Casuísmos de Gilmar Mendes não têm limites

Celso Lungaretti

Sabatinado durante duas horas por quatro jornalistas da Folha de S. Paulo, o presidente do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes admitiu a intenção de incidir em mais um casuísmo para que o STF usurpe do Executivo a prerrogativa de decidir sobre a concessão ou não de refúgio humanitário: antecipando seu roteiro para o desfecho do caso do perseguido político italiano Cesare Battisti, Mendes afirmou que, "se for confirmada a extradição, ela será compulsória e o governo deverá extraditá-lo".

Com isto, ele responde ao boato de que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva não admitiria arcar pessoalmente com o ônus dessa decisão indigna, talvez temendo ser comparado a Getúlio Vargas, que entregou Olga Benário para a morte nos cárceres nazistas. Ou para evitar que o acusem de ter cedido às arrogantes pressões italianas e à campanha de desinformação orquestrada pela mídia reacionária brasileira.

Então, Mendes se propõe a resolver o problema simplesmente suprimindo, com uma penada do STF, vários direitos dos pleiteantes de refúgio humanitário: o de apelarem uma segunda vez ao Comitê Nacional para Refugiados Políticos (Conare), apresentando novos argumentos; o de recorrerem uma segunda vez ao ministro de Justiça; e o de ficarem na dependência de uma decisão pessoal do presidente da República, a quem cabe autorizar o governo estrangeiro a retirar o extraditando do País.

Assim, nesse prato feito que Gilmar Mendes pretende enfiar pela goela dos brasileiros adentro, há dois ingredientes altamente indigestos, que implicam uma guinada de 180º nas regras do jogo até hoje seguidas e sacramentadas por decisões anteriores do próprio STF:
  • a revogação, na prática, do artigo 33 da Lei nº 9.474, de 22/07/1997 (a chamada Lei do Refúgio), segundo o qual "o reconhecimento da condição de refugiado obstará o seguimento de qualquer pedido de extradição baseado nos fatos que fundamentaram a concessão de refúgio";
  • a transformação do julgamento do STF em instância final, em detrimento do Executivo, ao qual sempre coube tal prerrogativa.
Evidentemente, uma violência tão gritante contra o espírito de Justiça e a própria letra da Lei não será perpetrada sem resistência: se o STF embarcar nessa aventura, tudo leva a crer que o caso só se decidirá após longa e complicada batalha jurídica.

Mas, impressiona a facilidade com que um presidente do STF admite a volta das execradas práticas da ditadura militar, quando um inesgotável estoque de casuísmos era acionado para adequar as leis do País às exigências do poder. O que há de mais casuístico do que alterar-se todo o enfoque do refúgio humanitário apenas dar a um caso já em andamento um desfecho diferente do que teria à luz das leis e das tradições jurídicas brasileiras?

Engana-se Lula, entretanto, se pensa apaziguar Mendes com mais esta humilhante rendição: ao longo da sabatina, saltou os olhos que sua motivação última é trocar a toga pela faixa presidencial, ocupando um espaço à direita da própria coligação PSDB/DEM.

Talvez até, como Paulo Francis gostava de dizer, à direita de Gengis Khan...

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