Entrevista publicada no Jornal Do Commercio em 27-10-2003
Dom Antônio Fragoso deu muito trabalho aos militares. Esse paraibano de Teixeira, compulsoriamente aposentado em João Pessoa, aos 83 anos, foi um dos expoentes da ala radical-progressista da Igreja Católica. Um ardoroso pregador da Teologia da Libertação, que infernizou a vida dos militares latino-americanos nos anos de chumbo das décadas 60, 70 e 80. A visão sobre o Golpe de 64 mudou na ótica, mas não na oposição intransigente: o que era uma quebra de fidelidade à Constituição e ao presidente João Goulart, na visão de hoje foi um Golpe Militar, inspirado pela bipolaridade no mundo: o capitalismo americano e o comunismo soviético.
“As elites conservadoras tinham medo do acesso de lideranças populares ao Poder, e não do risco do comunismo no Brasil, mas se utilizaram desse instrumento para liquidar o projeto de governo popular”, interpreta o religioso, que por 34 anos comandou a diocese de Crateús, no sertão do Ceará. Dom Fragoso diz que duas décadas de ditadura deixatram uma herança de alienação política para as gerações de jovens até hoje. “Os jovens daquele tempo pagaram um alto preço, tão grande que silenciou a paixão política nos jovens de hoje”, disse o bispo a universitários da Universidade Rural de Pernambuco, em palestra sobre 1964, semana passada.
Quase 40 anos depois de Golpe de 64, dom Fragoso mantém-se indignado e irredutível em suas posições, que levaram os militares a lhe ficharem como socialista agitador. Organizador de pobres e desassistidos camponeses em sindicatos e cooperativas, dom Fragoso enfrentou a ira, a provocação e a campanha de oposição dos latifundiários do Crateús.
Defensor da idéia de que o Governo Lula esclareça os crimes, aponte e puna os autores de torturas e mortes, durante o regime militar, dom Fragoso argumenta que “crimes contra a dignidade humana não podem prescrever”.
JORNAL DO COMMERCIO - 31 de março de 1964. Passados quase 40 anos, como pode ser analisado o Golpe de 64? Mudou a sua visão em relação à que tinha naquela época e ao longo do regime militar?
DOM ANTÔNIO FRAGOSO - Em 1964, apesar da confusão para a análise dos acontecimentos, eu via a chamada “Revolução” como um desrespeito dos militares ao juramento de fidelidade à Constituição e ao presidente da República, como um sinal de medo das Forças Armadas (e das lideranças conservadoras) diante dos “movimentos populares”, da possibilidade de acesso ao poder de lideranças dos meios populares, de ameaça ao Capitalismo. O combate ao Comunismo não era o móvel principal da “Revolução”, mas um instrumento fácil de manejar para cativar as lideranças conservadoras e as massas populares ainda não articuladas. Hoje, 40 anos depois, estou vendo a “Revolução de 1964” como um “Golpe Militar”, inspirado na bipolaridade: a civilização capitalista e cristã, sob a hegemonia dos Estados Unidos, versus a civilização materialista e atéia, sob a hegemonia da então União Soviética.
JC – O que o leva a esta conclusão?
DOM FRAGOSO – Na Escola Superior de Guerra foram preparados, em nível de pós-graduação, os quadros que conduziram o “Golpe Militar”. Eram quadros civis e militares. A chamada “Doutrina de Segurança Nacional”, talvez subproduto do “War College”, dizia que a nação não era o povo, mas a elite no Poder. Evidentemente, a elite militar, pois as Forças Armadas não tinham confiança nos políticos civis. Recuando 40 anos, confirma-se em mim a certeza de que as elites conservadoras tinham medo, não do Comunismo, mas dos meios populares.
JC – Quais as repercussões de 64 sobre os dias de hoje? Ficaram herança, influência ou reflexos
daqueles 20 anos?
DOM FRAGOSO – As repercussões de 64 sobre os dias de hoje me aparecem como um preço muito alto que a nação está pagando. O “anticomunismo” negativo, que não tinha nenhum projeto de um Brasil de todos, foi utilizado como arma de justificação da repressão. Mas, pareciam tão evidentes as distorções, que o povo perdeu a confiança em políticas públicas conduzidas pelos militares. O Golpe foi sepultado! Quase ninguém mais festeja 64. Porém, a experiência coletiva suscitou novas expectativas, que se articulam e buscam expressão política em movimentos sociais.
JC – Em recente palestra para estudantes da UFRPE, o senhor destacou que os jovens daquele tempo “pagaram um alto preço (pela liberdade e por seu idealismo)”. Um preço tão grande que “silenciou a paixão política nos jovens de hoje”? Por essa interpretação, podemos dizer que a alienação política de hoje é, em parte, conseqüência de 64?
DOM FRAGOSO – No contexto de 64, as lideranças estudantis eram criativas e acreditavam em utopias mobilizadoras. Ao nível da universidade, sobretudo pela mediação da UNE, as lideranças dos jovens eram projetistas. Os “fóruns de estudantes” eram mais cheios de sonhos e de ideais do que os ”fóruns de reitores“ e que os quadros de direção e de magistério. A UNE é fechada, e a presença das forças de investigação e segurança denunciavam, reprimiam. Nas duas décadas, cerca de dez mil presos políticos ocuparam nossas prisões. Destes, mais de 60% eram jovens. A vigilância nas universidades, a repressão das manifestações estudantis e as torturas quase estancaram a participação aberta nas lutas políticas. A clandestinidade pagou um preço alto. As grandes paixões políticas, as grandes causas de transformação da sociedade, as grandes utopias sociais não são mais a tônica da juventude. As duas décadas de ditadura produziram uma “alienação” que marcou gerações nesses 40 anos.
JC – Em 1964, onde o senhor estava?
DOM FRAGOSO – De julho de 1957 a julho de 1963, fui o bispo auxiliar do arcebispo dom José de Medeiros Delgado, na Arquidiocese de São Luís do Maranhão. Em julho de 1963, fui eleito vigário capitular da Arquidiocese de São Luís, com a missão de administrá-la até à chegada do novo Arcebispo. Em 31 de Março de 1963, eu estava no Arcebispado. As notícias eram confusas. Sabendo que iam ser detidas pessoas que trabalhavam comigo no Movimento de Educação de Base (MEB), na organização dos sindicatos rurais, coloquei-as no Arcebispado e, depois, tiveram que fugir. Pouco tempo depois, uma delas, Regina, que era formada em filosofia, carioca, foi surpreendida pelo DOPS no Rio e sumariamente assassinada sob tortura. Sendo informado de que o presidente do Sindicato Rural de Pindaré-Mirim estava sendo procurado para ser preso, coloquei-o no Arcebispado. Sentindo a sua insegurança, ele foi para o interior, passando “piedosamente” pelo posto da Polícia entre duas irmãs Vicentinas do Chapéu Grande, que usavam o hábito de religiosas.
JC – Como foram os dias seguintes, imediatos após o Golpe?
DOM FRAGOSO – Nos dias seguintes, eu soube que seriam detidas pessoas que trabalhavam no MEB. Fui ao quartel do Exército para dizer que eram de nossa inteira confiança. Então, fui interrogado por um capitão, que era aluno da Faculdade de Filosofia, que integrava a Universidade Católica do Maranhão, da qual eu era o reitor. O capitão era filho de um general reformado, que dom Delgado, meu arcebispo – que já havia sido transferido para a Arquidiocese de Fortaleza –, nomeara diretor do Banco Popular da Arquidiocese de São Luís. O Banco Popular foi organizado por dom Delgado para financiar as cooperativas dos agricultores pobres, que não tinham condições de ser acolhidos pelas instituições oficiais de crédito. A minha “ficha”, organizada por indicação do general, pai do capitão, me catalogava como “socialista agitador”. Em julho de 1964, fui nomeado como bispo diocesano de Crateús. Aí, fiquei na qualidade de seu primeiro bispo diocesano de agosto de 1964 a maio de 1988.
JC – Os déficits sociais de hoje são os mesmos de 1964: reforma agrária, má distribuição de renda, má assistência à saúde, baixos níveis de educação, desrespeitos aos direitos humanos e impunidade nas classes abastadas. Quarenta anos depois, o Brasil mudou em que?
DOM FRAGOSO – O Brasil mudou muito. A distribuição injusta das riquezas nacionais é mais visível e ampla. Mas, vejo uma crescente insatisfação das maiorias populares que se revela em momentos nacionais de crise, uma ascensão dos movimentos populares, uma sensibilidade crescente aos clamores das crianças, dos jovens pobres, das mulheres, idosos, dos “sem terra” e dos “sem teto”. Nunca vi tanta insatisfação gritada em voz alta como nesses últimos anos. Dizia-se, “grite!. Não morra calado como o sapo debaixo da pata do boi”.
JC – Centenas de pessoas sofreram torturas, algumas dezenas desapareceram ou morreram sob tortura e outras foram perseguidas por longo tempo. O Brasil, hoje, paga indenizações a sobreviventes e a parentes de desaparecidos e mortos. O senhor acha que o Governo deveria esclarecer os crimes e identificar os autores ou acredita que é revirar o passado e deve-se impedir revides?
DOM FRAGOSO – Sei que se trata de uma área de sensibilidade e turbulência. Lembro-me de que o Prêmio Nobel da Paz, o argentino Adolfo Perez Esquivel, veio ao Brasil e disse que, para todas as nações do mundo, também para o Brasil, é necessário identificar com seriedade os crimes de tortura e repressão e puní-los com firmeza e segundo as exigências da Justiça. Foi detido, interrogado e teve de voltar ao seu país, uma vez que a anistia era ampla, inclusive aos repressores. Mas, eu penso que Perez Esquivel tinha razão. Julgo necessário que o Governo esclareça os crimes, aponte e puna os autores. Crimes contra a dignidade humana não podem prescrever.
JC – O Brasil vive, hoje, um governo de esquerda, num quadro de carência social imensa. Há semelhanças entre as épocas e os Governos Jango e Lula?
DOM FRAGOSO – Penso que não há semelhança entre o projeto político de Jango e o de Lula. E Jango tinha projeto político? Ele me deixava a impressão de ser um “aventureiro” sem utopias mobilizadoras. Lula é um nordestino que experimentou na carne a dor do povo sofrido, lutou nas áreas mais duras do combate sindical, guardou uma fidelidade às aspirações populares e buscou com humilde tenacidade e ousadia a chegada ao Governo. Ele tem uma proposta popular inédita na história política do Brasil. O projeto de Lula não foi improvisado por “intelectuais”, em gabinetes, mas emergiu de longas escutas e debates em todos os segmentos do povo brasileiro, sobretudo os trabalhadores.
JC – O senhor define o papel das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) como “o esforço mais importante da Igreja popular, no Brasil, para tentar fazer com que desse certo o método Paulo Freire de alfabetização”. Qual a função das CEB’s no enfrentamento à ditadura de 64?
DOM FRAGOSO – As Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), nascidas na América Latina após o Concílio Vaticano II e a Conferência do Episcopado da América Latina, em Medellin , Colômbia (1968), tentam pôr em prática, com a limitação que todas as práticas humanas têm, o Modelo de Igreja Popular ou Igreja dos Pobres. O método Paulo Freire, a sua filosofia e o seu método específico de pedagogia, teve forte influência na caminhada das CEBs, principalmente no Brasil. As CEBs não tinham como missão “enfrentar” a ditadura militar. A proposta eclesial das CEBs era, em si mesma, incompatível com a doutrina de Segurança Nacional que inspirou a chamada ditadura. Na prática das CEBs, o conflito era inevitável.
JC – Qual a avaliação que o senhor faz desses dez meses do Governo Lula? Está decepcionado ou acredita que ele conseguirá mudar o País?
DOM FRAGOSO – Distingo o projeto popular, que Lula ajudou a construir, e as práticas políticas que tentam realizá-lo. O projeto popular representou para mim a mais profunda esperança. Propor a cidadania para todos, privilegiar e priorizar as multidões “escanteadas”, matar a fome, suscitar um mutirão de parcerias, incluir todos, de todos os horizontes, que sintonizam com um Brasil mais humano e mais justo, não é tudo isto uma tentativa de expressar politicamente O Reino de Deus, que é de Justiça e de Paz? Eu nunca havia visto as multidões desencantadas e sem esperança saírem às ruas, um coração só, um grito só, renascerem na esperança de um Brasil diferente, com cara de povo. É cedo para qualquer avaliação de conjunto.
O cisma da hierarquia católica - por Ivone Gebara
Os últimos acontecimentos envolvendo a interrupção da gravidez da menina de nove anos em Pernambuco evidenciaram um fato que já estava presente desde muito tempo na vida da Igreja Católica Romana. Os bispos perderam o senso de governarem unidos aos desafios da história e à fé da comunidade e julgam-se mais fiéis ao Evangelho de Jesus do que a própria comunidade. Por manterem uma compreensão centralizadora e anacrônica de sua função e da teologia que lhe corresponde desviaram-se de muitos sofrimentos e dores concretas das pessoas, sobretudo das mulheres. Passaram a ser defensores de princípios abstratos, de incertas hipóteses futuríveis e pretenderam até ser advogados de Deus. A este acontecimento de distanciamento chamo de cisma. Os bispos tanto a nível nacional quanto internacional e aqui incluo também o Papa, como bispo de Roma, tornaram-se cismáticos em relação à comunidade de cristãos católicos, isto é, romperam com grande parte dela em várias situações. O incidente em relação a proibição da interrupção da gravidez da menina do qual Dom José Cardoso Sobrinho, arcebispo de Olinda e Recife foi um dos protagonistas é um exemplo irrefutável. Sem dúvida há muitas pessoas e grupos que pensam como eles e que reforçam seu cisma. Faz parte do pluralismo no qual sempre vivemos.
A hierarquia da Igreja, servidora da comunidade dos fiéis não pode em certas questões separar-se do sentido comum e plural da vivência da fé. Não pode igualmente para certos assuntos de foro pessoal e mesmo grupal substituir-se à consciência, às decisões e ao dever das pessoas. Pode emitir sua opinião, mas não impô-la como verdade de fé. Pode expressar-se, mas não forçar pessoas a assumir suas posições. Nesse sentido, não pode instaurar uma guerra santa em nome de Deus para salvaguardar coisas que julga serem vontade e prerrogativa de Deus. A tradição teológica na linha mais profética e sapiencial nunca permitiu que nenhum fiel mesmo bispo falasse em nome de Deus. E isto porque o deus do qual falamos fala em nosso nome e tem a nossa imagem e semelhança. O Sagrado Mistério que atravessa tudo o que existe é inacessível aos nossos julgamentos e interpretações. O Mistério que em tudo habita não precisa de representantes dogmáticos para defender seus direitos. Nossa palavra é nada mais e nada menos do que um balbuciar de aproximações e de idéias mutáveis e frágeis, inclusive sobre o inefável mistério. É nessa perspectiva que também não se pode obrigar que a Igreja hierárquica torne, por exemplo, a legalização do aborto sua bandeira, mas simplesmente que não impeça que uma sociedade pluralista se organize conforme as necessidades de suas cidadãs e cidadãos e que estes tenham o direito de decidir sobre suas escolhas.
As comunidades cristãs assim como as pessoas são plurais. Num mundo tão diverso e complexo como o nosso não podemos admitir que apenas a opinião de um grupo de bispos, homens celibatários e com uma formação limitada ao registro religioso, seja a expressão do seguimento da tradição do Movimento de Jesus. A comunidade cristã é mais do que a igreja hierárquica. E, a comunidade cristã é na realidade múltiplas comunidades cristãs e estas são igualmente muitas pessoas cada uma com sua história, suas escolhas e decisões próprias diante da vida.
Impressiona-me o anacronismo das posturas filosóficas e éticas episcopais começando pelos bispos brasileiros e continuando nas instâncias romanas como se pode ler na entrevista que o cardeal Giovanni Batista Re, presidente da Congregação para os bispos, deu a revista italiana Stampa concordando com a postura dos bispos brasileiros. Os tempos mudaram. Urge pois, que a teologia dos bispos saia de uma concepção hierárquica e dualista do Cristianismo e perceba que é na vulnerabilidade às múltiplas dores humanas que poderemos estar mais próximos das ações de justiça e amor. É claro que sempre poderemos errar inclusive querendo acertar. Esta é a frágil condição humana.
Creio que nossas entranhas sentem em primeiro lugar as dores imediatas, as injustiças contra corpos visíveis e é a eles que temos o primeiro dever de assistir. A consternação e a comoção em relação ao sofrimento da menina de nove anos foram grandes. E isto porque é a esta vida presente e atuante, a esta vida de menina feita mulher violada e violentada em nosso meio que devemos o respeito e o cuidado primeiros. Por isso como membro da comunidade cristã, louvo a atitude do Dr. Rivaldo Mendes de Albuquerque do Instituto Maternal Infantil de Recife assim como a mãe da menina e todas as organizações e pessoas que acudiram a ela neste momento de sofrimento que certamente deixará marcas indeléveis em sua vida.
Dirão alguns leitores que minha postura não é a postura oficial da Igreja Católica Romana. Entretanto, o que significa hoje a palavra oficial? O que é mesmo Igreja oficial? A instituição que se arvora como representante de seu deus e ousa condenar a vida ameaçada de uma menina? A instituição que se considera talvez a melhor seguidora do Evangelho de Jesus?
Não identifico a Igreja à hierarquia católica. A hierarquia é apenas uma parte ínfima da Igreja.
A Igreja é a comunidade de mulheres e homens espalhada pelo mundo, comunidade dos que estão atentos aos caídos nas estradas da vida, aos portadores de dores concretas, aos clamores de povos e pessoas em busca de justiça e alívio de suas dores hoje. A Igreja é a humanidade que se ajuda a suportar dores, a aliviar sofrimentos e a celebrar esperanças.
Continuar com excomunhões, inclusões ou exclusões parece cada vez mais incentivar o crescimento de relações autoritárias desrespeitosas da dignidade humana, sobretudo, quando surgem de instituições que pretendem ensinar o amor ao próximo como a lei maior. De quem Dom José Cardoso e alguns bispos se fizeram próximos nesse caso? Dos fetos inocentes, dirão eles, aqueles que precisam ser protegidos contra o “Holocausto silencioso” cometido por algumas mulheres e seus aliados.
Na realidade, fizeram-se próximos do princípio que defendem e se distanciaram da menina agredida e violentada tantas vezes. Condenaram quem levantou a menina caída na estrada da vida e salvaguardaram a pureza de suas leis e a vontade de seu deus. Acreditam que a interrupção da gravidez da menina seria uma lesão ao senhorio de Deus. Mas as guerras, a crescente violência social, a destruição do meio ambiente não seriam igualmente lesões que mereceriam denúncia e condenação maior? Perdoem-me se, sem querer acabo julgando pessoas, mas diante da inconsistência de certos argumentos e da insensibilidade aos problemas vividos pela menina de nove anos uma espécie de ira solidária me assola as entranhas.
De fato um cisma histórico está se construindo e tem crescido cada vez mais em diferentes países. A distancia entre os fiéis e uma certa hierarquia católica é marcante. O incidente em relação a interrupção da gravidez da menina pernambucana é apenas um entre os tantos atos de autoritarismo e desconhecimento da complexidade da história atual que a hierarquia tem cometido.
Na medida em que os que se julgam responsáveis pela Igreja se distanciam da alma do povo, de seu sofrimento real estarão sendo os construtores de um novo cisma que acentuará ainda mais o abismo entre as instituições da religião e a simples vida cotidiana com sua complexidade, desafios, dores e pequenas alegrias. As conseqüências de um cisma são imprevisíveis. Basta aprendermos as lições da história passada.
Termino este breve texto lembrando do que está escrito no Evangelho de Jesus de diferentes maneiras. Estamos aqui para viver a misericórdia entre nós. E todos nós necessitamos dessa misericórdia, único sentimento que nos permite não ignorar a dor alheia e nos ajudarmos a carregar os pesados fardos uns dos outros.
Ivone Gebara é Teóloga e Filósofa - (8 de Março de 2009)
A hierarquia da Igreja, servidora da comunidade dos fiéis não pode em certas questões separar-se do sentido comum e plural da vivência da fé. Não pode igualmente para certos assuntos de foro pessoal e mesmo grupal substituir-se à consciência, às decisões e ao dever das pessoas. Pode emitir sua opinião, mas não impô-la como verdade de fé. Pode expressar-se, mas não forçar pessoas a assumir suas posições. Nesse sentido, não pode instaurar uma guerra santa em nome de Deus para salvaguardar coisas que julga serem vontade e prerrogativa de Deus. A tradição teológica na linha mais profética e sapiencial nunca permitiu que nenhum fiel mesmo bispo falasse em nome de Deus. E isto porque o deus do qual falamos fala em nosso nome e tem a nossa imagem e semelhança. O Sagrado Mistério que atravessa tudo o que existe é inacessível aos nossos julgamentos e interpretações. O Mistério que em tudo habita não precisa de representantes dogmáticos para defender seus direitos. Nossa palavra é nada mais e nada menos do que um balbuciar de aproximações e de idéias mutáveis e frágeis, inclusive sobre o inefável mistério. É nessa perspectiva que também não se pode obrigar que a Igreja hierárquica torne, por exemplo, a legalização do aborto sua bandeira, mas simplesmente que não impeça que uma sociedade pluralista se organize conforme as necessidades de suas cidadãs e cidadãos e que estes tenham o direito de decidir sobre suas escolhas.
As comunidades cristãs assim como as pessoas são plurais. Num mundo tão diverso e complexo como o nosso não podemos admitir que apenas a opinião de um grupo de bispos, homens celibatários e com uma formação limitada ao registro religioso, seja a expressão do seguimento da tradição do Movimento de Jesus. A comunidade cristã é mais do que a igreja hierárquica. E, a comunidade cristã é na realidade múltiplas comunidades cristãs e estas são igualmente muitas pessoas cada uma com sua história, suas escolhas e decisões próprias diante da vida.
Impressiona-me o anacronismo das posturas filosóficas e éticas episcopais começando pelos bispos brasileiros e continuando nas instâncias romanas como se pode ler na entrevista que o cardeal Giovanni Batista Re, presidente da Congregação para os bispos, deu a revista italiana Stampa concordando com a postura dos bispos brasileiros. Os tempos mudaram. Urge pois, que a teologia dos bispos saia de uma concepção hierárquica e dualista do Cristianismo e perceba que é na vulnerabilidade às múltiplas dores humanas que poderemos estar mais próximos das ações de justiça e amor. É claro que sempre poderemos errar inclusive querendo acertar. Esta é a frágil condição humana.
Creio que nossas entranhas sentem em primeiro lugar as dores imediatas, as injustiças contra corpos visíveis e é a eles que temos o primeiro dever de assistir. A consternação e a comoção em relação ao sofrimento da menina de nove anos foram grandes. E isto porque é a esta vida presente e atuante, a esta vida de menina feita mulher violada e violentada em nosso meio que devemos o respeito e o cuidado primeiros. Por isso como membro da comunidade cristã, louvo a atitude do Dr. Rivaldo Mendes de Albuquerque do Instituto Maternal Infantil de Recife assim como a mãe da menina e todas as organizações e pessoas que acudiram a ela neste momento de sofrimento que certamente deixará marcas indeléveis em sua vida.
Dirão alguns leitores que minha postura não é a postura oficial da Igreja Católica Romana. Entretanto, o que significa hoje a palavra oficial? O que é mesmo Igreja oficial? A instituição que se arvora como representante de seu deus e ousa condenar a vida ameaçada de uma menina? A instituição que se considera talvez a melhor seguidora do Evangelho de Jesus?
Não identifico a Igreja à hierarquia católica. A hierarquia é apenas uma parte ínfima da Igreja.
A Igreja é a comunidade de mulheres e homens espalhada pelo mundo, comunidade dos que estão atentos aos caídos nas estradas da vida, aos portadores de dores concretas, aos clamores de povos e pessoas em busca de justiça e alívio de suas dores hoje. A Igreja é a humanidade que se ajuda a suportar dores, a aliviar sofrimentos e a celebrar esperanças.
Continuar com excomunhões, inclusões ou exclusões parece cada vez mais incentivar o crescimento de relações autoritárias desrespeitosas da dignidade humana, sobretudo, quando surgem de instituições que pretendem ensinar o amor ao próximo como a lei maior. De quem Dom José Cardoso e alguns bispos se fizeram próximos nesse caso? Dos fetos inocentes, dirão eles, aqueles que precisam ser protegidos contra o “Holocausto silencioso” cometido por algumas mulheres e seus aliados.
Na realidade, fizeram-se próximos do princípio que defendem e se distanciaram da menina agredida e violentada tantas vezes. Condenaram quem levantou a menina caída na estrada da vida e salvaguardaram a pureza de suas leis e a vontade de seu deus. Acreditam que a interrupção da gravidez da menina seria uma lesão ao senhorio de Deus. Mas as guerras, a crescente violência social, a destruição do meio ambiente não seriam igualmente lesões que mereceriam denúncia e condenação maior? Perdoem-me se, sem querer acabo julgando pessoas, mas diante da inconsistência de certos argumentos e da insensibilidade aos problemas vividos pela menina de nove anos uma espécie de ira solidária me assola as entranhas.
De fato um cisma histórico está se construindo e tem crescido cada vez mais em diferentes países. A distancia entre os fiéis e uma certa hierarquia católica é marcante. O incidente em relação a interrupção da gravidez da menina pernambucana é apenas um entre os tantos atos de autoritarismo e desconhecimento da complexidade da história atual que a hierarquia tem cometido.
Na medida em que os que se julgam responsáveis pela Igreja se distanciam da alma do povo, de seu sofrimento real estarão sendo os construtores de um novo cisma que acentuará ainda mais o abismo entre as instituições da religião e a simples vida cotidiana com sua complexidade, desafios, dores e pequenas alegrias. As conseqüências de um cisma são imprevisíveis. Basta aprendermos as lições da história passada.
Termino este breve texto lembrando do que está escrito no Evangelho de Jesus de diferentes maneiras. Estamos aqui para viver a misericórdia entre nós. E todos nós necessitamos dessa misericórdia, único sentimento que nos permite não ignorar a dor alheia e nos ajudarmos a carregar os pesados fardos uns dos outros.
Ivone Gebara é Teóloga e Filósofa - (8 de Março de 2009)
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