Iniciativa do FSM foi um êxito

Ao contrário dos maciços encontros convocados pelo Fórum Social Mundial nos últimos anos, o Dia de Mobilização e Ação Global, realizado sábado (26/1), não encheu avenidas em todo o mundo nem ocupou uma só manchete da mídia progressista, muito menos da convencional. Mas o brasileiro Cândido Grzybowski (foto), um dos líderes mais influentes do movimento, acredita que a iniciativa foi exitosa, porque pessoas de 72 países do mundo puderam, uma vez mais, “restabelecer a cidadania”. Da Agência IPS no notícias, em Santiago. Fotos de Gustavo Barreto, no Rio de Janeiro.

O sociólogo e ativista filipino Walden Bello disse ontem: “O Dia Mundial de Ação foi algo novo, por isso não estou surpreso pela mobilizações não terem sido tão grandes. Mas, mesmo assim, tem grande impacto o fato de ter se registrado em uma grande quantidade de cidades sem que houvesse uma emergência mundial na agenda, como responder a outra invasão. Houve êxitos realmente importantes, como a grande mobilização na Cidade do México. Vamos examinar nossas experiências no primeiro Dia Global de Ação e aprender com elas. A prática as aperfeiçoará”, acrescentou, em entrevista por e-mail.

Com cerca de 10 mil participantes em todo o País, o Brasil, local de
nascimento do FSM em 2001, se transformou novamente em seu centro. No
Rio de Janeiro, o Dia de Ação coincidiu - e de alguma forma competiu – com o carnaval. Com a única exceção do México, nenhum outro Dia de Ação rivalizou com a mobilização do Brasil. Desde a Itália, onde os ativistas estavam devastados pela queda do governo de centro-esquerda e a possibilidade de uma volta triunfal do ex-primeiro-ministro Silvio Berlusconi, até Atlanta, nos Estados Unidos, apenas os mais comprometidos saíram às ruas para reafirmar que “outro mundo é possível”, o lema do FSM.

Paradoxalmente, a crise de direitos humanos em Gaza levou organizações não-governamentais palestinas a se manterem longe do Dia Mundial de Ação, temerosas de que facções políticas manipularam suas iniciativas. Débil em números, o Dia Mundial de Ação competiu com uma jornada muito rica em notícias: a vitória de Barack Obama nas eleições primarias do opositor Partido Democrata dos Estados Unidos na Carolina do Sul, a maciça fuga de palestinos de Gaza, a repressão mortal no Quênia, a morte do ex-ditador Ali Suharto e a detenção de Jérôme Kerviel, operador financeiro francês que a partir de sua casa provocou uma perda de sete bilhões de euros ao banco francês Société Générale e a quem agora é concedido o mérito de ter salvo o mundo da recessão.

A pergunta que muitos se fazem hoje no FSM é se as manchetes marcam uma diferença, porque, se assim for, o Fórum estaria a esta altura condenado ao fracasso. Mas há diferentes agendas informativas no planeta e a criação de uma própria poderia ser um tema central para os países do Sul em desenvolvimento. Até agora, o FSM não conseguiu manejar o impressionante sucesso de relações públicas de 2002 e 2003, quando os principais meios de comunicação internacionais enviavam correspondentes a Porto Alegre para averiguar do que se tratava esse “rival” do Fórum Econômico Mundial, que acontece anualmente em Davos (Suíça).

A maioria dos analistas explica hoje que tal repercussão foi resultado da novidade do FSM e de seu inesperado número de participantes. Coincidem que a escassa atenção da imprensa atualmente se deve a fatores que variam desde a censura deliberada até a falta de “atrações”, como estrelas do mundo do espetáculo ou celebridades intelectuais, que o Comitê Internacional do Fórum decidiu não promover. Astros como o vocalista Bono da banda U2 agora preferem ir a Davos, onde acreditam que podem influir nas grandes potências, em lugar de se associar com um evento de caráter vago e onde deveriam permanecer em meio à multidão.

O vídeo da “resposta de Bono à pergunta de Davos” foi vista 46.463 vezes no site YouTube até a manhã de domingo, contra apenas 1.952 visitas do vídeo de Peter Riot, diretor do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/aids. Fica claro que só quando manifestantes contra a globalização jogam pedras contra lojas do McDonald's e enfrentam a polícia, o “movimento social” consegue um espaço nos maiores meios de divulgação.

No Rio, meninas do Fórum Estadual de Jovens Negras se apresentam

Sob esta discussão está o doloroso debate interno do FSM sobre si mesmo. Nascido como um exercício intelectual para contestar a arrogância de Davos com propostas alternativas à ideologia do “fim da história” da década de 90, se transformou em um fenômeno político mundial cuja direção hoje ninguém parece ser capaz de prever, muito menos de dirigir. Walden Bello, destacado sociólogo filipino, é o promotor mais radical de uma reforma total do Fórum, para dotá-lo de uma estratégia e uma postura sobre cada um dos principais problemas do mundo.

“Creio que o Dia de Ação mundial é uma boa idéia. É um primeiro passo para transformar o FSM de um simples fórum de discussão em um âmbito de ação”, disse em recente entrevista ao TerraViva. “É essencial tomar posição sobre questões-chave como a agressão dos Estados Unidos no Oriente Médio, a opressão sionista do povo palestino e o modelo neoliberal criador de pobreza, para que o FSM possa ser vibrante e relevante. Pelo contrário, negar-se a tomar uma posição sobre estes assuntos com o argumento de que isto afugentará alguns grupos é uma forma segura de reduzir a importância do movimento”, ressaltou.

Mas, o economista Pedro Stédile, um dos fundadores do FSM e principal ideólogo do Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra, acredita que essa proposta é uma ilusão. “O FSM é um espaço de debate, intercâmbio e reflexão. Seria uma ilusão crer que é possível adotar mais resoluções práticas ou plataformas ideologicamente unidas. Isto poderia dispersar energias e nos fecharmos em lutas ideológicas internas”, afirmou. “Apostamos que o FSM se converterá em uma feira de idéias”, disse Stédile à IPS.

Para Anuradha Mittal, uma ativista indiana que dirige o Instituto Oakland dos Estados Unidos, “os anteriores FSM nos deram esperança em outro mundo, e agora devemos demonstrar que esse mundo pode ser conseguido. Fazer com que os partidos e os líderes políticos prestem contas às pessoas é um valioso papel que os movimentos sociais podem desempenhar. Estes garantem a legitimidade, espiritualidade e os valores da ação política. Não é preciso que os movimentos sociais se convertam em partidos políticos”, disse ao TerraViva.

Esse aspecto espiritual não deve ser subestimado. Em 2001, quando nasceu o FSM, o cenário político mundial parecia estático, consolidado pela ideologia neoliberal e de mercado surgida das ruínas do enfrentamento Leste-Oeste no século XX. Desde essa primeira edição, oito novos governos da América Latina foram eleitos com base em plataformas semelhantes aos princípios do FSM, e embora sigam diferentes estratégias para acabar com a pobreza e construir economias sustentáveis e eqüitativas, todos concordam na necessidade de unir-se contra o controle que os Estados Unidos exercem sobre a região.

Em 2005, em uma assembléia da Organização dos Estados Americanos, conseguiram derrotar uma iniciativa encabeçada pelos Estados Unidos para estabelecer um acordo continental de livre comércio. Disse Grzybowski: “Estou completamente seguro de que o nascimento do FSM em Porto Alegre esteve relacionado com as condições anteriores da região: uma região que se rebelava contra as políticas neoliberais, que estava comprometida com o processo de democratização e que experimentava uma onda esquerdista após as ditaduras militares. O FSM não produziu essa onda por si mesmo, mas seria difícil concebê-la sem ele”, acrescentou.

Em janeiro do próximo ano, o FSM terá novamente um centro de reunião, em Belém, no Estado do Pará, a milhares de quilômetros de onde nasceu e talvez a séculos de distância do industrializado e moderno sul brasileiro. Ainda não há avaliações, mas é provável que o movimento conclua que qualquer “Dia Mundial de Ação”, com ou sem uma estratégia política mundial, necessita de um lema único (mais do que celebridades) para despertar a consciência pública e gerar mobilização.
(*) Este artigo foi publicado originalmente no último dia 27/01/2008 pelo TerraViva e reeditado para o serviço de notícias da IPS. (Envolverde/ IPS)


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Fórum Econômico Mundial e Fórum Social Mundial: possíveis laboratórios para uma democracia global?

A maneira como os grupos envolvidos no FEM ou no FSM lidariam com tamanha variedade, se há contornos de dominação sobressaindo nas ações destes agentes, podem nos dizer hoje se a aposta em uma esfera pública global futura, ou uma democracia mundial, é fadada a ser um grande fracasso. Por George Gomes Coutinho (*).

No mês de janeiro, sobretudo nos últimos seis anos, parte significativa da grande imprensa mundial mobiliza-se em torno de dois grandes eventos que, em maior ou menor escala, sintetizam e debatem no seu desenrolar parcela nada desprezível dos problemas que acossam a humanidade. Estão presentes, enquanto objeto de discussão, temáticas que vão desde a proliferação de doenças sexualmente transmissíveis (com destaque para a AIDS), bioética, patentes, desenvolvimento, religiosidades, tecnologias de informação, mercado financeiro etc., o leque é, pois, multifacetado. E, direta ou indiretamente, a temática da democracia, ponto que irei retomar adiante, também está presente em discursos e posicionamentos.

O primeiro destes eventos, o Fórum Econômico Mundial (doravante FEM) representa hegemonicamente a reunião da fração rica do mundo, ocorrendo seu grande encontro anual desde 1971 até a presente data. Segundo o Wall Street Journal de 20 de janeiro de 2003, naquele mesmo ano contavam-se mais de 1000 (mil) grandes corporações presentes nas reuniões realizadas em Davos, aquela pequena e sofisticada estação de esqui na Suíça. Evidente que também há a presença, incensada, de partícipes do showbusiness internacional como a atriz Sharon Stone ou o cantor da banda de rock irlandesa, Bono Vox, do U2 o que ajuda a atrair os olhares ávidos por novidades dos correspondentes da imprensa.

Contudo, em meio à tamanha pirotecnia e paparazzos, segundo dados disponibilizados pelo próprio evento em seu sítio eletrônico (http://www.weforum.org), nada mais que 69% dos participantes da última reunião, no ano de 2005, eram provenientes da dupla Europa/América do Norte. Parte significativa do “restante” do mundo divide-se nos 31% restantes. Seja como for não é exagero afirmar que os grandes “Senhores” do mundo, sejam senhores de guerra ou da paz, por lá se encontram, realizando uma interessante mistura de grandes e pequenos líderes mundiais com homens de negócio. A ausência das “mulheres de negócios” deve-se ao fato de que estas ainda sejam minoria no FEM, ao menos se tomarmos como referência o ano de 2005.

O Fórum Social Mundial (doravante FSM) é representado comumente como a contraparte do FEM, o seu grande antagonista, seja pela mídia ou por seus idealizadores. Evento realizado primeiramente no ano de 2001, concebido por Oded Grajew (ex-presidente da Grow brinquedos), Francisco Whitaker (arquiteto de formação e atuante em movimentos sociais de base católica) e Bernard Cassen (diretor do jornal Le Monde Diplomatique), o FSM viria congregar as forças anti-globalização que atuaram em protestos que sacudiram as sociedades centrais como o de Seattle (EUA) em 1999 e, depois, iria fornecer elementos para outras manifestações, como a ocorrida em Gênova, Itália, no mês de julho do ano de 2001.

Desde então, as reuniões anuais ocorridas em Porto Alegre (Brasil), tendo apenas uma edição acontecido na cidade de Mumbai (Índia), funcionam para tentarmos compreender quais seriam as apostas e formatos encontrados para “Um outro mundo possível”. Também tal estratégia metodológica pode ser interessante na observação do FEM, ou seja, nos discursos elaborados pelos freqüentadores desta reunião também anual.

Retornando ao FSM, este é inegavelmente plural, multilingüe, multiétnico, multicultural e dotado de uma tolerância religiosa que faz com que convivam crenças monoteístas, politeístas e ateus, porém convivendo com uma séria fragilidade, que seria a obtenção de um maior número de representantes da maior gama de tendências político/culturais possíveis, sejam de uma esquerda mais “tradicional”, ou de grupos oriundos da chamada “nova esquerda”. Inclusive, o formato “policêntrico” em voga, com reuniões acontecendo em diversas partes do mundo visa obter maior legitimidade perante os grandes movimentos atuantes na esfera global objetivando ser um facilitador para a presença dos militantes que, em sua maioria, são auto-financiados. Caracas (Venezuela), Bamako (Mali) e Karachi (Paquistão) são as sedes desta tentativa no ano de 2006, para uma maior diversidade humana no FSM.

Estes dois Fóruns nos chamam a atenção por ocorrerem em um momento histórico complexo no que diz respeito à democracia. O “refluxo” é uma realidade pois estaríamos vivendo, ao mesmo tempo, o espraiamento das democracias representativas liberais no mundo e também, parcialmente, o seu questionamento. Seja pela baixa freqüência do eleitorado nas urnas em determinados países centrais, ou pela invasão efetuada pelos EUA no território iraquiano em nome de uma democracia representativa imposta realizada às expensas do povo daquele país, ou, mais um paradoxo, na ascensão de grupos de extrema direita na Europa, que consideram normalmente a democracia um artefato de pouca utilidade, parecendo ignorar solenemente que eles mesmos estejam em ascensão não a despeito das nossas democracias “formais” e, sim, em conseqüência destas. Se, por um lado, “nunca fomos tão democratas” aparentemente este regime ou procedimento, se não for acompanhado por inovações no campo institucional, pode vir a pique ou ser ainda mais desgastado no médio/longo prazo.

Uma outra grande questão, o que faz com os dois Fóruns possam ser vistos como um laboratório para a democracia contemporânea: os chamados “contextos pós-nacionais”. A despeito do tamanho exagero de determinados analistas no que diz respeito ao fenômeno da globalização, é inviável dizer que “nada mudou”. Se o capitalismo desde o século XVI, se assim o quisermos, guarda uma vocação global, contudo, este jamais viu tamanha velocidade de comunicação. Esta comunicação é acelerada, dado o avanço das tecnologias, atrelado a uma notória disseminação da cultura material do capitalismo, a despeito de ocidente e oriente e, evidentemente, de sua distribuição desigual.

Também é contraproducente ignorar a difusão de sua cultura simbólica, expressa em valores, objetos de desejos e séries de longa duração que nos chegam pela televisão a cabo, etc.. Há alguma homogeneidade comportamental em curso, no que tange as classes médias, que supera os limites dos grandes Estados-Nacionais. Mas, a despeito da enorme importância do campo simbólico e da descoberta de novas subjetividades oriundas deste contexto, sabemos que há um grau de dependência transnacional abissal no campo econômico. As reconfigurações no mundo contemporâneo, como a criação de megablocos comerciais como a União Européia, nos apontam para desafios inelutáveis. A constante circulação de imigrantes nos leva ao problema de uma cidadania que pode, e necessita, ser pensada para além do espaço dos Estados-Nacionais se não quisermos deixar também estes blocos nascerem já “abortados”.

As teorias da democracia, que remontam ao seu nascedouro na Grécia antiga há pelo menos 2500 anos e que depois foram repaginadas para conviver com os Estados e a sociabilidade burguesa que se edificam a partir do século XVIII, chegam ao século XXI necessitando lidar com mais esta demanda. Neste sentido, respondendo a pergunta que confere título a este ensaio, eu digo que o FEM e o FSM podem ser vistos, se assim o quisermos, como laboratórios para pensarmos novas propostas no campo democrático, sobretudo, uma nova práxis democrática, necessariamente mais inclusiva, que saiba compreender e lidar com as vicissitudes do atual momento histórico.

Nas atuais circunstâncias em que a Organização das Nações Unidas (ONU) demonstra pouco poder de aglutinação e ação, embora mantendo alguma legitimidade simbólica, a movimentação mais ou menos espontânea de diversas categorias de agentes em ambos os Fóruns pode trazer oportunidades únicas para estudarmos esse fenômeno na devida complexidade que ele exige. Não há, ainda, uma esfera pública global. Ou, se há uma esfera pública desta magnitude, esta é ainda incrivelmente incipiente, trazendo poucos efeitos práticos para o exercício da cidadania. Mas, há a sua matéria prima: uma ampla variedade discursiva. Retornando aos dois fóruns poderíamos arriscar dizer que há esboços de uma esfera publica que lida com diferentes linguagens, valores, apostas, religiões, moralidades, etc..

A maneira como os grupos envolvidos no FEM ou no FSM lidariam com tamanha variedade, se há contornos de dominação sobressaindo nas ações destes agentes, podem nos dizer hoje se a aposta em uma esfera pública global futura, ou uma democracia mundial, é fadada a ser um grande fracasso. Os poucos analistas que se dedicam aos contextos pós-nacionais, até agora, tem dito que dificilmente conseguiremos erguer algo assim. Todavia, as ciências relacionadas a política, sejam a sociologia ou antropologia, história, filosofia política, relações internacionais, além da própria ciência política, terão que, mais cedo ou mais tarde, atentarem com vagar a este novo problema.

(*) George Gomes Coutinho é Mestrando em Políticas Sociais - UENF e Membro do Núcleo de Estudos em Teoria Social (NETS), coordenado pela professora Dr ª Adelia Miglievich - UENF.


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