Augusto Boal (1931-2009)

Celso Lungaretti

A morte de Augusto Boal me atingiu como se eu tivesse perdido um grande amigo. A ele e a Gianfrancesco Guarnieri devo o texto e a encenação da primeira peça de teatro profissional a que assisti, aos 15 anos: Arena Conta Zumbi. Marcou-me para sempre, assim como a seguinte, Arena Conta Tiradentes. As duas têm muito a ver com o rumo que tomei na vida.

Falei sobre essas peças em dois artigos escritos dias antes do último feriado de Tiradentes, então seria ocioso repetir-me agora. Para quem quiser recapitular, estão em:
  • http://naufrago-da-utopia.blogspot.com/2009/04/conspiracao-era-palaciana-tiradentes.html
  • http://naufrago-da-utopia.blogspot.com/2009/04/desmistificando-o-mito-recuperando-o.html
Tenho quase certeza de que era Boal um dos atores de Arena Conta Zumbi, quando a peça foi para os bairros e eu a assisti no teatro Arthur Azevedo, da Mooca. Talvez substituindo Lima Duarte, que atuou nos primeiros espetáculos e participa do excelente disco com os principais trechos e músicas, mas não ficou para a temporada popular.

Registro: Boal foi preso e torturado em 1971. Quando o libertaram, passou cinco anos na Argentina, onde, apropriadamente, encenou Torquemada, texto de sua autoria sobre a Inquisição. Deve ter sido fácil para ele desenvolver o seu personagem, depois de passar pelas garras dos Torquemadas brasileiros.

Há mais de quatro décadas, ele escreveu estes comentários que permanecem atuais até hoje e dão uma boa idéia do homem e de suas devoções, às quais se manteve fiel pelo resto da vida:

"Quanto a fase nacionalista do teatro foi sucedida pela nacionalização dos clássicos, o teatro chegou ao povo, indo buscá-lo nas ruas, nas conchas acústicas, nos adros de igrejas, no Nordeste e na periferia de São Paulo.

"Esses espetáculos, festas populares, eram gratuitos, mas o artista é um profissional. Conseguia-se apoio econômico que tornava o desenvolvimento possível.

"Já não se consegue. A platéia foi golpeada. Que pode agora acontecer?

"O único caminho que parece agora aberto é o da elitização do teatro. E este deve ser recusado, sob pena transformarem-se os artista em bobos de corte burguesa, ao invés de encontrarem no povo a sua inspiração e o seu destino.

"O beco não parece ter saída. A quem interessa que o teatro seja popular? Descontando-se o povo e alguns artistas renitentes, parece que a ninguém de mando e poder.

"Vindo o que vier, neste momento de morte clínica do teatro, muitos são os responsáveis: devemos todos analisar nossas ações e omissões.

"Que cada um diga o que fez, a que veio e por que ficou. E que cada um tenha a coragem de, não sabendo por que permanece, retirar-se."

Desmistificando o mito, recuperando o herói: Tiradentes

Celso Lungaretti

Meus leitores mais atentos devem ter percebido o empenho que tive neste ano em destacar a figura de Tiradentes, o herói desfigurado e esquecido cujo dia da execução virou feriado nacional; e que uma peça teatral, Arena Conta Tiradentes, tem presença até excessiva nos textos relativos à efeméride que ultimamente andei escrevendo.

Vale a pena explicar os motivos destas duas opções.

Quando menino, compartilhava o enfado de meus colegas de classe diante da obrigação de escrever, ano após ano, qualquer bobagem sobre o Mártir da Independência, mera repetição, com outras palavras, do que estava nos manuais escolares.

De quebra, tínhamos de enfeitar esses trabalhos com bandeirinhas brasileiras que desenhávamos ou decalcomanias adquiridas nas papelarias; às vezes, fitinhas verde-amarelas. Mais brega e mais tedioso, impossível.

Então, Tiradentes caía naquela vala comum a que intimamente relegávamos tudo que fosse oficialesco. Fingíamos respeitá-lo, porque era esta a reação que os adultos de nós esperavam. Nada significava para nós.

Foi a peça Arena Conta Tiradentes que me reconciliou com a figura do herói, quando eu tinha 17 anos e já me interessava pela política de esquerda.

Porque ela fez a tragédia histórica ganhar vida diante dos meus olhos. E também me levou a perceber Tiradentes como o único conspirador que falava a linguagem do povo e tentou engajá-lo na trama urdida pelos notáveis da capitania.

Foi com o fervor revolucionário de Tiradentes que me identifiquei, não com seu martírio. Pois, ao falar aos quatro ventos aquilo que os demais inconfidentes só cochichavam, ele se parecia muito conosco, jovens secundaristas que, com idêntico entusiasmo, começávamos a trilhar os caminhos das lutas sociais.

Também nós sentíamos imenso prazer ao proclamar em alto e bom som nossos ideais, ao invés de calá-los por motivo de segurança (as precauções viriam mais tarde!).

E, em nosso otimismo ingênuo, eu e meus companheiros nos entusiasmávamos mesmo era com a primeira parte da peça, em que a conspiração vai sendo engendrada, até culminar numa reunião apoteótica na qual cada um relata o papel que desempenhará no dia do levante.

Nosso 1968 foi mesmo assim, esperançoso e apoteótico.

Mas, a segunda parte de Arena Conta Tiradentes -- a da delação, prisão, inquérito e punição -- também estava inscrita em nosso futuro, sem que o percebêssemos ou quiséssemos perceber.

Foi quando alguns sentimo-nos, como Tiradentes, os patinhos feios de um movimento capitaneado por pessoas mais importantes do que nós.

Pois, cada vez mais, a historiografia tende a interpretar Tiradentes da maneira magnificamente sintetizada pelo jornalista e professor Sílvio Anaz:

"Mestiço, pobre, falastrão, com o perfil adequado a bode expiatório, Tiradentes foi o único dos inconfidentes condenado e executado. (...) Já os principais mentores da Inconfidência Mineira, membros das castas mais altas da época, acabaram morrendo na prisão ou exilados na África. Como o levante fracassou, Tiradentes virou líder e mártir. Caso tivesse dado certo, ele provavelmente não ficaria com as principais benesses do novo regime, conforme comentou Machado de Assis".

Hoje, entretanto, essa identificação com quem viveu dramas semelhantes, bem como as mágoas por injustiças reais ou supostas, já não determinam minhas opções; ficaram para trás, dissipadas pelo amadurecimento que os anos trazem.

A minha decisão de enaltecer Tiradentes se deveu a uma avaliação racional: a de que a situação hoje é a mesma (ou pior ainda!) que levou Augusto Boal a escrever seu antológico ensaio Quixotes e Heróis, sobre o processo de manipulação de consciências por parte dos interesses dominantes.

Então, como ponto de chegada desta digressão, nada melhor do que repetir a lúcida argumentação de Boal, que subscrevo inteiramente:

"...as classes dominantes têm por hábito a adaptação dos heróis de outras classes. A mitificação, nestes casos, é sempre mistificadora. E sempre é o mesmo processo: eliminar ou esbater, como se fosse apenas circunstância, o fato essencial, promovendo, por outro lado, características circunstancias à condição de essência.

"Assim foi com Tiradentes. Nele, a importância maior dos atos que praticou reside no seu conteúdo revolucionário. Episodicamente, foi ele também um estóico.

"Tiradentes foi revolucionário no seu momento como o seria em outros momentos, inclusive no nosso. Pretendia, ainda que romanticamente, a derrubada de um regime de opressão e desejava substitui-lo por outro, mais capaz de promover a felicidade do seu povo.

"Isto ele pretendeu em nosso país, como certamente teria pretendido em qualquer outro.

"No entanto, este comportamento essencial ao herói é esbatido e, em seu lugar, prioritariamente, surge o sofrimento na forca, a aceitação da culpa, a singeleza com que beijava o crucifixo na caminhada pelas ruas com baraço e pregação.

"Hoje, costuma-se pensar em Tiradentes como o Mártir da Independência, e esquece-se de pensá-lo como herói revolucionário, transformador da sua realidade. O mito está mistificado.

"Não é o mito que deve ser destruído, é a mistificação.

"Não é o herói que deve ser empequenecido; é a sua luta que deve ser magnificada.

"Brecht cantou: 'Feliz o povo que não tem heróis'. Concordo. Porém, nós não somos um povo feliz. Por isso precisamos de heróis. Precisamos de Tiradentes."

A conspiração era palaciana. Tiradentes, não (por Celso Lungaretti)

"...cada conjurado ficou sozinho: longe do povo
que não desejava, longe do poder que pretendia
derrubar. (...) Menos Tiradentes: este queria
estar junto - mas escolheu mal com quem."
(Boal/Guarnieri, "Arena Conta Tiradentes")

Leitores me escrevem discordando da homenagem prestada a Tiradentes. No entanto, contestam mais a Inconfidência Mineira do que o herói em si, alegando que não foi uma revolta popular, mas sim uma conspiração palaciana.

Se conhecessem a peça Arena Conta Tiradentes, que perpassa todo meu texto, saberiam que estão chovendo no molhado.

Gianfrancesco Guarnieri e Augusto Boal haviam utilizado a saga dos quilombos como parábola sobre o golpe de 1964, em Arena Conta Zumbi (1965). Desde a introdução, esse propósito ficava claro, pois a proposta era contar uma "história da gente negra, da luta pela razão/ que se parece ao presente pela verdade em questão/ pois se trata de uma luta muito linda, na verdade/ é luta que vence os tempos, luta pela liberdade".

Ou seja, impossibilitado pelas restrições da época de fazer uma peça declaradamente sobre a quartelada, o Arena utilizou o artifício de comparar, o tempo todo, o episódio passado com o presente.

P. ex., ao assumir a condução da campanha contra Palmares, D. Aires faz um discurso recheado de colocações dos golpistas de 1964, tipo "a independência é necessária na teoria, na prática vigora a interdependência", alusão às fronteiras ideológicas (formação de um compacto bloco anticomunista) que os EUA pregavam, em substituição às fronteiras físicas.

E, como a censura era muito estúpida, não percebeu sequer a quem o Arena se referia, ao colocar na boca de D. Aires esta fala: "Já não precisamos de Exército. Precisamos de uma força repressiva, policial. Unamo-nos todos a serviço do rei de fora, contra o inimigo de dentro!".

Como a usurpação do poder ainda era muito recente, a peça serviu como catarse, destacando a grandeza dos combatentes pela liberdade e a sordidez dos repressores. Era a mensagem adequada a um momento de perplexidade e medo.

Em 1967, entretanto, o foco era outro: a esquerda já se recompusera do susto, passando a discutir de quem, afinal, havia sido a culpa por fracasso tão retumbante.

A responsabilidade do Partido Comunista Brasileiro pela derrota saltava aos olhos: ao invés de organizar as massas para resistirem às previsíveis investidas reacionárias, acreditara que as Forças Armadas cumpririam fielmente seu papel constitucional, de defensoras da democracia.

O Governo João Goulart chegara ao cúmulo de não interferir quando a oficialidade promovia expurgos nas fileiras militares, enfraquecendo a rede de sargentos e cabos que evitara a tentativa anterior de golpe, em 1961.

Então, a esquerda estava numa temporada de críticas, autocríticas e rachas, tentando reencontrar seu norte, após o colapso de sua força quase hegemônica, o PCB.

Arena Conta Tiradentes refletiu este momento, ao retratar a Inconfidência Mineira como uma conspiração palaciana, que é desarticulada com facilidade exatamente por não ter o respaldo das massas.

O coringa (narrador), ao explicar o fracasso dos inconfidentes, é taxativo: a maioria deles, pertencente à elite mineira, "estava em cima do muro, pronta pra pular pra qualquer lado, conforme o balanço". E conclui:
- E, se é verdade que muitas revoluções burguesas foram feitas pelo povo, também é verdade que, nesta, o povo estava ausente; e, mais do que ausente, foi afastado. Por isso, cada conjurado ficou sozinho: longe do povo que não desejava, longe do poder que pretendia derrubar. Sozinho, cada um pensava na sua prosperidade individual; sozinho, cada um pensou depois na sua salvação. Menos Tiradentes: este queria estar junto - mas escolheu mal com quem.

O alferes era, na verdade, o único vínculo entre os conspiradores palacianos e o povo. E eu não encontro motivos para discordar da avaliação de Boal e Guarnieri:
- Quando pensamos em escrever a história de Tiradentes, tínhamos a impressão de que Silvério não era tão safado como todo mundo dizia, nem o alferes tão herói como constava. Depois, estudando, chegamos à conclusão de que Tiradentes foi mais herói ainda do que se diz e Silvério tão safado quanto consta.

Silvério, vale dizer, não foi o único safado: outros também delataram a Inconfidência, mas só ele carrega o estigma histórico, sabe-se lá por quê.

Quanto a Tiradentes, teve comportamento idealista na conspiração e digno no cárcere. Foi, como Lamarca e Marighella, um militar que recusou o papel de cão de guarda do arbítrio e das injustiças, abraçando a causa do povo.

Merece ser reconhecido como o herói maior deste país tão carente de heróis e tão pouco grato aos poucos que produz.