Reflexões dostoievskianas

por Antonio Ozaí da Silva

Tenho o costume de fazer anotações sobre os livros lidos. Um comentário reflexivo, um trecho que chama a atenção, uma referência que permite estabelecer links com outras leituras e fatos da vida, etc. Antes, anotava em papel. Agora, na era do computador, os registros das leituras e da vida são informatizados e estão ao alcance em um clique. Foi assim que, sem querer, encontrei em meus arquivos as notas sobre o livro Memórias do subsolo e outros escritos, de Dostoievski, que li no início de 2006. *

A obra é composta por três textos: Notas de inverno sobre impressões de verão, Memórias do subsolo e O crocodilo. Boris Schnaiderman, tradutor e autor da apresentação do livro, ressalta o tom de negação da vida ocidental presente em Notas de inverno. Assim, no Capítulo V (“Baal”), “ao ligar o espírito capitalista de ganância com a religião, na Inglaterra, ele prenuncia claramente a teorização de Max Weber sobre este assunto.” (p.10).

Dostoievski ironiza o espírito burguês e a eloqüência do francês (que esconde seus pobres) e compara-o com o inglês. ** Faz uma excelente descrição da capital inglesa na época da Revolução Industrial. “E que visão dantesca ele nos transmite da cidade capitalista! Violenta e muito mais demolidora que a de Dickens, diante dos mesmos panoramas urbanos. Aquele fragrante da menininha prostituída, agarrada à moeda que recebera, tem algo de clamor desesperado. E isso pode parecer surpreendente num escritor que não acredita no socialismo e tem uma fé cega em seu povo, em seu país, cujas instituições ele nem pensa em contestar”, escreve Schnaiderman (p.11).

O Crocodilo é excelente! Nele, o autor polemiza com a intelectualidade russa sobre o desenvolvimento nacional e a influência ocidental. Sobressai a ironia ao “princípio econômico”, ou seja, a prevalência do Capital sobre todos os demais valores. O crocodilo engoliu o funcionário e este se torna, diante do “princípio econômico”, culpado. Ele aceita e procura uma maneira de lucrar com a situação em que se encontra, isto é, no interior do animal. É uma visão crítica, mas divertida!

O texto que mais me marcou foi Memórias do Subsolo. É nele que Dostoievski escreve as palavras que inspiram este blog: “Existem nas recordações de todo homem coisas que ele só revela aos amigos. Há outras que não revela mesmo aos amigos, mas apenas a si próprio, e assim mesmo em segredo. Mas também há, finalmente, coisas que o homem tem medo de desvendar até a si próprio: e, em cada homem honesto, acumula-se um número bastante considerável de coisas no gênero. E acontece até o seguinte: quando mais honesto é o homem, mais coisas assim ele possui.” (p.99).

É um texto impactante, embora seja maçante em seu início e exija perseverança do leitor. Li quanto minha filha fez uma cirurgia, em sua companhia no hospital. Não foi uma leitura agradável e talvez esse fato tenha influenciado. Não estava em plenas condições para concentrar-me. Logo nas palavras iniciais Dostoieviski afirma: “Sou um homem doente... Um homem mau. Um homem desagradável. Ceio que sofro do fígado”. (p. 65). O leitor deve imaginar o que vem depois!

Não obstante, esse texto me fez pensar sobre o ser intelectual e, especialmente, sobre as Ciências Sociais. “Juro-vos senhores que uma consciência muito perspicaz é uma doença, uma doença autêntica, completa. Para uso do cotidiano seria mais do que suficiente a consciência humana comum...”, afirma Dostoievski (p. 68). A consciência perspicaz trás à tona o sofrimento. Não há escapatória para o intelectual e cientista social comprometido com o ser no mundo e tudo o que isto envolve. Só há uma forma de evitar o sofrer: manter-se na ignorância.


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* DOSTOIEVSKI, F. Memórias do subsolo e outros escritos. São Paulo, Editora Paulicéia 1992. [Tradução do russo por Boris Schnaiderman]
** Ver o capítulo VI, “Ensaio sobre o burguês” (p. 233-245). Nesta parte, Dostoievski brinda o leitor com uma definição sobre a liberdade criativa e crítica: “O que é liberté? A liberdade. Que liberdade? A liberdade, igual para todos, de fazer o que bem se entender, dentro dos limites da lei. Mas quando é que se pode fazer o que bem se entender? Quando se possui um milhão. A liberdade concede acaso um milhão a cada um? Não. O homem desprovido de milhão não é aquele que faz o que bem entende, mas aquele com quem fazem o que bem entendem. O que se conclui daí? Conclui-se que, além da liberdade, existe a igualdade e justamente a igualdade perante a lei. Quanto a esta igualdade perante a lei, pode-se dizer apenas que, na forma em que ela se pratica atualmente, cada francês pode e deve considerá-la uma ofensa pessoal.” (p. 240)

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