Raça e Classe: a luta pela alteridade

Continuamos a explicar as diferenciações sociais a partir das diferenças biológicas, ainda que também se utilize das diferenças sociais para legitimar as hierarquias. A questão não é dizer que não existe uma substância chamada raça, mas sim reconhecer que ela é uma categoria social, utilizada na vida social para fazer reconhecer e estabelecer distinções e hierarquias sociais. Por Igor Vitorino (*).

Recentemente, em 2006, num seminário no Centro Cultural Banco do Brasil, o conferencista apresentava a interpretação destoante de Manuel Bonfim sobre a questão da viabilidade do Brasil diante de sua matriz racial. Segundo o conferencista, o eminente intelectual brasileiro defendia que o Brasil não era um pais birracial, como os implantadores do sistema de cotas defendem hoje. Manoel Bonfim seria avant-lettre anunciador da não existência de raças, demonstrando o uso do racismo como forma de dominação. A partir dessa proposição que destoava da agenda pública no início do século, o nobre conferencista argumentou para o plenário: não havendo raças, não há sentido na política de cotas. As cotas estariam produzindo um país bicolor, impulsionando a fragmentação da unidade da nação – exclamava acidamente o sociólogo.

Nessa linha de argumentação, construiu-se uma conclusão de que as políticas de cotas racializam as relações sociais, pois impulsionam os indivíduos a interagirem a partir do reconhecimento de sua identidade étnica, em primeiro lugar. Para contestar essas políticas, o conferencista novamente chamou para o debate a questão de que o problema é de classe, pois a grande maioria dos negros estariam nas classes populares.

Entretanto, o estudioso se esqueceu de que, apesar da Física moderna desde Galileu ter descoberto que o sol não gira em torno da terra, não é impossível encontrar muitos que pensam o contrário. Ora, se a biologia descobriu que só há uma raça humana e, inclusive, que ela partiu da África para os outros continentes, não significa que essa informação irá diluir a ideologia do racismo e a representação social da diferença pela idéia de raça, que constituem o tecido social desse país.

Continuamos a explicar as diferenciações sociais a partir das diferenças biológicas, ainda que também se utilize das diferenças sociais para legitimar as hierarquias. A questão não é dizer que não existe uma substância chamada raça, mas sim reconhecer que ela é uma categoria social, utilizada na vida social para fazer reconhecer e estabelecer distinções e hierarquias sociais, que ela serve para julgar moralmente o outro.

Com a crise do Estado do Bem-Estar Social na Europa e nos Estados Unidos, as diferenciações biológicas e diferenciações étnicas e culturais têm sido tomadas como justificava das diferenciações sociais, e usadas como explicação para a crise que vivem esses países. Muçulmanos, africanos, indianos são visto como os estranhos produtores da desordem, ameaçadores da unidade nacional. O preconceito racial e o racismo se tornam armas que escondem os processos de mudanças no capitalismo central e tendem a culpar os explorados por sua própria exploração.

É claro que os efeitos de classe podem se unir aos efeitos de status (raça), entretanto não nos podemos deixar enganar pelas facilidades ao querermos sobrepor as questões raciais às questões de classe. O professor Milton Santos, um dos mais importantes intelectuais brasileiros da atualidade, pertencia à classe média intelectualizada, entretanto essa posição de classe não se traduzia em anulação dos efeitos do status, não era reconhecido como cidadão completo. Assim como a estratégia de Pelé de não discutir sobre sua negritude evidencia que a condição de negro lhe traz alguns problemas ligados às interações sociais.

Creio que o ódio que se levanta recentemente contra as políticas de cotas se inscreve na disputa pelo poder simbólico, de se poder dizer quem somos. É isso que está em jogo. Negar que o poder social no Brasil é branco é fechar olhos aos efeitos materiais e imateriais dessa realidade. Encontramos, é claro, negros em todos os lugares em que vamos, mas quase sempre estão na cozinha, estão dirigindo o carro de alguém, estão nas portaria de prédios, limpando as ruas, etc. Não temos nada contra essas profissões, elas são dignas e devem ser mais valorizadas, entretanto por que não há mais negros em outros lugares sociais?

A grande mudança contemporânea hoje na problematização do preconceito racial e do racismo no Brasil é que sua problematização enquanto problema social está sendo construída pelos sujeitos que vivem/viveram esse drama. A emergência de uma elite intelectual negra ou membros de classe média colocou em disputa os meios simbólicos e materiais de produção das interpretações sobre a condição da negritude, de combate às imagens e práticas depreciadoras dos negros, cujo maior efeito eram construir um self-ideal negador de nós mesmo.

Voltando ao seminário, o palestrante afirmava que o Brasil não era um país birracial e que as cotas irão institucionalizar o racismo e o preconceito racial, que é necessário uma política universal de educação básica. Não discordo. Entretanto ele não conseguia explicar porque as positividades e qualidades sociais têm como centro imagens da população branca. Ter um diploma, em última instância, não revolverá o problema do negro, mas possibilitará que ele vivencie a positividade de sua condição, possibilitará outra experiência de mundo e construção de outras perspectivas, inclusive, para outros negros. O mais importante nas políticas de cotas é dotar de instrumentos intelectuais e condições sociais a população negra, possibilidade de que o que sempre foi silenciado se torne grito, na história. Não sabemos quais serão os problemas dessa escolha, mas poderemos dizer que tentamos. Nós, indíos e negros, precisamos reinterpretar o Brasil.

Se fomos escravos, a vergonha não é nossa, mas de quem nos escravizou. Lutamos pela liberdade, sim – que o digam os muitos negros direcionados ao tronco, os alforriados, os que trabalhavam a mais para conseguirem pagar suas alforrias, as diversas estratégias de resistências, individuais e coletivas. A questão é que as interpretações do Brasil foram feitas a partir dos dilemas e questões postos um determinado tempo; esse é primeiro momento em que essas questões e dilemas têm a presença de outros sujeitos, não mais como objetos, mas como sujeitos, buscando reinterpretar a sua presença. Queremos nosso reconhecimento como cidadãos plenos porque cada cantinho e pedra colocada em construções deste país tiveram o dedo de nossos avós. Se não temos os sobrenomes deles – porque até isso foi negado – temos a visibilidade de suas mãos que construíram sob chicotada, negociação, rebeldia, protestos a nação brasileira.

Sabemos que as explicações da presença maior dos negros nos setores mais subalternos da sociedade não se explica somente pela questão racial, mas também pelo modelo de desenvolvimento concentrador de renda e autoritário que esse país adotou. A formulação dos problemas raciais por aqueles que os sofrem abriu, enfim, espaço para uma nova formulação do que seja o Brasil. Talvez o preço a ser pago seja mesmo o processo de racialização da sociedade, emergência de interesses apoiada na diferenciação racial, o que nos colocará novos desafios, inclusive da descoberta de que os donos do poder continuam brancos.

Mesmo assim, fica-nos uma pergunta: a quem interessa a reação pacífica dos negros à sua condição de inferiorização? O ódio racial cada vez mais impulsionado também não estaria ligado à inexistência de instituições que reconheçam o negro como cidadão? Até quando nós negros teremos que dizer, peremptoriamente, que não somos marginais ou exclamar: "E aí, dona, não vou roubar a sua bolsa"? Ou perceber que, na rua, uma pessoa adiantou os passos ao ver um de nós se aproximando dela? A luta do negro no Brasil carrega a mesma problemática da luta dos trabalhadores, ou seja, torna as condições objetivas, de negro e trabalhador, em condições subjetivas, tornar-se sujeito diante de seu outro, os brancos e o Capital. Todavia, no Brasil, constantemente são bloqueadas essas possibilidades pelos discursos nacionalistas, da pacificidade do brasileiro, da cordialidade, da democracia racial. Dizia o revolucionário russo Leon Trotski: "Se o sol não é de todos, por que ele tem que brilhar para alguns?"

É claro que os negros, mais do que na sua condição de trabalhadores, têm cada vez mais conseguido tornar seus interesses expressos na agenda pública – efeito da ascensão social de muitos negros – entretanto, precisamos construir uma agenda que concilie as condições sociais de negro e as condições de trabalhador. Meus avós reconheciam, com muita dor, o lugar social deles, sabiam que eram pobres e que eram negros, mesmo que não verbalizassem. Nós que iniciamos um processo de individuação queremos ser reconhecidos como cidadãos, temos o direito disso, não queremos que nossas ações sejam avaliadas pelas nossas características físicas e biológicas, mas sim por partilharmos a mesma humanidade. Esse é medo do racista: ver no outro a sua semelhança.

Acredito – ao contrário do intelectual que grita contra a destruição do sonho brasileiro do país pacífico – que a bicoloridade e multicoloridade brasileira dará início, nesse país, a uma nova releitura de sua história e a uma rediscussão de sua nacionalidade. Queremos que a diferença seja reconhecida não só como direito, mas que ela se expresse na apropriação dos recursos materiais e imateriais desse país. A raça, enquanto construção social, existe, orienta e coordena as ações sociais e o imaginário da sociedade brasileira, portanto é preciso abrir espaço para raças e etnias que são oprimidas, esquecidas, escondidas, indignificadas nessa relação: índios, negros... Enquanto na minisérie Malhação só aparecerem imagens e modelos de beleza branca, enquanto um juiz julgar pela aparência, continuaremos um país bicolor ou tricolor, onde só têm direito à fala os brancos. Queremos nosso direito à fala.


Notas
[1] “Manoel Bomfim (1868-1932), intelectual sergipano, autor de A América Latina (1905), Através do Brasil (1910) — co-escrito por Olavo Bilac (1864-1934) — etc., além de uma trilogia composta por: O Brasil na América (1929), O Brasil na História (1930) e O Brasil Nação (1931). Livros dedicados à análise da formação da nacionalidade brasileira. O autor se empenhava em criticar os historiadores e os políticos do Brasil que, segundo ele, teriam deturpado a história nacional e contribuído para a "degradação" da nação. Interessado em resgatar as "qualidades características do povo" brasileiro — que considerava esquecidas pela historiografia —, ele desenvolveu uma reflexão sobre o País e seus habitantes, em que é possível identificar diálogos com pensadores de seu tempo e de outros tempos”. (Gontijo, 2003)

Bibliografia
GONTIJO, Rebeca. Manoel Bomfim: "pensador da história" na Primeira República. Rev. Bras. Hist. , São Paulo, v. 23, n. 45, 2003 . Disponível em:. Acesso em: 23 Oct 2007.

(*) Igor Vitorino é formando em história pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Mestrando em Planejamento Urbano e Regional -IPPUR\UFRJ.


_______________________________________
www.consciencia.net

Nenhum comentário: