Celso Lungaretti
A ditadura militar acabou em 1985, mas existe atualmente um prisioneiro político no Brasil: o escritor italiano Cesare Battisti.
Desde o último dia 15 de janeiro, quando foi publicada no Diário Oficial a decisão do Governo brasileiro concedendo-lhe refúgio humanitário, ele deveria ter sido colocado em liberdade, para escrever seus livros e viver em paz neste país que sempre se notabilizou pela acolhida generosa aos perseguidos políticos de todas as nações e tendências ideológicas.
Tal entendimento foi reforçado pela Comissão de Estudos Constitucionais do Conselho Federal da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), ao acatar parecer do jurista José Alonso da Silva, um dos maiores constitucionalistas brasileiros da atualidade, segundo o qual "qualquer que seja a decisão do Supremo Tribunal Federal no processo da extradição, esta não pode mais ser executada, tendo em vista a concessão da condição de refugiado do extraditando".
Cesare Battisti está preso no Brasil há exatos 25 meses, por determinação do STF, que acolheu prontamente um pedido italiano neste sentido.
No entanto, sustenta a OAB, "a decisão do Ministro da Justiça, concedendo a condição de refugiado a Cesare Battisti, sob ser um ato da soberania do Estado brasileiro, está coberta pelos princípios da constitucionalidade e da legalidade".
E, o que é mais importante, "em face dessa decisão, e nos termos do art. 33 da Lei 9.474, de 1997, fica obstada a concessão da extradição, o que implica, de um lado, impedir que o Supremo Tribunal Federal defira o pedido em tramitação perante ele, assim como a entrega do extraditando ao Estado requerente, mesmo que o Supremo Tribunal Federal, apesar da vedação legal, entenda deferir o pedido" (grifo meu).
Foi o que afirmei quando, sabatinado pela Folha de S. Paulo, o presidente do STF Gilmar Mendes admitiu uma hipótese juridicamente indefensável: "Se for confirmada a extradição, ela será compulsória e o governo deverá extraditá-lo".
A imprensa propalara o boato (já que nenhuma fonte o confirmava) de que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva teria mandado ao STF o recado de que, se fosse para extraditar Battisti, que tratasse de tornar sua decisão definitiva -- pois, cabendo a ele decidir como última instância, Lula se recusaria a arcar com o ônus dessa infâmia.
Mendes correu a sinalizar que o Supremo quebraria o galho, mesmo que tivesse de incidir num aberrante casuísmo.
No mesmo dia, eu adverti:
"...nesse prato feito que Gilmar Mendes pretende enfiar pela goela dos brasileiros adentro, há dois ingredientes altamente indigestos, que implicam uma guinada de 180º nas regras do jogo até hoje seguidas e sacramentadas por decisões anteriores do próprio STF:
* a revogação, na prática, do artigo 33 da Lei nº 9.474, de 22/07/1997 (a chamada Lei do Refúgio), segundo o qual "o reconhecimento da condição de refugiado obstará o seguimento de qualquer pedido de extradição baseado nos fatos que fundamentaram a concessão de refúgio";
* a transformação do julgamento do STF em instância final, em detrimento do Executivo, ao qual sempre coube tal prerrogativa."
A OAB acaba de confirmar integralmente minha avaliação, vindo ao encontro da posição que sustento há meses: ao manter Battisti preso depois da concessão do refúgio humanitário, o STF extrapola suas atribuições e inspira fundados receios de que esteja colocando motivações de ordem política à frente do espírito de justiça e da letra da Lei.
É como muitos brasileiros percebem a atuação do ministro Gilmar Mendes. Será catastrófico para a imagem do Judiciário se o Supremo como instituição o acompanhar nessa faina reacionária.
Obs.: a íntegra do parecer de José Alonso da Silva está em http://www.oab.org.br/noticia.asp?id=16483
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