Celso Lungaretti
Meus leitores mais atentos devem ter percebido o empenho que tive neste ano em destacar a figura de Tiradentes, o herói desfigurado e esquecido cujo dia da execução virou feriado nacional; e que uma peça teatral, Arena Conta Tiradentes, tem presença até excessiva nos textos relativos à efeméride que ultimamente andei escrevendo.
Vale a pena explicar os motivos destas duas opções.
Quando menino, compartilhava o enfado de meus colegas de classe diante da obrigação de escrever, ano após ano, qualquer bobagem sobre o Mártir da Independência, mera repetição, com outras palavras, do que estava nos manuais escolares.
De quebra, tínhamos de enfeitar esses trabalhos com bandeirinhas brasileiras que desenhávamos ou decalcomanias adquiridas nas papelarias; às vezes, fitinhas verde-amarelas. Mais brega e mais tedioso, impossível.
Então, Tiradentes caía naquela vala comum a que intimamente relegávamos tudo que fosse oficialesco. Fingíamos respeitá-lo, porque era esta a reação que os adultos de nós esperavam. Nada significava para nós.
Foi a peça Arena Conta Tiradentes que me reconciliou com a figura do herói, quando eu tinha 17 anos e já me interessava pela política de esquerda.
Porque ela fez a tragédia histórica ganhar vida diante dos meus olhos. E também me levou a perceber Tiradentes como o único conspirador que falava a linguagem do povo e tentou engajá-lo na trama urdida pelos notáveis da capitania.
Foi com o fervor revolucionário de Tiradentes que me identifiquei, não com seu martírio. Pois, ao falar aos quatro ventos aquilo que os demais inconfidentes só cochichavam, ele se parecia muito conosco, jovens secundaristas que, com idêntico entusiasmo, começávamos a trilhar os caminhos das lutas sociais.
Também nós sentíamos imenso prazer ao proclamar em alto e bom som nossos ideais, ao invés de calá-los por motivo de segurança (as precauções viriam mais tarde!).
E, em nosso otimismo ingênuo, eu e meus companheiros nos entusiasmávamos mesmo era com a primeira parte da peça, em que a conspiração vai sendo engendrada, até culminar numa reunião apoteótica na qual cada um relata o papel que desempenhará no dia do levante.
Nosso 1968 foi mesmo assim, esperançoso e apoteótico.
Mas, a segunda parte de Arena Conta Tiradentes -- a da delação, prisão, inquérito e punição -- também estava inscrita em nosso futuro, sem que o percebêssemos ou quiséssemos perceber.
Foi quando alguns sentimo-nos, como Tiradentes, os patinhos feios de um movimento capitaneado por pessoas mais importantes do que nós.
Pois, cada vez mais, a historiografia tende a interpretar Tiradentes da maneira magnificamente sintetizada pelo jornalista e professor Sílvio Anaz:
"Mestiço, pobre, falastrão, com o perfil adequado a bode expiatório, Tiradentes foi o único dos inconfidentes condenado e executado. (...) Já os principais mentores da Inconfidência Mineira, membros das castas mais altas da época, acabaram morrendo na prisão ou exilados na África. Como o levante fracassou, Tiradentes virou líder e mártir. Caso tivesse dado certo, ele provavelmente não ficaria com as principais benesses do novo regime, conforme comentou Machado de Assis".
Hoje, entretanto, essa identificação com quem viveu dramas semelhantes, bem como as mágoas por injustiças reais ou supostas, já não determinam minhas opções; ficaram para trás, dissipadas pelo amadurecimento que os anos trazem.
A minha decisão de enaltecer Tiradentes se deveu a uma avaliação racional: a de que a situação hoje é a mesma (ou pior ainda!) que levou Augusto Boal a escrever seu antológico ensaio Quixotes e Heróis, sobre o processo de manipulação de consciências por parte dos interesses dominantes.
Então, como ponto de chegada desta digressão, nada melhor do que repetir a lúcida argumentação de Boal, que subscrevo inteiramente:
"...as classes dominantes têm por hábito a adaptação dos heróis de outras classes. A mitificação, nestes casos, é sempre mistificadora. E sempre é o mesmo processo: eliminar ou esbater, como se fosse apenas circunstância, o fato essencial, promovendo, por outro lado, características circunstancias à condição de essência.
"Assim foi com Tiradentes. Nele, a importância maior dos atos que praticou reside no seu conteúdo revolucionário. Episodicamente, foi ele também um estóico.
"Tiradentes foi revolucionário no seu momento como o seria em outros momentos, inclusive no nosso. Pretendia, ainda que romanticamente, a derrubada de um regime de opressão e desejava substitui-lo por outro, mais capaz de promover a felicidade do seu povo.
"Isto ele pretendeu em nosso país, como certamente teria pretendido em qualquer outro.
"No entanto, este comportamento essencial ao herói é esbatido e, em seu lugar, prioritariamente, surge o sofrimento na forca, a aceitação da culpa, a singeleza com que beijava o crucifixo na caminhada pelas ruas com baraço e pregação.
"Hoje, costuma-se pensar em Tiradentes como o Mártir da Independência, e esquece-se de pensá-lo como herói revolucionário, transformador da sua realidade. O mito está mistificado.
"Não é o mito que deve ser destruído, é a mistificação.
"Não é o herói que deve ser empequenecido; é a sua luta que deve ser magnificada.
"Brecht cantou: 'Feliz o povo que não tem heróis'. Concordo. Porém, nós não somos um povo feliz. Por isso precisamos de heróis. Precisamos de Tiradentes."
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