Alemanha, 1968: sonhos e pesadelos de uma geração derrotada

Por Mário Maestri (*).

Já é habitual a apresentação pela editoria, cinematografia, grande mídia, etc. européia dos “Anos de Chumbo” como mero resultado da ação de jovens desajustados que, no contexto de cultura esquerdista da violência, entregaram-se à prática do terrorismo pelo gosto da aventura. A essa leitura associa-se agora a apresentação das jornadas de 1968, que cumprem quarenta anos, como gestação dos anos de violência vividos na década seguinte.

Na Alemanha, essa explicação ideológica daqueles complexos embates exige mergulho na mistificação, sobretudo porque os acontecimentos propiciados pela Banda Baader-Meinhof, principal grupo guerrilheiro da Alemanha Federal, iniciaram-se e concluíram-se com atos de sangue promovidos, não pelos terroristas derrotados, mas pelo Estado alemão vitorioso. Também devido ao epílogo dramático, a Fração do Exército Vermelho [RAF] assombra ainda a Alemanha, exigindo uma catarse histórica jamais realizada.

Execuções a Sangue Frio

Na madrugada de 7 de maio de 1977, Ulrike Meinhof, de 33 anos, a mais conhecida militante da RAF, foi morta na prisão por policiais ou militares alemães. Por solidariedade diante do inimigo comum, o mundo político europeu manteve silencio sobre o frio assassinato que reavivava a ferida ainda semi-aberta do excídio nazista. A execução exacerbou o esforço dos remanescentes da organização, em profundo isolamento social, para libertar os companheiros sob risco de morte na prisão.

Em 5 de setembro de 1977, um comando da RAF seqüestrou o patrão dos industrialistas da Alemanha, exigindo em troca militantes presos. Em 13 de outubro, comando da Frente Popular pela Libertação da Palestina, solidário, seqüestrou um Boeing 737 da Lufthansa com oitenta passageiros, para fortalecer o pedido de libertação dos presos. Na madrugada de 17 de outubro, comandos alemães assaltaram o avião, libertaram os passageiros, executando os guerrilheiros palestinos.

Na manhã do dia 18, três fundadores da RAF, Andréas Baader, Jan-Carl Raspe e Gundrun Ensslin, também foram mortos nas celas. O governo alemão apresentou as execuções como suicídios, sem preocupar-se em explicar como os presos obtiveram em cárceres de máxima segurança pistolas exclusivas das forças armadas e dispararam, à distância, em suas próprias nucas.

História para Jovens e Adultos

Em 2003, Alois Prinz publicou, na Alemanha, Desocupem as estradas dos sonhos: a vida de Ulrike Meinhof, lançado, em 2007, na Itália, pela editora Arcana. Com o livro, o jornalista alemão de 49 anos, autor de biografias para jovens, com sucesso entre os adultos, junta-se ao esforço permanente de justificação dos crimes de Estado e de encobrimento das jornadas anti-capitalistas dos anos 1960-1970 na Alemanha Federal. Jornadas de rica complexidade, envolvendo dezenas de milhares de ativistas e centenas de milhares de simpatizantes através de todo o país, nas quais as poucas dezenas de militantes da RAF assumiram caráter protagonista apenas devido à midiatização orquestrada pelo governo alemão na época.

A biografia aborda inicialmente as origens familiares e os primeiros anos de Ulrike Meinhof, que viveu até os dez anos sob o nazismo. Análise que apresenta, sem aprofundar, a dilaceração, no após-guerra, dos democratas e socialistas alemães, diante da reconstituição do Estado autoritário, expressão do grande capital que sustentara a barbárie nazista. Uma ordem democrática que, sob o comando das forças conservadoras, ilegalizou o Partido Comunista; proibiu o emprego público aos marxistas; institucionalizou o controle ideológico dos sindicatos; rearmou o país, exigindo o armamento atômico, sempre sob a hegemonia do imperialismo estadunidense.

À contextualização dos anos quarenta e cinqüenta segue-se entretanto uma muito avara abordagem do forte confronto político, ideológico e social vivido na Alemanha Federal nos anos de 1960 e 1970. Confronto estreitamente determinado pela atração-repulsão exercida pela República Democrática Alemã, quase ausente na abordagem. Para Alois Prinz, é como se os acontecimentos das décadas de sessenta e setenta não tivessem tido qualquer relação com a derrota e anexação da RDA, sob a pressão da avalanche neoliberal geral dos anos oitenta.

Os Grandes Ausentes

Alois Prinz praticamente não se refere ao movimento operário alemão, sob o controle de social-democracia ainda formalmente marxista mas já subordinada ao grande capital alemão e mundial, o que lhe permitiu ascender ao governo em 1969. Não há igualmente recapitulação pertinente da rica oposição, em boa parte revolucionária e anti-capitalista, de parte da juventude alemã, que se exprimiu criativamente no mundo das artes, da política, da cultura, do comportamento, etc. Realidades paradigmáticas como as “comunas” de Berlim são liquidadas pelo autor com referências sarcásticas e ideológicas.

A apresentação da esquerda bordeja ao caricatural. Os militantes incultos e desinteressados com o marxismo do autor chocam-se com geração que redescobriu a literatura marxiana e marxista, tradicional e heterodoxa, consumindo vorazmente autores como Lênin, Trotsky, Rosa Luxemburgo, Walter Benjamin, Theodor Adorno, Erich Fromm, Georg Lukacs. Com a abordagem seletiva de debates da época, Alois Prinz apresenta o ativismo anticapitalista como negação da vida, que levaria inexoravelmente à melancolia, registrando o objetivo socialmente quietista desse livro destinado à juventude.

É também pobre a abordagem de temas essenciais como a União Socialista dos Universitários da Alemanha [SDS] e o atentado a Rudi Dutschke, líder da Oposição Extra-Parlamentar, em 11 de abril de 1968. Incentivado pelo grupo editorial Springer e possivelmente organizado pela polícia secreta alemã, o atentado motivou fortes manifestações estudantis através do país. Falecido em 24 de dezembro de 1979 devido às seqüelas do atentado, Rudi Dutschke opunha-se às propostas de “luta armada” propugnadas pela RAF. Seu movimento promoveu mobilizações de sessenta mil participantes, entre estudantes, operários e populares.

Grande Ausente

Em Desocupem as estradas dos sonhos, o principal e grande ausente é o enorme confronto da época entre o imperialismo estadunidense e seus aliados e o impulso revolucionário mundial que, após as vitórias da revolução anticolonial argelina e socialista cubana se espraiava através do mundo, incendiando Vietnã, Camboja, Palestina, Pérsia, Angola, etc. Confronto que explodiria, em maio de 1968, na França, levando o espectro da revolução operária ao coração duro da Europa Ocidental.

É precisamente a ignorância do confronto mundial entre o mundo do capital e do trabalho, que se expressava igualmente em forma oblíqua no embate entre Leste e Oeste, que permite ao autor apresentar a guerrilha urbana alemã como simples resultado da atração pela violência de jovens esquerdistas desorganizados para a vida. Os militantes da RAF de Alois Prinz são semi-adolescentes incultos, quase delinqüentes, como Baader, ou intelectuais protagonistas, de hábitos burgueses, frustrados por vida amorosa fracassada, como Ulrike Meinhof.

Sobretudo, os anti-heróis dessa aventura política dramática são péssimos pais, que doutrinam os filhos desde o nascimento para, a seguir, abandoná-los sem dó a todos os perigos imagináveis, a fim de dedicaram-se com maior liberdade à vida de guerrilheiros tresloucados. Abordado longamente com sentimentalismo pegajoso, o tema “filhos abandonados” demarca em forma gritante os objetivos do autor de vacinar afetivamente a juventude alemã atual contra o vírus do radicalismo anticapitalista.

Sem Coca-Cola, não é possível!

A desconstrução literária dos militantes da RAF é levada ao extremo também no relativo às capacidades de militantes. Absolutas nulidades políticas, como guerrilheiros são verdadeiros diletantes, chegando ao desplante de exigirem, em pleno campo de treinamento palestino, máquina distribuidora de Coca-Cola! O que não impede que, na vertigem da atração pela violência pura, segundo o autor, descubram uma forte “paixão pelas armas”.

A assinalada explicação dos sucessos abordados, como produto de idiossincrasias pessoais, à margem dos confrontos mundiais dos anos 1960 e 1970, fecha definitivamente a possibilidade de compreensão da gênese de pequenos grupos armados – e do apoio que conheceram, ainda que pontual e decrescente – como a RAF, na Alemanha; as Brigadas Vermelhas, na Itália; a Ação Direta, na França, etc. Grupos minúsculos que, sob influxo de uma forte crise social e política mundial, autodenominavam-se em forma protagonística vanguarda de combates operárias e populares dos quais mantinham-se estranhos e dissociados, orgânica e politicamente.

Ao abordar a vida dos militantes da RAF na prisão, Alois Prinz quase justifica as macabras experiências alemãs de longas reclusões à margem de estímulos visuais e sonoros, com o objetivo de destruir os prisioneiros, sem violências físicas direta, mais tarde generalizadas pelos estadunidenses, após o 11 de setembro. Violências que levaram os presos da RAF a greves de fome, como as empreendidas por Holger Meins que, com 1,83 de altura, morreu de inação, com 39 quilos, em novembro de 1974, contribuindo para que nova geração de ativistas seguisse em luta cada vez mais isolada e sectária.

Na conclusão de Desocupem as estradas dos sonhos: a vida de Ulrike Meinhof, já despudoradamente, Alois Prinz lava as mãos no que se refere à morte de sua biografada e de seus companheiros, avalizando tanto a possibilidade do suicídio, como a das execuções, questão, para ele, quase de menor importância. “[...] entre os companheiros e simpatizantes surgiu o suspeito que os detidos tivessem sido assassinados. A questão se e fosse tratado de homicídio ou suicídio tornou-se uma questão de fé.”

Uma História sem Fim?

Apenas em 1998, já desmobilizada, a RAF realizaria autocrítica parcial, ao anunciar sua dissolução: “A RAF foi uma tentativa revolucionária de uma minoria, em oposição à tendência da sociedade, de contribuir à modificação das relações capitalistas [...]. A conclusão deste projeto demonstra que não podíamos fazer daquele modo. Mas não renegamos a necessidade e a legitimidade da revolta.”

Nesse então era já claro que a luta iniciada em 1969-70, sobretudo após o enorme refluxo da vaga revolucionária e vitória mundial da contra-ofensiva neoliberal, favorecera apenas a demonização do ativismo social na Alemanha e a ampliação da legislação autoritária que se mantém, em boa parte, até hoje. Realidades que sugerem o sentido da instrumentação dos sucessos pelo Estado alemão, desde seus inícios. O próprio Alois Prinz assinala rapidamente que as primeiras armas e bombas obtidas pelos estudantes, após o assassinato do universitário Benno Ohnesorg, em 1967, por um policial, foram cedidas pelos serviços secretos alemães...

Em março de 2007, Brigitte Mohnhaupt, de 57 anos, membro da segunda geração da RAF, obteve liberdade condicional, após 24 anos de prisão. Três outros membros da RAF, Christian Klar, de 54 anos, Eva Sybille Haule, de 52, e Birgit Hogefeld, de 50, seguem ainda na prisão. A liberdade de Brigitte e a próxima libertação de seus companheiros, após cumprirem as penas exigidas pela lei aos condenados à prisão perpétua, ensejou campanha de imprensa e declarações de órgãos patronais denunciando a libertação de esquerdistas que, mesmo renegando os atos violentos incondicionais, não abdicaram de suas convicções sociais.

Imprensa e associações patronais que, com seu silêncio cúmplice, permitiram que, nas últimas três décadas, dezenas de milhares de oficiais, soldados e funcionários nazistas, responsáveis pelas mortes de milhões de civis, velhos, adultos e crianças, morressem gozando das pensões recebidas pelos serviços prestados ao Estado alemão. Um Estado que, até hoje, nega-se a conhecer suas responsabilidades e levar à justiça os responsáveis diretos e indiretos pelas execuções, a sangue frio, dos militantes da RAF, em maio e setembro de 1977.

(*) Mário Maestri, 59, é professor do Curso e do Programa de Pós-Graduação em História da UPF. É autor de, entre outros, Antonio Gramsci: vida e obra de um comunista revolucionário, escrito em associação com G. Candreva [São Paulo: Expressão Popular, 2007]. E-mail: maestri@via-rs.net

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