincide com vida plena.
Precisamente aqui tem lugar na bibliografia freireana a inspiração cristã. O Reino que Jesus veio anunciar, e do qual Ele dá testemunho, é um Reino de Liberdade: “Para a Liberdade é que vocês foram chamados, irmãos”, afirma o apóstolo Paulo às comunidades da região da Galácia, na Ásia Menor (Gl 5, 13). Um Reino onde reina a Paz como obra da Justiça, e por isso, onde há vida plena: “Eu vim para que todos tenham vida e vida em abundância.” (Jo 10, 10). Ainda a propósito da centralidade que a Liberdade ocupa na experiência do Seguimento de Jesus, Comblin sustenta, a justo título, que “A vocação para a liberdade é o núcleo central do evangelho e o ponto de partida da nova humanidade.” (COMBLIN, 1998:12).
O ser humano como um ser inconcluso que vai se fazendo – Eis outro elemento recorrente nos escritos freireanos. Dos primeiros aos últimos. Se, por exemplo, em meados dos anos 60, ele sustentava que “Só na convicção do inacabado pode encontrar o homem e as sociedades o sentido da esperança. Quem se julga acabado está morto.” (FREIRE, EPL, 1971, p. 53), afirmação semelhante Paulo Freire vai reiterar, num dos seus últimos escritos, nos seguintes termos: “Onde há vida há inacabamento. (...) “entre homens e mulheres o inacabamento tornou-se consciente” (FREIRE, 1977, p. 55). Sinaliza a condição histórica, e portanto mutável, do Ser Humano, no que se aproxima de figuras como Simone de Beauvoir, ao sustentar a dimensão perfectível de mulheres e homens, que vão se tornando no processo histórico. Daí o sentido da esperança acima mencionado por Freire.
Também aí se observa uma herança cristã, cujos textos - do Antigo e do Novo Testamento - alertam ao Ser Humano de sua natureza finita, limitada, perfectível. Muito conhecido é o alerta pronunciado nas cerimônias da Quarta-Feira de Cinzas, na liturgia católica: “Lembra-te que és pó e em pó hás de tornar-te”, numa referência explícita ao livro do Gênesis (Gn 3, 19).
É a consciência de seus limites que permite ao Ser Humano apostar, com humildade, em suas potencialidades, nos dons que lhe foram confiados. É, com efeito, fundamental, no espírito da Bíblia, o exercício da consciência dos próprios limites, como condição para avançar a águas mais profundas, pois “o que é fraco no mundo Deus escolheu para confundir o que é forte”, afirma Paulo aos cristãos de Corinto (1 Cor 1, 27).
No Seguimento de Jesus, as grandes coisas vêm das pequenas: “[O Reino de Deus] é como um grão de mostarda: quando é semeado na terra, é a menor de todas as sementes; mas, depois de semeada, cresce e torna-se a maior de todas as hortaliças”. (Mc 4, 31-32).
Ter consciência dos próprios limites é condição para o exercício da auto-avaliação que passa, entre outros requisitos, pelo reconhecimento dos próprios descaminhos, a exemplo da lição que Jesus dá aos que se insurgiam contra a mulher flagrada em adultério: “Quem não tiver pecado, atire a primeira pedra.” (Jo 8, 7). Condição para o exercício de auto-crítica: “Hipócrita, tira primeiro a trave do teu olho, e então enxergarás direito para tirar o cisco do olho do teu irmão.” (Mt 7, 5).
O ser humano como expressão de uma experiência dialógica em movimento - A dimensão relacional é muito forte na experiência humana. E manifesta-se mais eficazmente por meio da ação dialógica, uma das categorias centrais do legado freireano. Na Pedagogia de Paulo Freire, ninguém se educa isoladamente, até porque a ação educativa, sendo um processo social, revela-se necessariamente coletiva, comunitária, sem que isso implique prescindir-se da individualidade, da dimensão pessoal dos protagonistas. A fecunda experiência dos círculos de cultura é também emblemática, a esse respeito.
São vastas e recorrentes, a esse propósito, as referências diretas e indiretas, na obra de Paulo Freire. Nele, o exercício dialógico é condição de afirmação da ação intercultural, mais do que da mera multiculturalidade, como costuma lembrar João Francisco de Souza. (cf., por ex., SOUZA, 2004).
Essa posição freireana também encontra lastro de afinidade na experiência cristã, na ótica da Teologia da Libertação. O Deus de Jesus de Nazaré revela-se pela Aliança feita com o seu Povo. Aliança pela qual esse Povo é chamado a ser um povo de irmãos, de diferentes tribos e nações, tendo-O como único Deus. Este quer reunir os dispersos, e o mecanismo do qual lança mão é o chamamento ao diálogo, ao entendimento, ao respeito, à partilha, ao serviço, à reciprocidade, à solidariedade, à construção da unidade na diversidade. Ação dialógica que vai além do discurso, funda-se na prática entre iguais: “Sabeis que aqueles que vemos governar as nações as dominam e os seus grandes as tiranizam. Entre vós, não deverá ser assim: ao contrário, aquele que dentre vós quiser ser grande, seja o vosso servidor” (Mc 10, 42-43). Assim se tornaram conhecidas e apreciadas as antigas comunidades cristãs, tal como descritas no livro dos Atos dos Apóstolos: “Eles se mostravam assíduos ao ensinamento dos apóstolos e à comunhão fraterna, à partilha do pão e às orações. (...) Ninguém considerava seu o que possuía, mas tudo lhes era comum.” (At 2, 42; 4, 32).
Em Freire, a ação dialógica não correspondia a uma panacéia ou a um recurso incondicional. O diálogo se dá entre iguais e entre diferentes, tornando-se inviável entre antagônicos. Também em sua concepção de diálogo, ressoava o entendimento de que, por vezes, o diálogo fica obstaculizado, porque “Ninguém pode servir a dois senhores (...) Não podeis servir a Deus e ao dinheiro” (Mt 6, 24).
- A perspectiva dos condenados da Terra – Um dos fios condutores que perpassam toda a obra de Paulo Freire é sua intransigente defesa da causa dos deserdados, como protagonistas do processo de sua libertação. Para ele, com efeito,
No existe otro camino si no el de la práctica de una pedagogía liberadora, en que el liderazgo revolucionario, en vez de sobreponerse a los oprimidos y continuar manteniéndolos en el estado de “cosas”, establece con ellos una relación permanentemente dialógica. (FREIRE, 1973, p. 71).
Perspectiva que encontra forte respaldo de inspiração cristã, fartamente fundamentada na Bíblia, seja pela palavra dos profetas do Antigo Testamento, seja pelo claro compromisso de Jesus e de seus seguidores com a causa do oprimido, a exemplo do que se percebe numa passagem em que é próprio Jesus, ressoando a boa tradição profética de, por exemplo, Isaías 61, 1-9, quem explicita o essencial do seu Programa: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque Ele me ungiu para evangelizar os pobres, enviou-me para anunciar a libertação aos cativos, aos cegos a recuperação da vista, para restituir a liberdade aos oprimidos, para proclamar um ano de graça da parte do Senhor.” (Lc 4, 17-19).
Tal é a natureza desse compromisso do Cristianismo com a causa dos pobres, que um conhecido teólogo não hesita em afirmar:
A questão dos pobres não é apenas uma entre outras questões, não é apenas uma parte do problema da evangelização ao lado de muitas outras. É o único desafio único diante do qual todos os demais empalidecem.” (COMBLIN, 2002, p. 11).
Essas são algumas das marcas observáveis, de passagem, no que tange à incidência das fontes cristãs sobre o legado de Paulo Freire. Outras várias poderiam, igualmente, ser enfatizadas, tais como a sede de justiça de que os profetas são contundentes (Isaías, Jeremias, Amós, Oséias, Miquéias, entre outros), e de que estão repletas as páginas dos Evangelhos, a exemplo do famoso Sermão da Montanha, no início do capítulo 5 de Mateus.
A curiosidade epistemológica também tem inspiração bíblica, em vários textos. Basta lembrar a freqüência com que Jesus chama a atenção dos seus discípulos e discípulas para estarem atentos aos sinais dos tempos, buscando exercitar continuamente sua capacidade perceptiva (“Quem tiver ouvidos, ouça”(Mt 13, 9; Mc 4, 23).
Uma outra passagem emblemática nesse apelo bíblico ao exercício do discernimento encontra-se, por exemplo, no chamamento Paulino: “Examinai todas as coisas e retende o que é bom” (1 Ts 5, 21). Ainda é pertinente lembrar aqui o lugar que o discernimento, a sabedoria tem na cultura do Povo de Deus. É conhecida, a esse propósito, a aprovação de Deus à prece de Salomão por sabedoria: “já que não pediste nem riqueza, nem tesouro, nem glória, nem a vida dos teus inimigos, já que nem mesmo pediste vida longa, mas sabedoria e inteligência para julgar o meu povo sobre o qual te constituí rei, a sabedoria e a inteligência te são concedidas.” (2 Cr 1, 11-12).
Outros valores bíblicos também influenciaram, direta ou indiretamente, o legado freireano, tais como o compromisso ético, a dimensão docente e discente do ser humano, o chamamento a uma ação instituinte, na perspectiva da construção de uma nova sociedade, destacando-se aqui a relevância do protagonismo do conjunto dos membros da nova sociedade (em linguagem bíblica: do Povo de Deus).
2. Rastros marxianos na produção bibliográfica de Paulo Freire
Ora de modo mais explícito, ora em tom menos enfático, a presença de Marx também se faz presente na obra de Paulo de Paulo Freire. A seguir, buscamos rastrear tal incidência, que reputo mais forte em sua formação ético-política, depois da influência da fonte do Cristianismo, na ótica da Teologia da Libertação, reiterando o reconhecimento da incidência significativa em sua obra de outras correntes de pensamento.
Ainda que tal incidência se dê, por vezes, em relação a outros autores marxistas (aqui citaria um Antonio Gramsci, um Ernesto Che Guevara, por exemplo), nosso intento se restringe sobremaneira à influência ou à associação de traços do legado de Karl Marx na obra de Paulo Freire.
Os tópicos a seguir sublinhados acerca de tal incidência constituem apenas alguns exemplos. Outros ocorrem de modo implícito. Ainda assim, nem tanto, quando se trata de acentuar, em ambos, o caráter social da condição humana. Em Marx, isso é uma constante, ao longo de suas obras. A própria individualidade humana está fortemente condicionada à vida comunitária, que, aliás, lhe dá sentido e sustentação:
Uso da Dialética na análise das relações macro-sociais - Iniciamos pela influência da Dialética em seu legado, seja pela via hegeliana, seja principalmente pela influência marxiana, à medida que Freire, ao recorrer à Dialética, não o faz por simples exercício lógico ou como mero instrumental analítico, se bem que este expediente não estava descartado em sua apaixonada arte de redação. Também nisso reside um ponto comum entre Marx e Freire. Áquele não agradava o mero exercício do pensar pelo pensar, da lógica pela lógica. Se da Dialética se serviu, o fez como meio de encontrar pistas de transformação social.
É conhecida sua Tese 11, dedicada à fundamentação de sua oposição ao exercício filosófico proposto por Feuerbach e pela filosofia alemã da época: “Até hoje, outra coisa não fizeram os filósofos do que interpretar o mundo de diversas maneiras. Importa mesmo é transformá-lo.” Em incessante estado de busca de transformação da sociedade e dos valores então hegemônicos, tratou de recorrer à Dialética, como instrumento de reinvenção do mundo.
Eis por que um ponto axial da elaboração teórica de Marx reside no recurso à Dialética como instrumento a partir do qual seus argumentos encontravam ressonância no chão das relações sociais. Nesse sentido, velhos princípios remontando ao pré-socrático Heráclito, de que “Tudo está ligado a tudo” ou de que “Tudo muda” encontram em Marx (e em outros discípulos seus) um genial reelaborador, cuja grande contribuição não se restringia a ensaiar jogos de raciocínios teórico-abstratos, mas, antes, arrancava de sua ousadia de apreender e compreender movimentos concretos e complexos inscritos na tessitura das macro-relações sociais.
Sob vários aspectos, Freire percorre trilhas semelhantes. Disso dá testemunho, por exemplo, a forma como concebeu e implementou um dos seus trabalhos principais, Pedagogia do Oprimido. Escritas em Santiago, e datadas do outono de 1969, na condição de exilado fazia três anos, suas “Primeiras Palavras” que servem de introdução ao livro, oferecem elementos significativos. Um deles refere-se aos procedimentos metodológicos dos quais se valeu. Tem a ver com uma confluência de circunstâncias – antes do, e durante o exílio -, que ele observou criteriosamente, buscando identificar seus traços de ligação, bem como suas diferenças. Como se tornaria uma marca do seu procedimento de pesquisador, partiu de experiências concretas por ele vivenciadas, no Brasil e no exílio chileno.
Se se toma, igualmente, como outro exemplo emblemático, o roteiro que propõe já no primeiro capítulo desse mesmo livro, pode-se observar a clara incidência do instrumental dialético de análise, numa perspectiva de superação concreta das relações em jogo. Com efeito, após justificar a adoção da categoria “Pedagogia do Oprimido”, passa a analisar “a contradição opressores-oprimidos e sua superação”, partindo da “situação concreta” seja dos opressores, seja dos oprimidos, do que vai resultar uma de suas conclusões: “Ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho. Os homens se libertam em comunhão.”
Aqui se trata da construção da unidade dos oprimidos em luta contra os opressores, não em vista de uma mera inversão de posições (do tipo: quem era oprimido vira opressor, quem era opressor passa à condição de oprimido), mas para subverter a própria natureza da relação: trata-se de extinguir definitivamente a velha ordem, fazendo emergir uma nova sociabilidade, em que já não tenha lugar nem opressor nem oprimido, razão pela qual o objetivo consiste na superação da própria natureza da relação.
Esse procedimento de Freire não se limita a esse escrito. Ao longo de sua produção bibliográfica, observa-se que ele reedita tal prática analítica.
Adoção da prática como critério da verdade – Importa atentar, aqui, para uma feliz confluência das duas fontes de inspiração em tela. Tanto o Cristianismo como o Marxismo (ou, mais precisamente, a figura de Marx) assumem a comprovação da prática como critério da verdade. Por um lado, no caso do Cristianismo, são freqüentes as passagens do Novo Testamento denunciando como hipócritas as palavras destituídas de comprovação pela via da prática, dos gestos: “Nem todo aquele que diz: `Senhor, Senhor` entrará no Reino dos céus, mas sim, aquele que faz a vontade do meu Pai que está nos céus.” (Mt 7, 21).
Ainda nesse mesmo capítulo, há outras referências semelhantes, como a da admiração que o povo dos pobres nutria por Jesus de Nazaré, por conta de sua coerência entre discurso e prática. Poderíamos, ainda, citar a Carta de Tiago, que insiste em que “a fé sem obras é morta” (Tg 2, 17).
Por outro lado, no caso de Marx, desponta como uma das afirmações mais representativas o teor da Tese 2 contraposta ao pensamento de Feuerbach: “A questão de se atribuir ao pensamento humano uma verdade objetiva não é uma questão de teoria, mas uma questão prática. É na prática que o homem comprova a verdade.” (MARX-ENGELS, 1976, p. 1).
Ao longo dos escritos de Paulo Freire, mas igualmente no percurso de sua existência, são notórios os gestos e palavras, quanto ao peso extraordinário desse princípio práxico, representado pela coerência entre a fala e o gesto, bem expresso, por exemplo, nessa passagem de Pedagogia do Oprimido, após apontar o testemunho como constitutivo da ação revolucionária, em qualquer período histórico:
Entre los elementos constitutivos del testimonio, los cuales no varian históricamente, se cuenta la coherencia entre la palabra y el acto de quien testimonia, la osadía que lo lleva a enfrentar la existencia como un riesgo permanente, la radicalizaciónm y nunca la sectarización, de la opción realizada que conduce a la acción no sólo a quien testimonia sino a aquellos a quien da su testimonio... La valentía de amar que, creemos quedó claro, no significa la acomodación a un mundo injusto sino la transformación de este mundo para una creciente liberación de los hombres. (FREIRE, 1973, p. 232).
Essa é uma marca bem freireana – a coerência. Não pelo fato de que, ser inconcluso, não tenha agido eventualmente de modo incoerente, mas pelo cuidado e pela autovigilância que exercia, de modo a cultivar um discurso que correspondesse ao seu agir:
Até hoje, sem exceção, nenhum dos poucos livros que escrevi deixou de ser uma espécie de relatório, não burocrático, é certo, de experiências realizadas ou em realizando-se em momentos distintos da atividade político-pedagógica em que me acho engajado desde o começo de minha juventude.”), ousadia, radicalidade, valentia de amar, crença no povo. (CGB, p. 173).
Em Freire, o cultivo da coerência estava impregnado e era continuamente alimentado por uma dimensão ética tão densa, que, ao articular-se à dimensão política, a esta, em última instância, se sobrepunha:
Em lugar de converter-me ao centro e eventualmente ganhar o poder, como progressista prefiro abraçar a pedagogia democrática e, sem saber quando, com as classes populares alcançar o poder para reinventá-lo. (AsdM, p. 38).
Quem educa o educador? - Um dos muitos cuidados característicos de Paulo Freire como Pedagogo era o de situar toda ação educativa no contexto das relações sociais, como um processo social. Poucos, como ele, fizeram isso de forma tão explícita e recorrente: a compreensão da educação como um sub-sistema do sistema social.
Por sua vez, a ação educativa, compreendida como uma relação social, tinha lugar nos distintos espaços e tempos vivenciados pelos sujeitos (individuais e coletivos), não se restringindo ao espaço-tempo escolar, mas fazendo-se presente nos mais variados espaços vitais, e ainda com mais força nos processos educativos não-formais. A Educação Popular, lida na perspectiva freireana, aponta bem nessa direção.
Dentre vários pontos de sua contribuição específica a essa formulação, um diz respeito aos protagonistas desse processo. Aqui, se faz “dodiscência”, processo em virtude do qual docentes aprendem, enquanto ensinam; e discentes ensinam, enquanto aprendem. Nele, o aprender erige-se em experiência fundante do processo educacional, até porque
foi aprendendo socialmente que, historicamente, mulheres e homens descobriram que era possível ensinar. Foi assim, socialmente aprendendo, que ao longo dos tempos mulheres e homens perceberam que era possível – depois, preciso – trabalhar maneiras, caminhos, métodos de ensinar. Aprender precedeu ensinar ou, em outras palavras, ensinar se diluía na experiência realmente fundante de aprender. (cf. PA, p. 26).
Observa-se algum tipo de relação entre essa tese tão marcante do legado de Freire e a conhecida formulação de Marx, correspondente à Tese 3, contraposta a Feuerbach, de que, em matéria de educação, de aprendizado, ninguém – nem mesmo (ou principalmente?) quem se pretenda educador tarimbado – está suficientemente pronto para reverter as circunstâncias adversas:
A doutrina materialista da transformação das circunstâncias e da educação esquece que o homem é necessário para transformar as circunstâncias e que o próprio educador precisa ser educado. (MARX-ENGELS, 1976, p. 2).
Vários outros pontos da Pedagogia freireana encontram suporte ou inspiração, expressamente ou não, em formulações de Marx, a começar pela forte sensibilidade da ação histórica sobre as relações educacionais e outras atinentes ao processo de humanização. Nos diversos textos de Paulo Freire, a começar dos primeiros, seu senso de historicidade aflora à primeira vista.
Como não reconhecer, com efeito, alguma semelhança entre, de um lado, a atenção sistemática que Freire cultivava em relação ao contexto, à situação histórica concreta, e, por outro, a extraordinária força da historicidade nos escritos de Marx, como, por exemplo, nessa passagem da A Ideologia Alemã (produzida em parceria com Engels):
O mesmo modo como os indivíduos manifestam sua vida, reflete exatamente o que eles são. O que eles são coincide, portanto, com a sua produção, tanto com o que produzem, quanto com a maneira como produzem. (MARX e ENGELS, 1976, p. 15).
Ou, ainda mais claramente, nessa passagem de O Dezoito Brumário de Luiz Bonaparte, em que afirma:
Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem segundo a sua livre vontade, não a fazem sob circunstâncias de sua escolha, mas sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. (MARX, 1987, p. 15).
Contextualizar os fatos, as situações, as lutas e os desafios – eis o primeiro cuidado que também Freire costumava tomar. Basta, para tanto, conferir os roteiros de seus principais textos. Observe-se que, assim agindo, acena para a dupla influência aqui considerada: a de caráter cristão e a de perfil marxiano. Com relação à influência cristã, pelo menos sob a ótica da leitura da Teologia da Libertação, vale notar em seus escritos elementos da presença do famoso Método da Ação Católica especializada – o “Ver-Julgar-Agir” -, claro que com reelaboração ou outra roupagem adaptada ao campo de análise próprio das ciências sociais, especialmente o da Educação. Outro traço forte comum incidente em Marx e retomado por Freire, tem a ver com um processo humanizador do qual sejam sujeitos os próprios interessados: os oprimidos.
O protagonismo dos “de baixo” – De fato, tanto em um como no outro, este se apresenta como um elemento-chave de sua concepção de homem e de sociedade. Em Marx, isso aparece seguidamente, em algumas de suas obras. É o núcleo mais enfático de sua aposta na condição humana: seu caráter protagonista, de sujeito de sua história, de sujeito de sua emancipação, como vem bem sublinhado em tantas passagens, como
Um ser só se considera autônomo, quando é senhor de si mesmo, e só é senhor de si, quando deve a si mesmo seu próprio modo de existência. Um homem que vive graças a outro, se considera a si mesmo um ser dependente. (MARX, 1974, p. 20).
Eis por que, também do ponto de vista sociológico, tal autonomia tem que ter expressão social, ou seja, deve comportar um processo em incessante construção, ou, nos termos do preâmbulo dos Estatutos da I Associação Internacional dos Trabalhadores, “A emancipação dos trabalhadores é obra dos próprios trabalhadores.”
De modo semelhante, Paulo Freire, em vários de seus escritos, traz à tona sua incessante defesa da condição de protagonistas das classes populares. É o que sucede, por exemplo, desde Educação como prática da Liberdade, em que, ao considerar a passagem de uma “sociedade fechada” a uma sociedade radicalmente democrática, Paulo Freire entende que, enquanto na primeira, a condição do povo restringe-se a uma “imersão”, um estado de apatia, de passividade, característica de meros espectadores, outra é a característica de uma sociedade alternativa, na medida em que
Se na imersão [o povo] era puramente espectador do processo, na emersão descruza os braços e renuncia à expectação, exige a ingerência. Já não se satisfaz em assistir. Quer participar. (FREIRE, 1971, p. 55).
Não menos enfático, a esse mesmo propósito, Freire se pronuncia, em outra sua obra capital:
Dado que en la síntesis cultural no existen los invasores, ni tampoco existen los modelos impuestos, los actores faciendo de la realidad el objeto de su análisis crítico al que no dicotomizan de la acción, se van insertando como sujetos en el proceso histórico. (FREIRE, 1973, pp. 239-240)
Tanto do ponto de vista filosófico quanto do ponto de vista sociológico, Freire tratou de explicitar bem essa condição de protagonismo da transformação social, a que são historicamente chamados os que se sentem comprometidos com a transformação social, ou seja, os deserdados e seus aliados:
Do ponto de vista filosófico, um ser que é ontologicamente “para si” se “transforma” em ser “para outro” quando, perdendo o direito de decidir, não opta e segue as prescrições de outro ser. Suas relações com este outro são as relações que Hegel chama “consciência servil para a consciência senhorial”. A sociedade cujo centro de decisão não se encontra em seu ser, mas no ser de outra, se comporta em relação a esta como um “ser para outro”. (FREIRE, EM, 1999, p. 55).
Por outro lado, para Freire, sendo o homem um “ser do trabalho e da transformação do mundo”, sua condição característica há de ser a de “um agente social”, um sujeito dessa transformação, que, no entanto, não é obra de alguns iluminados, mas do conjunto dos e das que, livre e conscientemente, se fazem sujeitos dessa mudança:
A mudança não é trabalho exclusivo de alguns homens, mas dos homens que a escolhem. O trabalhador social tem que lembrar a estes homens que são tão sujeitos como ele do processo da transformação. E se nas circunstâncias – determinadas – já mencionadas neste estudo, em que a estrutura social vem dificultando a transformação dos homens em sujeitos, seu papel não é o de reforçar o estado de objeto em que se encontram, achando que podem assim ser sujeitos, mas problematizar-lhes este estado. (FREIRE, 1999, p. 52).
Omnilateralidade ou perpectiva da totalidade –
Eis um outro aspecto de confluência observável entre a proposta marxiana e a formulação de Paulo Freire, tanto no que diz respeito ao caráter da transformação social almejada, como no que concerne ao tipo de formação requerido.
Em Marx, essa inquietação aparece, desde suas obras de juventude, como nos Manuscritos Econômico-Filosóficos:
O homem – por mais que seja um indivíduo particular, e justamente é sua particularidade que faz dele um indivíduo e um ser social individual efetivo – é, na mesma medida, a totalidade, a totalidade ideal, o modo de existência subjetivo da sociedade pensada e sentida para si, do mesmo modo que também na efetividade ele existe tanto como intuição e gozo efetivo do modo de existência social, tanto como uma totalidade de exteriorização da vida humana. (MARX, 1976, p. 16).
Nele, o ser humano é entendido como uma unidade que comporta dimensões distintas e organicamente relacionadas, unidade gestada no útero da sociedade, da qual é expressão e sujeito, razão pela qual sua dimensão coletiva não apaga, antes completa, sua singularidade. Característica que implica o entendimento do ser humano como um ser complexo, como uma malha de relações, cuja formação integral está condicionada pelo tipo de sociabilidade de que seja protagonista ou objeto.
Na sociedade capitalista, ou em qualquer sociedade de classes, o ser humano se vê impedido de realizar-se em todas as suas dimensões, na medida em que “O homem necessitado, carregado de preocupações, não tem senso para o mais belo espetáculo.” Situação compreensível, posto que “O sentido prisioneiro da grosseira necessidade prática, tem apenas um sentido limitado. O homem que morre de fome não existe a forma humana da comida”. Para Marx, com efeito,
É somente graças à riqueza objetivamente desenvolvida da essência humana que a riqueza da sensibilidade humana subjetiva é em parte cultivada, e é em parte criada que o ouvido torna-se musical, que o olho percebe a beleza da forma, em resumo, que os sentidos tornam-se capazes do gozo humano, tornam-se sentidos que se confirmam como forças essenciais humanas. Pois não só os cinco sentidos, como também os sentidos chamados espirituais, os sentidos práticos (vontade, amor, etc.), em uma palavra, o sentido humano, a humanidade dos sentidos, constituem-se unicamente mediante o modo de existência de seu objeto, mediante a natureza humanizada. A formação dos cinco sentidos é um trabalho de toda a história universal até nossos dias. (MARX, 1976, p. 18).
Paulo Freire, por sua vez, aborda essa questão – tanto direta quanto indiretamente – sob diferentes aspectos. Aqui destaco dois: um que se remete mais expressamente ao modo de construir essa nova sociedade, e outro atinente ao perfil dos protagonistas dessa sociabilidade alternativa.
No primeiro caso, é freqüente a discussão sobre se se trataria de uma construção feita em etapas, ou se, antes, de um processo de mudança estrutural, a ser perseguido em sua inteireza, não comportando uma lógica etapista. Nesse sentido, ao abordar a condição e as tarefas do trabalhador social, como um dos agentes de transformação social, Freire assim se pronuncia:
Outro aspecto fundamental que não pode passar despercebido do trabalhador social é que a estrutura social, que deve ser mudada, é uma totalidade. O objetivo da ação da mudança é a superação de uma totalidade por outra, onde a nova não continue apresentando a contradição estabilidade-mudança que, como dissemos, constitui a “duração” da estrutura social, e também o histórico-social. (FREIRE, EM, 1999, p. 52).
O segundo ponto a destacar diz respeito ao perfil de protagonista desse processo, a propósito do que ele se estende em algumas de suas obras, a exemplo do que afirma em Educação e Mudança:
O papel do trabalhador social que opta pela mudança, num momento histórico como este, não é propriamente o de criar mitos contraditórios, mas o de problematizar a realidade aos homens, proporcionar a desmitificação da realidade mitificada. Aos mitos, que são os elementos básicos da ação manipuladora dos indivíduos, deve responder, não com a manipulação da manipulação que realizam os que estão contra a mudança. Isto não é possível pela simples razão de que a manipulação é instrumento da desumanização – consciente ou não, pouco importa -, enquanto a tarefa de mudar, de quem está com a mudança, só se justifica em sua finalidade humanista. É impossível servir a esta finalidade, com instrumentos e meios que servem à outra. (FREIRE, 1999, p. 54).
Proposta revolucionária – Também aqui se observa um ponto de confluência entre Karl Marx e Paulo Freire, ou mais precisamente: a influência do primeiro sobre o segundo. Com efeito, sob vários aspectos, é possível observar-se a incidência em Paulo Freire de elementos significativos da proposta de transformação social à qual Marx dedicou o melhor de sua existência.
Proposta que aparece distintamente nomeada em ambos. Em Marx, cai melhor o conceito de “Revolução” ou transformação revolucionária, nova sociedade, ou até simplesmente “Verändern” (mudar, transformar), como aparece nos termos da Tese 11, contrapondo-se a uma tendência meramente interpretativa que apontava na proposta filosófica de Feuerbach.
Embora sob a forma de retificações ou ajustes, que aparecem com o nome de “Crítica ao Programa de Gotha”, Marx enfatiza bem o horizonte e os caminhos desse horizonte.
De modo semelhante, os termos podem variar nas obras de Freire – e variam -, mas permanecem claros os aspectos nucleares desse horizonte: em ambos se trata de uma nova sociedade contraposta, no conteúdo e na forma, ao Capitalismo. Proposta que cuida de destronar esse modelo, sem dar trégua ao esforço de perseguir e cultivar valores característicos dessa nova sociedade, tais como a erradicação da dominação de classe, bem como dos mecanismos que lhe dão sustentação, ao mesmo tempo em que se trata de tecer novas relações humanas e sociais, alternativas ao modelo até então vigente, em favor de valores tais como a emancipação, a solidariedade, a partilha, o respeito à autodeterminação dos povos, a cooperação entre os povos, enfim, a garantia das condições sócio-históricas favoráveis ao ininterrupto processo o de humanização que permita a todos os Humanos o desenvolvimento de suas mais diferentes potencialidades.
A questão de fundo, pois, não está em apenas substituir um velho programa adequado ao interesse do colonizador por um novo, mas em estabelecer a coerência entre a sociedade reconstruindo-se revolucionariamente e a educação como um todo que a ela deve servir. E a teoria do conhecimento que esta deve pôr em prática implica num método de conhecimento antagônico ao da educação colonial. (FREIRE, CGB, 1978, p. 123).
Percebe-se entre ambos uma significativa afinidade quanto ao horizonte, ao rumo do processo de humanização, que em ambos se apresenta marcado pela esperança ou pela confiança de um destino generoso para o Gênero Humano.
No caso de Marx, sua aposta numa sociedade alternativa estava lastreada em toda uma vida de buscas incessantes, feitas em circunstâncias permeadas de penúria econômica (dele e de sua família) e de enormes sacrifícios e perseguições (foi expulso de mais de um país...). Toda uma vida a serviço da causa da Classe Trabalhadora, orientada, de um lado, a um combate sem trégua aos fundamentos da sociedade capitalista, seja do ponto de vista intelectual (haja vista o significado de sua obra da qual é emblemático, por exemplo, O Capital), seja do ponto de vista de sua práxis (sua efetiva e relevante participação e acompanhamento frutuoso das grandes iniciativas internacionalistas de combate à burguesia e de emancipação da Classe Trabalhadora (cf. o Manifesto do Partido Comunista, sua participação relevante na fundação da Associação Internacional dos Trabalhadores, entre outros exemplos).
Semelhante horizonte também se propunha Paulo Freire, ao seu estilo, atribuindo a sua proposta nomes diversos – inclusive o de “síntese cultural” (cf. Pedagogia do Oprimido), ao apostar profundamente no processo de libertação dos seres humanos – tanto dos oprimidos como dos opressores -, cabendo aos primeiros a iniciativa de, ao se libertarem, libertarem também seus opressores de sua desumanização: “Aí reside a grande tarefa humanística e histórica dos oprimidos: libertar-se a si mesmos e libertar os opressores.” (ib., p. 39).
Desafio enorme, por certo, cujo exitoso enfrentamento demanda o cotidiano aprendizado de ser Sujeito, de passar progressivamente da mera condição de espectador ou de simples tarefeiro à condição de protagonista, até porque
Na medida em que o homem perde a capacidade de optar e vai sendo submetido a opções alheias que o minimizam e as suas decisões, porque resultadas de comandos estranhos, já não se integra. Acomoda-se. Ajusta-se. O homem integrado é o homem Sujeito. (EPL, 1989:42).
Tarefa fundamental posta aos seres humanos como garantia de uma existência digna para todos, pois não lhes interessa um tipo de vida qualquer, já que “Existir ultrapassa viver porque é mais do que estar no mundo. É estar nele e como ele. (...) Transcender, discernir,dialogar (comunicar e participar) são exclusividades do existir.” (EPL, 1989:40-41).
Num como no outro, há diferenças, sim, há distintos acentos, não apenas por conta de seus respectivos contextos histórico-culturais. Também por conta de sua formação e de suas opções filosóficas. No essencial, porém, prevalecem as afinidades.
No caso de Freire, por exemplo, até por conta do seu contexto sócio-histórico, aparecem mais enfáticos certos pontos. A exemplo, no caso de Freire, de sua consciência cósmica, o ser humano tendo lugar distinto no mundo. Distinto, por exemplo, de uma plantinha, que se satisfaz com terra, água, calor... O que implica reforçar o entendimento seu, acima assinalado, de que qualquer tipo de vida não basta aos seres humanos, enquanto seres vocacionados a uma vida em plenitude, chamados a um desenvolvimento omnilateral de suas potencialidades, vocacionados para a Liberdade.
E quem se aventura pelos caminhos da Liberdade, mantendo sólidos os princípios e a coerência, não foge às situações embaraçosas, encara os conflitos do cotidiano, como aconteceu tantas vezes a Paulo Freire. Ainda há pouco tempo atrás, vivia-se na América Latina e no Brasil, enfrentava-se uma forte pressão imperialista para que se aceitasse a ALCA, creio valer a pena rememorar a posição de Paulo Freire, por exemplo, num episódio similar, também carregado de tensão e de conflitos, que ele nos conta a propósito das pressões do Governo dos Estados Unidos sobre o Governo brasileiro, para que este “engolisse” de qualquer jeito o “pacote” da USAID, voltado para o ensino superior. O então ministro da educação, Darcy Ribeiro, o havia convidado a representar o Governo brasileiro, junto à SUDENE, em companhia de Nailton Santos (irmão de Milton Santos), nas negociações sobre o projeto norte-americano da USAID para o Nordeste, lembrando que tal incumbência “não rendia dinheiro algum, mas que era politicamente muito importante”:
“Numa dessas reuniões, disse ao representante americano que aquilo não era uma doação, mas sim um empréstimo, e que, se o dinheiro fosse dado, ainda poderia entender que se fizessem exigências, mas que elas eram inconcebíveis num empréstimo. E completei que, de qualquer forma, como doação ou empréstimo, as exigências eram inaceitáveis; que o Brasil tinha que ter autonomia para decidir, por exemplo, onde os seus professores iriam estudar e que móveis construir.” (FREIRE, APPH, I, 1987: 23).
Aprender com o povo simples, o que implica não se distanciar do seu dia-a-dia
- A fidelidade à causa de libertação dos trabalhadores e dos deserdados da Terra constitui um outro elemento a merecer destaque na vida e na obra de Marx, de que também Paulo Freire dá testemunho, com motivações possivelmente diferenciadas, sob um ou outro aspecto, mas ambos demonstrando coerência para além de seus discursos.
Dificilmente ambos teriam amargado reiteradas expulsões e exílios (expulso da França, da Bélgica, Marx teve que curtir duro exílio na Inglaterra... Freire, por sua vez, teve que se refugiar na Bolívia, no Chile, e viver longo tempo como exilado na Suíça), caso tivessem se restringido a meras palavras. Ontem como hoje, as tiranias de qualquer tipo não se espantam tanto com ameaças verbais (desde que não as percebam acompanhadas de gestos). Por várias vezes, discursos até inflamados de mera verborragia ou “palavras de ordem” vazias foram assimiladas, tão logo essas forças se certificavam de sua fragilidade, manifesta por arrependidas retratações ou delações colhidas sem maior constrangimento. O que, porém, não “engolem” é alguém cujo discurso venha carregado de força práxica. Marx e Freire aqui incidem efetivamente.
Na “Crítica ao Programa de Gotha”, por exemplo, pode-se perceber o empenho de Marx pela coerência e pela efetiva defesa dos interesses da Classe Trabalhadora. A esse propósito, um dos elementos a merecer destaque pode-se observar em sua “Carta de Acompanhamento a W. Bracke”, datada de 5 de maio de 1875 (já não se tratando, portanto, de uma peça correspondente às suas obras de juventude – “Frühschriften”), na qual, a despeito de toda a carga de trabalho, combinada com extrema precariedade de sua saúde , criticava, com argumentos convincentes, diversos aspectos de fundo e de natureza tática inscritos no “Programa de Gotha”, que seria proposto e debatido, por ocasião de importante Assembléia dos militantes do Partido Operário Alemão. Por uma ótica pragmática, além das limitações graves que o cercavam, naquela ocasião, Marx poderia simplesmente ter preferido contemporizar, a ninguém desagradando, e contentar-se com a imagem do seu passado...
Atitude também observável em Freire, em diferentes momentos de seu percurso existencial, do qual podemos destacar várias situações e exemplos emblemáticos, a partir mesmo do que Freire entendia como qualidades revolucionárias: “a coerência entre a palavra e o ato” (FREIRE, 1971 p. 232), “a palavra é também para ser ´vista´, envolvida no gesto necessário” (FREIRE, 1978, p. 63), de modo a refletir-se concretamente em seu com-viver, como um “relatório” de suas experiências concretamente vivenciadas, relatadas em seus seus livros (cf. FREIRE, 1978, p. 173). Noutra circunstância, essa prática revolucionária assume o nome de compromisso solidariedade com os deserdados:“O verdadeiro compromisso é a solidariedade, e não a solidariedade com os que negam o compromisso solidário, mas com aqueles que, na situação concreta, se encontram convertidos em ´coisas´ ”. (FREIRE, 1999, p. 19).
Tendo em vista que as mudanças efetivas pelas quais Marx e, também sob sua influência, Freire sempre se bateram, são obra coletiva, na qual as camadas populares são chamadas a exercer seu insubstituível protagonismo, eles nunca aceitaram abrir mão de suas convicções. Freire, por exemplo, afirmava que “só nas bases populares e com elas, poderíamos realizar algo de sério e autêntico para elas.” (FREIRE, ACL, 1989, p. 102).
Isso demandava e demanda presença lá onde o povo está, lá “onde se encontram os homens concretos” (EM, 1999:19). Por isso, sempre lemos em seus textos reiterados exemplos de seu relacionamento com as gentes, seja no campo, seja na cidade, pois ele entendia que “O compromisso, próprio da existência humana, só existe no engajamento com a realidade, de cujas ´águas´ os homens verdadeiramente comprometidos ficam ´molhados´, ensopados.” (FREIRE, EM, 1989:19).
Recorrentes são as passagens e episódios por ele narrados atestando a freqüência com que se fazia presente no meio das gentes, nas favelas, nos assentamentos, nas escolas públicas, nos mais diferentes espaços populares, no Brasil, na América do Sul, na América Central, na África...
Ao contrário dos proclamados “representantes” do povo (não apenas no legislativo e no executivo!), que vivem uma vida distante, a anos-luz, das condições do cotidiano do povo, Paulo Freire, desde suas frutuosas atividades em Recife, fazia questão de freqüentar o povo. Até em seus poemas, tais reminiscências lhe eram constantes, a exemplo do que se observa numa carta-poema dedicada a Recife, a qual, graças à sua modesta auto-avaliação como poeta, por muito tempo foi mantida inédita. Poema que resultou das reminiscências de sua terra, quando, no exílio, recebe uma revista sobre capitais brasileiras. Ele passa a ler pacientemente sobre distintas capitais,
(...) Até que cheguei ao Recife. E fiquei parado. Obviamente aí as lembranças e as saudades eram muito maiores. Me revi dando aulas numa favela, nas esquinas, revi meus namoros de infância e adolescência, o começo de minha vida com a Elza, os filhos nascendo. Revi tudo isso durante a tarde toda.. (FREIRE, APPH, I, 1987:124).
Reminiscências que inspiraram a construção do poema “Recife Sempre”, que ele hesitava em publicar por injustificados receios de sua rigorosa auto-avaliação. Nesse belo poema, Paulo Freire se sente tocado pela figura do vendedor de “doce de banana e goiaba”, a quem Paulo Freire também chama de “homem-brinquedo”::
Foi preciso que o tempo passasse
que muitas chuvas chovessem
que muito sol se pusesse
que muitas marés subissem e baixassem
que muitos meninos nascessem
que muitos homens morressem
que muitas madrugadas viessem
que muitas árvores florescessem
que muitas Marias amassem
que muitos campos secassem
que muita dor existisse
que muitos olhos tristonhos eu visse
para que entendesse
que aquele homem-brinquedo
era o irmão esmagado
era o irmão explorado
era o irmão ofendido
o irmão oprimido
proibido de ser.” (FREIRE, APPH, I, 1987:155).
Em recente artigo, inventivamente elaborado em forma de uma carta-resposta às indagações do seu amigo Sírio Velasco, acerca de uma eventual dimensão ecológica em Paulo Freire, o Prof. Balduíno Andreola recupera essa também relevante faceta de Paulo Freire. Rastreando seu percurso bibliográfico, ele recolhe passagens tocantes, de profundo encantamento com as árvores, com os rios e outros elementos da Mãe-Natureza, além de suas vivas inquietações com as formas de poluição do nosso Planeta. E Andreola o fez, recorrendo, não apenas a vários dos livros de Paulo Freire, nas também a outros escritos seus, a exemplo do trecho que extrai de uma entrevista de Paulo Freire, em 1978, concedida a O Pasquim (n. 462), em que Paulo Freire declara:
O que eu quero dizer é que sou, existencialmente, um bicho universal. Mas só sou porque sou profundamente recifense, profundamente brasileiro. E por isso comecei a ser profundamente latino-americano e depois mundial. Eu sou capaz de querer bem, enormemente, qualquer povo. (FREIRE, apud ANDREOLA, 2007, p. 37).
Considerações sinópticas
Identificar raízes do sentir-decidir-agir freireano tem sido uma empreitada cada vez mais presente na literatura corrente acerca de Paulo Freire, sob os mais distintos ângulos, inclusive aqueles por vezes avaliados como pouco impróprios.
Partindo do reconhecimento da multiplicidade de sujeitos – individuais e coletivos – com quem, direta ou expressamente Paulo Freire exercitou diálogo, ou de quem resultou algum tipo de influência, tratamos, de nossa parte, de centrar a atenção na incidência na obra e no agir de Paulo Freire de significativos elementos do legado de Karl Marx.
Nesse exercício de rastreamento, confluências relevantes foram apontadas, das quais podem ser sublinhados elementos tais como a natureza relacional dos Humanos, seu relevante condicionamento sócio-histórico, que acompanha todo o processo de humanização. Processo que se revela condicionado a contextos e estruturas que se apresentam ora como óbices, ora como favoráveis ao processo de emancipação de homens, mulheres e povos.
Afinidades também observáveis do ponto de vista de sua visão de sociedade, na medida em que tanto para Marx quanto para Freire, o modo de produção capitalista – bem assim toda sociedade de classes – revela-se radicalmente incompatível com a realização dos sonhos mais generosos da condição humana, razão por que impõe-se transformá-la desde a raiz.
Não se trata apenas de, primeiro, destruir as estruturas de organização social, para, somente após, cuidar-se de construir a nova sociedade. Importa, desde já, emitir sinais convincentes de alternatividade, nas macro e nas micro-relações do dia-a-dia, ao modo do “Mostra-me o caráter do teu dia-a-dia, e dir-te-ei com que tipo de sociabilidade estás comprometido.”
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Postado Por Rolando Lazarte
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