Uma rua (que não é mais) chamada Torturador, por Celso Lungaretti

Meu artigo Uma Rua Chamada Torturador, de 27/02/2008 (abaixo reproduzido), agora tem um final feliz: os vereadores de São Carlos (SP) aprovaram, por unanimidade, a mudança do nome da Rua Sérgio Paranhos Fleury para Rua D. Helder Pessoa Câmara.

Personagens repulsivos, patéticos ou meramente insignificantes dão nome a uma infinidade de rodovias, ruas, avenidas e praças brasileiras. Antigamente, ao ver na placa uma homenagem descabida, eu até me indignava. Com o tempo, passei a encarar o fenômeno de forma mais condescendente, como parte da geléia geral brasileira, tão bem retratada pelos compositores do tropicalismo.

Mário Hato, que foi meu professor de Química no colegial e depois fez carreira política, explicou-me que há um acordo de cavalheiros no Legislativo: vereadores e deputados não vetam as propostas louvaminhas dos seus colegas, salvo em casos extremos – como o ocorrido quando o hoje deputado estadual Carlos Giannazi tentou fazer com que escolas da rede pública reverenciassem a memória dos revolucionários Carlos Marighella e Carlos Lamarca. A bancada de extrema-direita reagiu de forma exacerbada.

Para melhor acomodar vaidades póstumas, chega-se a atribuir vários nomes à mesma rua: para cada trecho, um homenageado. Se fosse descendente de algum desses pseudo-figurões, eu me sentiria ofendido: por que uns são lembrados ao longo de uma estrada inteira e outros têm de se contentar com míseras centenas de metros de uma via secundária?

Meu companheiro de lutas Eremias Delizoicov, que era menor de idade quando tomou a decisão de confrontar uma ditadura bestial e acabou sendo assassinado aos 18 anos, com 35 balaços cravados no corpo, virou nome de uma rua que ninguém conhece, onde ninguém sabe ir e que ninguém jamais viu.

É muito pouco para quem perdeu tanto. Tenho me empenhado em conseguir que, pelo menos, uma escola paulistana receba o nome do Eremias, mantendo viva a lembrança do seu sacrifício – até porque é como estudante que nós, os amigos de infância, nos recordamos dele. Está difícil.

Já a Câmara Municipal de Ribeirão Preto acaba de decidir que uma via pública desse simpático município paulista receberá o nome de Juarez Guimarães de Brito, com a seguinte inscrição na placa indicativa da rua: "patriota brasileiro assassinado pela Ditadura Militar".

Fico pensando em como o bom Juvenal (o nome-de-guerra pelo qual o conhecíamos) receberia a qualificação de "patriota". Era um internacionalista, adepto fervoroso da liberdade e justiça social para todos os povos e nações.

Enfim, vale a intenção e é merecidíssima a homenagem a quem deixou uma cátedra universitária para ser professor de humanidade na guerrilha. Sua obsessão em planejar exaustivamente as ações armadas, de forma a reduzir a um mínimo a possibilidade de derramamento de sangue, chegava a ser comovente.

Preferiu, até o fim, correr riscos do que causá-los a outros. Era quem mais se aproximava do homem novo que tínhamos como meta: o indivíduo livre da ganância e do egoísmo, totalmente voltado para o bem comum, que construiria a si próprio à medida que fosse construindo a sociedade nova.

LESA-HUMANIDADE – No outro extremo, a cidade paulista de São Carlos houve por mal ter uma rua com o nome de Sérgio Paranhos Fleury, o que levou os grupos Tortura Nunca Mais de SP e RJ a protestarem energicamente:

– Este delegado de Polícia, integrante do Esquadrão da Morte, em São Paulo nos anos de 1960, tornou-se um dos principais agentes do terrorismo de Estado que se instaurou em nosso país oficialmente após o AI-5. (...) Entendemos que tal "homenagem" produz uma memória que enaltece os crimes de lesa-humanidade cometidos por estes agentes.

Trocando em miúdos: atuando no radiopatrulhamento de São Paulo, Fleury organizou um grupo de extermínio semiclandestino chamado Esquadrão da Morte, que, aparentemente, queria livrar a sociedade de suas ervas daninhas.

Requisitado pelo Departamento Estadual de Ordem Política e Social, alcançou repercussão nacional ao comandar a operação que resultou na morte do guerrilheiro Carlos Marighella. Graças à censura, a opinião pública não foi informada das torturas brutais mediante as quais chegou ao seu alvo, nem que organizou a emboscada de forma tão canhestra que o fogo cruzado acabou matando também uma policial e o motorista de um veículo que trafegava na região.

Responsável por um festival de horrores, incluindo a execução de prisioneiros como Devanir José de Carvalho, Fleury ainda cedia seu sítio como aparelho clandestino para os serviços sujos da repressão. Por lá passou Eduardo Leite, o Bacuri, no longo calvário que antecedeu seu assassinato.

Apesar das evidências gritantes da responsabilidade de Fleury nos crimes do Esquadrão da Morte, a ditadura militar não deixava que o bravo promotor Hélio Bicudo o colocasse na cadeia. Chegou até a criar uma lei com o único objetivo de impedir que, pronunciado, Fleury tivesse de aguardar preso o julgamento.

O guarda-chuva protetor só foi retirado quando Bicudo conseguiu provar que Fleury não eliminava marginais em benefício da sociedade, mas sim para fazer jus às recompensas de um grande traficante, empenhado em livrar-se da concorrência. Moralistas, os generais admitiam acobertar um justiceiro, mas não um capanga da contravenção.

Para piorar, com o fim da luta armada haviam terminado também as recompensas que os empresários direitistas ofereciam pela prisão ou morte dos revolucionários; e os rapinantes da repressão já não podiam mais apropriar-se dos bens de suas vítimas, outra das fontes de renda que lhes permitira viver muito acima de suas posses.

Fleury, dono de uma lancha, teria morrido ao cair na água. Falou-se muito em queima de arquivo: sem conseguir mais sustentar o vício que teria (cocaína), ele estaria exigindo dinheiro de seus antigos financiadores para não trombetear o que sabia. Como entre eles havia até sádicos que atuaram como torturadores voluntários de presos políticos, dá para imaginar o efeito devastador de uma chantagem dessas... e as prováveis conseqüências.

Nem mesmo os neo-integralistas gostam de mirar-se num exemplo desses, preferindo esquecer que Fleury existiu. Os vereadores de São Carlos provavelmente não sabiam de quem se tratava.

Independentemente do desfecho deste episódio, será sempre uma gota d’água no oceano. Uma busca no Google revela a existência, p. ex., de várias ruas com o nome de Filinto Muller, o torturador-símbolo da ditadura getulista, que chegava a ser comparado aos carrascos da Gestapo.

Para não falar das avenidas Presidente Médici que há no País inteiro, homenageando quem nunca foi presidente eleito pelo povo, mas sim ditador empossado pelas baionetas, sendo responsável pelo período mais tenebroso da História brasileira.

A conspiração era palaciana. Tiradentes, não (por Celso Lungaretti)

"...cada conjurado ficou sozinho: longe do povo
que não desejava, longe do poder que pretendia
derrubar. (...) Menos Tiradentes: este queria
estar junto - mas escolheu mal com quem."
(Boal/Guarnieri, "Arena Conta Tiradentes")

Leitores me escrevem discordando da homenagem prestada a Tiradentes. No entanto, contestam mais a Inconfidência Mineira do que o herói em si, alegando que não foi uma revolta popular, mas sim uma conspiração palaciana.

Se conhecessem a peça Arena Conta Tiradentes, que perpassa todo meu texto, saberiam que estão chovendo no molhado.

Gianfrancesco Guarnieri e Augusto Boal haviam utilizado a saga dos quilombos como parábola sobre o golpe de 1964, em Arena Conta Zumbi (1965). Desde a introdução, esse propósito ficava claro, pois a proposta era contar uma "história da gente negra, da luta pela razão/ que se parece ao presente pela verdade em questão/ pois se trata de uma luta muito linda, na verdade/ é luta que vence os tempos, luta pela liberdade".

Ou seja, impossibilitado pelas restrições da época de fazer uma peça declaradamente sobre a quartelada, o Arena utilizou o artifício de comparar, o tempo todo, o episódio passado com o presente.

P. ex., ao assumir a condução da campanha contra Palmares, D. Aires faz um discurso recheado de colocações dos golpistas de 1964, tipo "a independência é necessária na teoria, na prática vigora a interdependência", alusão às fronteiras ideológicas (formação de um compacto bloco anticomunista) que os EUA pregavam, em substituição às fronteiras físicas.

E, como a censura era muito estúpida, não percebeu sequer a quem o Arena se referia, ao colocar na boca de D. Aires esta fala: "Já não precisamos de Exército. Precisamos de uma força repressiva, policial. Unamo-nos todos a serviço do rei de fora, contra o inimigo de dentro!".

Como a usurpação do poder ainda era muito recente, a peça serviu como catarse, destacando a grandeza dos combatentes pela liberdade e a sordidez dos repressores. Era a mensagem adequada a um momento de perplexidade e medo.

Em 1967, entretanto, o foco era outro: a esquerda já se recompusera do susto, passando a discutir de quem, afinal, havia sido a culpa por fracasso tão retumbante.

A responsabilidade do Partido Comunista Brasileiro pela derrota saltava aos olhos: ao invés de organizar as massas para resistirem às previsíveis investidas reacionárias, acreditara que as Forças Armadas cumpririam fielmente seu papel constitucional, de defensoras da democracia.

O Governo João Goulart chegara ao cúmulo de não interferir quando a oficialidade promovia expurgos nas fileiras militares, enfraquecendo a rede de sargentos e cabos que evitara a tentativa anterior de golpe, em 1961.

Então, a esquerda estava numa temporada de críticas, autocríticas e rachas, tentando reencontrar seu norte, após o colapso de sua força quase hegemônica, o PCB.

Arena Conta Tiradentes refletiu este momento, ao retratar a Inconfidência Mineira como uma conspiração palaciana, que é desarticulada com facilidade exatamente por não ter o respaldo das massas.

O coringa (narrador), ao explicar o fracasso dos inconfidentes, é taxativo: a maioria deles, pertencente à elite mineira, "estava em cima do muro, pronta pra pular pra qualquer lado, conforme o balanço". E conclui:
- E, se é verdade que muitas revoluções burguesas foram feitas pelo povo, também é verdade que, nesta, o povo estava ausente; e, mais do que ausente, foi afastado. Por isso, cada conjurado ficou sozinho: longe do povo que não desejava, longe do poder que pretendia derrubar. Sozinho, cada um pensava na sua prosperidade individual; sozinho, cada um pensou depois na sua salvação. Menos Tiradentes: este queria estar junto - mas escolheu mal com quem.

O alferes era, na verdade, o único vínculo entre os conspiradores palacianos e o povo. E eu não encontro motivos para discordar da avaliação de Boal e Guarnieri:
- Quando pensamos em escrever a história de Tiradentes, tínhamos a impressão de que Silvério não era tão safado como todo mundo dizia, nem o alferes tão herói como constava. Depois, estudando, chegamos à conclusão de que Tiradentes foi mais herói ainda do que se diz e Silvério tão safado quanto consta.

Silvério, vale dizer, não foi o único safado: outros também delataram a Inconfidência, mas só ele carrega o estigma histórico, sabe-se lá por quê.

Quanto a Tiradentes, teve comportamento idealista na conspiração e digno no cárcere. Foi, como Lamarca e Marighella, um militar que recusou o papel de cão de guarda do arbítrio e das injustiças, abraçando a causa do povo.

Merece ser reconhecido como o herói maior deste país tão carente de heróis e tão pouco grato aos poucos que produz.