A felicidade e o homem-máquina

Programa da TV Globo incorpora a idéia do “homem-máquina” e torna evidente o processo de degradação de valores como 'felicidade' e 'simplicidade'. No filme “Muito Além do Jardim”, temos uma pista sobre como nos perdemos, viramos uma farsa e a tornamos coletiva - inviabilizando para grande parte das pessoas uma reação eficaz. Por Gustavo Barreto (*).

O apresentador Luciano Huck teve recentemente uma experiência-limite, muito triste e desgastante para qualquer brasileiro. Um assalto a mão armada. Prontamente foi publicado em um grande jornal de São Paulo seu artigo-desabafo: “Pensamentos quase póstumos” (Folha de S. Paulo, 01/10/2007).

Huck alerta aos leitores que foi assaltado e poderia, naquele momento, estar morto – o que causaria uma série de conseqüências importantes, entre as quais não ver nunca mais seu segundo filho, deixar “uma multidão bastante triste”, “um governador envergonhado” e “um presidente em silêncio”. Foi uma tentativa de roubar o seu Rolex – grife de relógios que custam pelo menos 5 mil reais e até 50 mil reais.

Ele argumenta: “Provavelmente não tiveram [os assaltantes] infância e educação, muito menos oportunidades. O que não justifica ficar tentando matar as pessoas em plena luz do dia (sic). O lugar deles é na cadeia.”

Neste artigo, Luciano aponta porque considera importante o “desabafo” – como classifica seu texto – e porque estava “envergonhado” e “revoltado”. São basicamente cinco pontos: (1) Ele paga impostos: “(...) como cidadão paulistano, fico revoltado. Juro que pago todos os meus impostos, uma fortuna. E, como resultado, depois do cafezinho, em vez de balas de caramelo, quase recebo balas de chumbo na testa”; (2) Ele passa o “dia pensando em como deixar as pessoas mais felizes”, no que argumenta: “TV diverte (...)”; (3) Ele passa “o dia pensando em como tentar fazer este país mais bacana”: “(...) a ONG que presido tem um trabalho sério e eficiente em sua missão”; (4) O prazer dele “passa pelo bem-estar coletivo”: “(...) não tenho dúvidas disso”; (5) Ele é “alguém que de alguma forma dirigiu sua vida e sua energia para ajudar a construir um cenário mais maduro, mais profissional, mais equilibrado e justo (...)”. (original aqui)

Homem-lata

Este mesmo apresentador Luciano tem um quadro desta safra que “diverte”, fruto do dia que ele passa “pensando em como deixar as pessoas mais felizes”. O quadro “Lata Velha” é, na prática, uma troca: a equipe de Huck reforma (e melhora substancialmente) o carro de alguma pessoa transformada em personagem pela produção e, do outro lado, esta personagem tem que dançar, cantar ou fazer qualquer coisa na TV.

No último, em 24 de maio, um cidadão de João Pessoa teria que dançar Michael Jackson e, efetivamente, “rebolar”. A proposta foi prontamente aceita não só pelo participante, como também por sua namorada e toda a população em volta, durante a gravação na capital da Paraíba. O carro, afinal, precisava de reformas. Quem tem o dinheiro para fazê-lo dá as ordens, expressas pelo apresentador, aquele que “pensa nas pessoas mais felizes” e que “de alguma forma dirigiu sua vida e sua energia para ajudar a construir um cenário mais maduro, mais profissional, mais equilibrado e justo (...)”. Ordena ele: “Você vai ter que rebolar” (Luciano Huck, TV Globo, 24/05/2008, por volta de 15h45, e repetidamente até 16h15).

Não é um tema para poucas linhas, mas é notável a matriz religiosa de seu discurso após o roubo: durante quase todo o artigo, Luciano busca deixar claro que tem crédito pelo que se proclama como benfeitor e, de forma alguma, uma dívida. Ele tem um “crédito” conquistado e, portanto, não mereceria “um 38 na testa”.

Cadeia nacional

“Uma multidão bastante triste”, adiciono, é a multidão de pessoas que, como eu, ficam deprimidas com o fato de que o trabalho de milhões de pessoas sérias, milhões de brasileiros comprometidos com a educação e a saúde das pessoas, passem a vida toda no mais completo anonimato, sem qualquer espécie de reconhecimento “em cadeia nacional”. Alguns têm, efetivamente, destino diverso: a cadeia Stricto sensu, a prisão. Outros estão metaforicamente presos dentro de uma lógica que sufoca milhares de grupos organizados sem acesso à opinião pública – os sem-mídia.

Foi Luciano Huck que, hoje, pensando no mesmo conceito – felicidade – levou um cidadão paraibano (que aceitou de bom grado, por sua vez) para a televisão de modo a – citando – “rebolar em cadeia nacional e, depois, ter de voltar para a Paraíba, terra de cabra machos” (...) “esse paraibano macho, de batom (...) aqui do meu lado, com a mãe e com a irmã” (Luciano Huck, idem). É o mesmo apresentador que “de alguma forma dirigiu sua vida e sua energia para ajudar a construir um cenário mais maduro, mais profissional, mais equilibrado e justo (...)”.

Os acontecimentos não deixariam apenas “um governador envergonhado”: são muito mais numerosos os “envergonhados”, de distintas profissões, políticos ou não, civis ou militares, por distintos motivos. Espalham-se os envergonhados pelas mais diversas formas de classificação dos seres humanos. Pela falta de cidadania plena. Pela falta de compromisso de nossa elite nos rumos mais democráticos do país. No silêncio quanto aos assassinatos perversos de sem-terra e outras pessoas que lutam, no interior do Brasil, por direitos fundamentais (terra, segurança alimentar etc). Na defesa de um modelo econômico fracassado, que paga bilhões em juros às mesmas famílias de sempre e, na outra ponta, dá um salário de subsistência a centenas de cidadãos e deixa para as próximas gerações um meio ambiente caótico, cidades mal planejadas e uma infra-estrutura que paralisa qualquer noção de desenvolvimento.

Por fim, ainda citando o “credor” Luciano Huck, temos de fato “um presidente em silêncio”. Mas não só um presidente: temos uma série de políticos, todos com nome e sobrenome, que aceitam o jogo do poder e se vendem às empresas de “comunicação” brasileiras. “Não é à toa que a Rede Globo é uma das quatro maiores do mundo”, disse o apresentador Faustão em seu programa especial número 1.000. E não é à toa mesmo. Com tanta promiscuidade, com tanta falta de compromisso público por parte daqueles que deveriam democratizar a comunicação de massa, fica aberto o caminho para o crescimento desigual de uma empresa, que ditará o que é certo ou errado, a despeito da diversidade cultural brasileira e suas matrizes diversas.

Compromisso com o besteirol

O presidente brasileiro ora no cargo, mais popular do que nunca, foi utilizado nesta mesma emissora como a voz do poder, enaltecendo o apresentador Fausto Silva e se calando (ou sendo calado, por vezes, porém dando credibilidade aos seus censores) sobre um sem-número de questões que não deve considerar prioritárias.

A população, de uma forma geral, entende que a qualidade da TV não é boa, desde que o assunto entre em pauta. É razoável concordar com as críticas de intelectuais, sociólogos e demais formadores de opinião. Não há, porém, alternativas disponíveis. Sem meias palavras: é só besteirol. Há exceções que confirmam a regra. E é com a regra que há o compromisso cotidiano das empresas do ramo. O resto é classificado como “responsabilidade social” ou algo que o valha, relegado a um nicho de mercado.

Da farsa coletiva

Em algum momento nos perdemos, viramos uma farsa e a tornamos coletiva, o que inviabiliza para grande parte das pessoas uma reação eficaz. O episódio “Lata Velha”, descrito acima, poderia ser uma metáfora de alguns valores que ora cultivamos. “Muito Além do Jardim” (Being There, 1979), filme do diretor Hal Ashby, demonstra de forma sutil e brilhante a farsa que se constrói em torno do protagonista. Chance (Peter Sellers), um jardineiro anônimo e analfabeto, viveu toda a sua vida em uma mansão, sem nunca ter saído de casa. Seu conhecimento sobre jardinagem é enorme, porém só conhece o “mundo externo” por meio da televisão – pela qual é absolutamente obcecado.

Com a morte de seu patrão, depois de mais de meio século servindo numa mesma casa, se vê obrigado a deixar sua morada e, por acidente, conhece uma das famílias mais poderosas dos Estados Unidos. Passa a andar com pessoas riquíssimas e é apresentado, inclusive, ao presidente, que fica encantado com o humilde porém imponente homem.

A sociedade que não consegue olhar para si está destinada
a ser uma farsa, como ilustra "Muito Além do Jardim" (1979)

Chance é confundido com um astuto homem de negócios e passa a ser chamado de Chauncey Gardiner (em inglês, gardener é “jardineiro”). A confusão de nomes é criada por Eve Rand (interpretada por Shirley MacLaine), esposa do figurão que reside na mansão para a qual é levado. Tanto Eve quanto Benjamin Rand (interpretado por Melvyn Douglas), dono de fortuna incalculável, se impressionam com a naturalidade e simplicidade de Chauncey. Após a visita do presidente americano, o jardineiro passa a ser assediado pela imprensa e ganha popularidade nacional.

O filme não pode ser facilmente estigmatizado, pela riqueza de detalhes. Chance é um homem franco, cordial e se porta muito bem. Encanta seu modo simples, de fato, porém não sabe nada sobre política, economia ou qualquer outro tema mundano – daí sua força. Desta forma, a ascensão de “Chauncey” se dá em duas versões que se complementam. Na versão otimista, pela força que as pessoas dão às metáforas. Também pela importância que, mais dia ou menos dia, damos à simplicidade da vida. Na versão pessimista, à farsa coletiva que vivemos em tempos modernos (e o filme continua atual).


"Muito Além do Jardim", com Peter Sellers

Fica evidente, em uma leitura possível, que em algum momento nos perdemos. Felicidade não é mais um valor relacionado à paixão pela vida, pelas pessoas, pelo sentimento. É, no caso do quadro 'Lata Velha' da TV Globo, “a paixão pela máquina” (conforme o próprio apresentador anuncia, todo sábado). É, em outros casos, uma bolsa de estudo de 100 milhões de reais (em uma instituição privada, claro). Em alguns outros, um plano de previdência promissor para um fim de vida cômodo. Em outros ainda, sua casa mobiliada pelos benfeitores.

Não é, definitivamente, o que entendo por felicidade.

(*) Gustavo Barreto é editor de meios independentes e estudante de comunicação da UFRJ.



Algumas cenas do filme

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Um comentário:

Anônimo disse...

No final acabei cometendo uma hipérbole involuntária ;] Na verdade, são 100 milhões para a bolsa de estudos.

Gustavo (autor)